OBRA BREVE
Eduardo Lourenço, no prefácio a esta edição.
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CARTA A MEUS FILHOS SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadela de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
POEMA DE JORGE DE SENA
põe um disco a correr. a chuva não demora
mais do que o esvaziar das nuvens se te
confessasse as coisas que já atirei ao mar
(o revólver do crime palavras numa garrafa)
não darei nome ao poema seria como quem
coloca legendas aos dias e eu: sou como
água (tomando a forma dos lugares que molha)
vou repetir (para quem só agora ligou
este poema:) no cesto de frutos da mãe
as estações do ano sucedem-se e o disco
era um disco tão antigo tão antigo que
a certa alturantigo tão antigo que a
certa alturantigo tão antigo que a certa
alturantigo tão antigo qu
POEMA DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES DE «ESTE LADO PARA CIMA», DE 1994, RETIRADO DO LIVRO «O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS» - EDIÇÃO QUETZAL, FEVEREIRO DE 2019
O TEMPO CONCRETO
O tempo duro
com estas unhas de pedra
este hálito pobre
de órgãos esfomeados
estas quatro paredes de cinza e álcool
este rio negro correndo nas noites como um esgoto
O tempo magro
em que minhas mãos divididas
nitidamente separadas e caídas
ao longo dum corpo de cansaço
pedem o precipício a hecatombe clara
o acontecimento decisivo
O tempo fecundo
dos sonhos embrulhados repetidos como um hálito de febres
repassadas no travesseiro igual das noites e dos dias
das ruas agrestes e pequenas da mágoa
familiar e precisa como uma esmola certa
O tempo escuro
da peste consentida do vício proclamado
da sede amarfanhada pelas mãos dos amigos
da fome concreta dum sonho proibido
e do sabor amargo dum remorso invisível
O tempo ausente
dos olhos dum desejo de claras cidades
em que acenamos perdidos às soluções erguidas
com vozes bem distintas de cadáveres opressores
com gritos sufocados de problemas supostos
O tempo presente
das circunstâncias ferozes que erguem muros reais
dos fantasmas de carne que nos apertam as mãos
das anedotas contadas num outro mundo de cafés
e das vidas dos outros sempre fracassadas
O tempo dos sonhos
sem coragem para poder vivê-los
com muralhas de mortos que não querem morrer
com razões de mais para poder viver
com uma força tão grande que temos de abafar
no fragor dos versos disfarçados
O tempo implacável
em que juramos de pé viver até ao fim
maiores dos que nós ser todo o grito nu
pureza conquistada no seio da vida impura
um raio de sol de sangue na face devastada
O tempo das palavras
numa circulação sombria como um poço
de ecos incontrolados
de timbres inesperados
como moedas de sangue cunhadas numa noite
demasiado curta e com luar de mais
O tempo impessoal
em que fingimos ter um destino qualquer
para que nos conheçam os amigos forçados
para que nós próprios nos sintamos humanos
e este fardo de trevas esta dor sem limites
a possamos levar numa mala portátil
O tempo do silêncio
em que o riso postiço dos fregueses da vida
finge ignorá-lo enquanto soluçamos
de raiva de razão reprimida revolta
e os senhores de bom senso passeiam divertidos
O tempo da razão
(e não da fantasia)
em que os versos são soldados comprimidos
que guardam as armas dentro do coração
que rasgam os seus pulsos para fazer do sangue
a tinta de escrever duma nova canção
poema de antónio ramos rosa
Assimilando a árvore a borboleta e os gatos
no amarelo fragrante e no silencioso redemoinho
com a saliva do calor e os escuros fragmentos
regresso à lentidão de um baile a um violoncelo
tocado por um gnomo sobre um telhado de metal
Trago uma lâmpada de orvalho para atravessar o abismo
e um pássaro adormecido sobre uma folha verde
Entre madeira e sombra, sob uma plácida lua
mobilizo os cristais nocturnos e as vespas azuis
entre as constelações que dialogam num tranquilo tremor
Sob as clavículas das árvores e copas flutuantes
enuncio a materna cascata e as metáforas que respiram
Movo a escultura do desejo na diagonal aspirada
e na fragrância do arco quando a consistência
é a bondade que flui entre os cornos da dança
Atravesso os murmúrios disfarçados ou os símbolos
que alçam as lânguidas cabeças submersas
até que os signos os alcancem e os respirem
Rio nas pausas da harmonia e no incêndio das alfombras
