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RUI KNOPFLI (INHAMBANE, 1932 | LISBOA, 1998)
CAIR DO PANO
As acácias já se incendiaram de vermelho
e o zumbido das cigarras enxameia obsidiante
a manhã de Dezembro. A terra exala,
em haustos longos, o aguaceiro da madrugada.
Ao longe, no extremo distante da caixa
de areia, o monhé das cobras enrola
a esteira e leva o cesto à cabeça,
cumprido o papel exacto que lhe coube
e executou com paciente sageza hindu.
Dura um instante no trémulo contraluz
do lume a que se acolhe, antes da sombra
derradeira. Assim, os comparsas convocados
para esta comédia a abandonam, verso
a verso, consignando-a ao olvido
e à erva daninha que, persistente, a cobrirá
irremediavelmente. O encenador faz
a vénia da praxe e, porque aplausos
lhe não são devidos, esgueira-se pelo
anonimato da esquerda alta. É Dezembro
a encurtar o tempo, o pouco que nos sobra.
Poema de Rui Knopfli incluído no livro O Monhé das Cobras, publicado em 1997, pela
Editorial Caminho.
AMOR DAS PALAVRAS
Amo todas as palavras, mesmo as mais difíceis
que só vêm no dicionário.
O dicionário ensinou-me mais um atributo
para o sabor de teus lábios.
São doces como sericaia.
Faz-me pensar ainda se a tua beleza não será
comparável à das huris prometidas.
No dicionário aprendi que o meu verso é
por vezes fabordão e sesquipedal.
Nele existe o meu retrato moral (que
não confesso) e o de meus inimigos,
rasteiros como seramelas sepícolas
e intragáveis como hidragogos destinados à comua.
O dicionário, as palavras, irritam muita gente.
Eu gosto das palavras com ternura
e sinto carinho pelo dicionário,
maciço e baixo e pelo seu casaco, azul
desbotado, de modesto erudito.
Poema de Rui Knopfli in "O país dos outros" - 1959
Bilhete para
DANILA MICHAELLES
(DANA)
Pelo trajecto sangrento das acácias,
da Mafalala às areias de Polana,
ou à maré morta de Catembe;
do Ho Ling à Casa Elefante,
da Casa Viegas ao Prédio Pott;
da opulenta sombra do cajueiro
à nobre majestade do eucalipto,
ainda resiste, na memória, uma cidade.
Por tardes de longa canícula,
sentada em seu regaço, a menina
dos cabelos cor de cobre, regista-lhe,
com paciente labor, na brancura
do A-3, a minúcia do perfil
que esbatido, aos poucos, lentamente,
no deserto da memória vai morrendo.
Dele, em tempo, só restará o sal
teimoso que, a algum verso,
há-de emprestar o travo amargo
e o que, no rigor afectuoso do teu traço,
da insanável ferida oculta,
é, obstinadamente, a visível cicatriz.