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Em memória de Herberto Helder [1930-2015]

Herberto  Helder

 

PREFÁCIO

 

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder

tão firme e silencioso como só  houve

no tempo mais antigo.

Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,

sorrindo com ironia e doçura no fundo

de um alto segredo que os restitui à lama.

De doces mãos irreprimíveis.

- Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,

as casas encontram seu inocente jeito de durar contra

a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.

 

Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta

do gosto, o entusiasmo do mundo.

Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio

admirável das fontes -

pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste

como fogo exemplar.

Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas

um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores

tenebrosas, e temos memória

e absorvente melancolia

e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.

 

Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,

espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos

que não viram as torrentes infindáveis

das rosas, ou as águas permanentes,

ou um sinal de eternidade espalhado nos corações

rápidos.

- Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam

pelos muitos sentidos dos meses,

dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,

para que se faça uma ordem, uma duração,

uma beleza contra a força divina?

 

Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.

Alguém viera do mar.

Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó.

Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos,

inspirações.

                 - Estas casa serão destruídas.

Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente

no seu casamento solar, assim

se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,

vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos

da terra

onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos

múltiplas, as caras ardendo nas velozes

iluminações.

 

Falemos de casas, É verão, outono,

nome profuso entre as paisagens inclinadas.

Traziam o sal, os construtores

da alma, comportavam em si

restituidores deslumbramentos em presença da suspensão

de animais e estrelas,

imaginavam bem a pureza com homens e mulheres

ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente,

tocando uns nos outros -

comovidos, difíceis, dadivosos,

                                             ardendo devagar.

 

Só um instante em cada primavera se encontravam

com  o junquilho original,

arrefeciam o resto da ano, eram breves oa mestres

da inspiração.

                    - E as casas levantavam-se

sobre as águas ao comprido do céu.

Mas casas, arquitecos, encantadas trocas de carne

doce e obsessiva - tudo isso

está longe da canção que era preciso escrever.

 

- E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.

 

Falemos de casas, da morte. Casas são rosas

para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança

nos abandona para sempre.

Casas são rios diuturnos, nocturnos rios

celestes que fulguram lentamente

até uma baía fria - que talvez não exista,

como uma secreta eternidade.

 

Falemos de casas como quem fala da sua alma,

entre um incêndio,

junto ao modelo das searas,

na aprendizagem da paciência de vê-las erguer

e morrer com um pouco, um pouco

                                                    de beleza.

 

Poema de Herberto Helder in "A Colher na Boca", 1961

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publicado às 22:44


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