Escondo-me num olho e voo dentro da sombra
Nas nuvens passam touros brancos e águias verdes
Sedento movo as paredes na ternura da água
Aperto a suave madeira de um corpo e as suas cavernas vivas
enquanto deslizam as lentas estrelas sobre a água
Nos jardins minúsculos a brevidade e a delicadeza
Os conceitos suspiram entre a língua das flores
Guitarra e musgo e tempo acariciado
perpetuam o crepúsculo e a ausência de perguntas
Mulheres com sombrinhas descalças sobre a praia
o vento revolve-lhes as lâmpadas e as saias
Coloco a mão na âncora deste ritmo
O sangue penetra a garganta o sangue das flautas
e abre-se o tenaz labirinto voluptuoso
que é um orgão do sol e um violino da lua
De poro a poro, de poro a fruto, de fruto a estrela
uma água enigmática desliza entre carícias
Perpetua-se o prelúdio da metamorfose da matéria
e o corpo saboreia o horizontal relâmpago
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA
UM PONTO
Um ponto - talvez um centro
em permanência de tranquilidade
para a noite inteira. Um ponto
extremo, interno. Um pequeníssimo ponto
invulnerável
de estabilidade total
- nascido como? - fruto do espaço limpo,
de aberta aderência nua ao ar,
de contância livre, desocupada,
do descanso de ser até ao fundo simples,
de completa entrega?
Um ponto nu inabitado branco
de intocável serenidade,
fixo como um nervo e imponderável,
de fim inicial,
ponto de respiração,
clareira de estar,
abertura central viva
praia de ser e nada
- mas apenas um ponto, um puro ponto
contra a noite inteira,
contra o frio,
contra a destruição.
Ponto de união
de paz coextensa à noite,
opaco e diáfono nó
do desenlace perfeito.
Nó de água
da água mais nua.
Ninho interno do espaço.
Pequena lua essencial
num horizonte de segua paz.
Ponto, em ti descanso,
certeza do mundo e de mim
em ti, dentro da noite,
atinjo o equilíbrio actual e puro.
Ponto, antes do início,
de ti a ti, em mim,
pulsação lisa e leve,
suave motor da terra,
a pacífica respiração do oásis.
Ponto
de universo fixado
onde atingi a consistência dócil
de permanecer entrgue,
plenitude abrigada
na navegação nocturna.
Um ponto vazio,
plenamente vazio.
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA IN "ANTOLOGIA POÉTICA", EDIÇÃO PUBLICAÇÕES D. QUIXOTE, 2001, COM PREFÁCIO, BIBLIOGRAFIA E SELECÇÃO DE ANA PAULA COUTINHO MENDES
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David Mourão-Ferreira ||| 24 fevereiro 1927 - 16 junho 1996
ROMANCE DE UM FUTURO NATAL
Vai a caminho de Marte
um foguetão de turistas
Turismo pobre É um charter
de tarifa reduzida
Ou serão refugiados
Parece que vão fugidos
Quem sabe de que se escapam
Quem sabe a que vão fugindo
Consta da lista uma grávida
com ar de Madona antiga
das que inda se desenhavam
nos fins do século vinte
Chegou à pista de embarque
mesmo à hora da partida
E traz escrito na face
o lance que decidira
Não quer que o seu filho nasça
na Terra que vai perdida
Dão-lhe razão Todos sabem
que funda razão lhe assiste
Todos conhecem o estado
que a pobre Terra atingiu
sobretudo após a grave
crise do século trinta
Vão a caminho de Marte
como quem foge à desdita.
Sentem-se dentro da nave
bastante mais protegidos
É como voltar ao espaço
de antes de haverem nascido
Todos a grávida tratam
com cuidados infinitos
E sonham Talvez em Marte
nem tudo esteja perdido
Mas não sabem que na cápsula
um grupo de terroristas
vai sabotando a viagem
mudando o rumo previsto
Fica tudo executado
em pouco mais de três dias
E torna de novo a nave
quase ao ponto de partida
Quem mais se aflige é a grávida
com ar de Madona antiga
ao ver que à Terra terá de
ir entregar o seu filho
Já lhe rebentam as águas
quando se apeia na pista
Já pra dentro de uma cave
os outros a encaminham
Já por entre as dor's do parto
um facho de luz luzia
Quem sabe se necessário
não fora enfim tudo isso
para que à Terra baixasse
mais um resgate possível
Pálida pálida pálida
lívida lívida lívida
de costas a mulher grávida
já vagamente sorria
Poema de David Mourão-Ferreira, in Obra Poética (1948-1995), edição Assírio & Alvim, Novembro de 2019
EPÍSTOLA PARA UM CISNE
Cisne, que não conheces na água o teu reflexo verde
quando sob o teu corpo é dia e o sol afaga quedo
ou quando do teu porte há a sombra negra igual
e tudo o que está negro, e é noite, e abandono e medo.
