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SUCEDEM-SE OS DIAS
A poesia é de facto um animal
difícil de domesticar. Há as palavras,
as tardes de sol nas esplanadas dos cafés,
as manhãs brumosas junto ao mar. Os cavalos
galopam na planície, mudam de direcção
bruscamente. Aonde irão? Mudou
de cor o céu. Ainda azul, mas baço agora.
O maço de cigarros em cima da mesa,
os estudantes loiros que tomam café,
as raparigas que com os dentes e os lábios
tentam seduzir os nossos destinos incertos.
Para onde nos leva o tempo? E o desejo?
De madrugada acordei, assustou-me a solidão.
Tanto silêncio na noite que parece misteriosa.
Sucedem-se os dias da nossa morte lenta.
Quem quer saber de nós? E nós,
de quem queremos saber, sinceramente?
A linguagem desenvolve em nós a ilusão
de entender o mundo e o que nos acontece.
É como ir pelos carris do comboio,
de qualquer comboio para não se sabe onde.
Vamos indo e acreditamos que uma noite
havemos de chegar ao destino. Para quê
querer ou pedir mais? Duas da tarde.
Vieram três pessoas sentar-se à minha mesa
do café. Hello, Bob, how are you doing?
O António Nobre não teria resistido
ao rosto angélico, ao olhar virginal
da rapariga que se sentou connosco a tomar
café. Que espera ela da vida, que
pensa do futuro? Que fantasias
ou sonhos graves atormentam
o seu espírito aparentemente
tão sereno? Vive numa casa
perto do mar, é estudante. Se eu
fosse andando? Mas não me apetece.
Poesia, deixa-me ir assinalando o percurso
da intranquilidade. A minha biografia
é igual à de toda a gente, não tenho
vida privada nem sei o que isso é.
Isolando-me, preservo da corrupção o
interior. Alimento a necessidade de
me sentir original e diferente adoptando
certa maneira de falar. Tudo o que
escrevo é autobiográfico, evidentemente.
É o que me têm sugerido, com o ar de
acusar-me. Confessional, pouco artístico.
Queriam-me solene, conformado,
obediente? Sabem mais da minha
vida do que eu, vêem-me por todo
o lado nos meus poemas. E sou apenas
o sonho de um outro, o meu e o
deles, ficção e histórias que se contam.
Escrevo porque não existo. Lugar-comum,
retórica conhecida. Questão de perspectiva.
A linguagem permite todos os abusos e a
verdade nunca existiu. Só a poesia.
De que derrotas se fez a nossa vitória
sobre o vazio que nos estava prometido?
Ir-se construíndo dia a dia, operariamente.
Abelhas modestas, vivendo na obsessão do
mel que depois nos roubam. Por que tosses,
rapariga que lês o jornal? A montanha
ao fundo, a brisa que vem do mar. Passa
o inefável sem cessar diante dos nossos
olhos, escondido na banalidade do destino.
Uma existência divina, quem pudera. De
calções, sentado na esplanada do café,
parece que nunca saí do mesmo sítio. Por
favor, rapariga, fecha um pouco o ângulo
das pernas, começam a perturbar-me as tuas
calcinhas azuis. Um pardal poisa na mesa,
depois voa de novo. Vou-me
embora também, pousar noutro lugar.
Poema de João Camilo