Nem concebes o amor, nem Leda, nem sequer eu mesma
que te amo no poema e temo o canto imaginado
que não cantaste agora ou não ouvi, de madrugada
quando a minha mãe morta era somente insone.
Nunca viste a beleza, nem a vida e os lábios
que sopram as primeiras e últimas palavras, ou
o hálito que sai sem voz da dor mais desolada.
Nem a doença, a morte e os olhos sem imagens
do ar e das cores várias viste em que tu vogas branco.
É falso que celebres sozinho a tua morte e o fim,
se não sabes que só o teu outro cisne se perde.
Mas quando vi insone e logo morta a minha mãe
estou certa de que a cega, a muda, falsa ave cantou.
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO IN "OBRA BREVE - POESIA REUNIDA", EDIÇÃO 0976, MAIO 2006, ASSÍRIO & ALVIM
A HIPÓTESE DO CINZENTO
Num país a preto e branco
recomendaram-me o cinzento. Um recurso
extraordinário. Com a hipótese do cinzento poderia
ensaiar
soluções inusitadas -
experimentar o morno (que não é frio nem
quente)
explorar o lusco-fusco (que
não é noite nem dia) praticar a omissão
(que não é mentira
nem verdade). Preto e branco misturados permitiam
finalmente
viver em conformidade
desocupar os extremos (tão alheios à virtude)
liquefazer-me na turba
no centro na
média
dourada. Com a paleta de cinzentos poderia
aprimorara arte da sobrevivência que
(como os mansos bem sabem) é
não estar vivo
nem morto.
POEMA DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES, DO LIVRO "O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS", PÁG.136, EDIÇÃO QUETZAL, 2019
COM A DATA DE HOJE
Nas esquinas destas horas trnsitórias
de vidraças partidas e relógios parados
a surpresa segreda uma ária inocente
com um fato de ganga e as mãos maltratadas
Surda sombra de grades sobre o rosto
vem insuspeita intrometer-se ali
onde a esperança entre gritos que não soam
ígnea vem pela noite às marteladas
Árdua profunda invocação de paz
fremindo à flor das águas temerosas
lá no mais fundo onde não chegam as palavras
árdua desvenda aos homens o caminho
para onde?
POEMA DE MÁRIO DIONÍSIO, DO LIVRO "POESIA COMPLETA", COLEÇÃO PLURAL, EDIÇÃO IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, JUNHO 2016
NÓMADAS
Só o amor pára o tempo (só
ele detém a voragem)
rasgámos cidades a meio
(cruzámos rios e lagos)
disponíveis para lugares com nomes
impronunciáveis. É preciso percorrer os mapas
mais ao acaso
(jamais evitar fronteiras
nunca ficar para trás)
tudo nos deve assombrar como
neve
em Abril. Só o amor pára o tempo só
nele perdura o enigma
(lançar pedras sem forma e o lago
devolver círculos).
Poema de João Luís Barreto Guimarães, do livro NÓMADA 2018, incluído na antologia O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS - Edição QUETZAL 2019
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João Luís Barreto Guimarães nasceu no Porto, a 3 de junho de 1967. Poeta e tradutor, divide o seu tempo entre Leça da Palmeira e Venade. O Tempo Avança por Sílabas reúne cem poemas selecionados pelo autor, dos dez livros que publicou até ao momento. É o seu quinto livro na Quetzal, após a publicação dos primeiros sete títulos na Poesia Reunida, em 2011, Você está Aqui, em 2013, Mediterrâneo, em 2016, ao qual foi atribuído o Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, e Nómada, em 2018. A sua obra está representada em antologias poéticas e revistas literárias de numerosos países, tendo Mediterrâneo sido publicado em espanhol.
MÁRIO DIONÍSIO ||| 1916-1993
Nos despojos da cidade
atrás dos altos prédios ao avesso
veem-se telhados chaminés
negras de fumo vê-se o ferro
em movimento das gruas
Há gente que mora aqui
pessoas cães mortos vivos
em tugúrios fedorentos
Há lama e há excrementos
junto a montões gordurosos
sobre o lixo os solavancos
de amantes abjectos copulando
Rindo e saltando sobre dejetos
aqui e ali crianças brincando
que amanhã serão ladrões
Contra um muro em ruína
a fescura de uma flor
crescendo ingénua
Quem vem ela aqui fazer
entre destroços
tão bela
A meus pés a vou pisar
por raiva ou por piedade
Esmago-a furiosamente
gesto viril e demente
para não chorar
POEMA DE MÁRIO DIONÍSIO, DO LIVRO POESIA COMPLETA, PÁGINA 296, EDIÇÃO IMPRENSA NACIONAL-CASADA MOEDA, JUNHO DE 2016, COLEÇÃO PLURAL
Francisco Luís Amaro (1923-2018)
RETRATO
Um silêncio, um olhar, uma palavra:
Nasceste assim na minha vida,
Inesperada flor de aroma denso,
Tão casual e breve...
Já te visionara no meu sonho,
Imagem de segredo, esparsa ao vento
Da noite rubra, delicada, intacta.
E pressentira teu hálito na sombra
Que minhas mãos desenham, inquietas.
Existias em mim. O teu olhar
Onde cintila, pura, a madrugada,
Guardara-o no meu peito, ó invisível,
Flutuante apelo das raízes
Que teimam em prender-te, minha vida!
Poema de Francisco Luís Amaro
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Poeta português, natural de Alvito. Foi co-fundador e co-director da revista Árvore, publicada entre 1951 e 1952, e da qual fizeram também parte Raul de Carvalho, António Ramos Rosa e António Luís Moita. Colaborou ainda nas revistas Seara Nova, Távola Redonda, Portucale, entre várias outras. Foi secretário de redacção e, posteriormente, director-adjunto e consultor editorial da revista Colóquio/Letras. A sua poesia está inserida numa tendência que tenta conciliar a tradição herdada dos poetas presencistas com alguma da poesia neo-realista, nomeadamente a de Carlos de Oliveira. Da sua obra destacam-se os livros de poemas Dádiva (1949) e Diário Íntimo. Dádiva e outros poemas (1975).
DE ANTEMÃO
Tocaram-me na cabeça om um dedo terrificamente
doce, Sopraram-me,
Eu era límpido pela boca dentro: límpido
engolfamento,
O sorvo do coração a cara
devorada,
O sangue nos lençóis tremia aida:
Metia medo,
Se um cometa pudesse ser chamado como um animal:
ou uma braçada de perfume
tão agudo
que entrasse pela carne: se fizesse unânime
na carne
como um clarão,
Um anel vivo num dedo que vai morrer:
tocando ainda
a cabeça o rítmico pavor
do nome,
O leite circulava dentro delas,
É assim que as mães se alumiam
e trazem para si o espaço todo
como
se dançassem,
São em si mesmas uma lenta
matéria ordenada, Ou uma
crispação: uma ressaca,
E quando me tocaram na cabeça com um dedo baptismal:
eu já tinha uma ferida
um nome,
E o meu nome mantinha as coisas do mundo
todas
levantadas
Que lhe estendas os dedos aos dedos: lhe devolvas
o sangue, Como as estrelas duplas
duplamente
se dão força,
E fique assim - astro grande estanque
cosido em sangue: e a luz
obturada,
E então no seu pneuma luminoso:
um astro cheio, Coração: astéria: carne
de olaria pulsando, O espasmo
da mão às vezes
se arranca aos recessos da cabeça um relâmpago,
Ou se retira ao braço o movimento
pela musa do sexo, Ou à vertigem se retira
o rasgão do ar
na dança,
Assim a estrela com dois membros
cravados recebendo
o tremor do mundo, E toda essa
massa peristáltica esmaga
a argila táctil: um pequeno músculo
convulso no fundo de água:
um troço de sangue nas costas, Que lhe passes
pelas roupas e nudez
as tuas armas, Ou lhe ponhas no escuro
um incêndio:
e te ilumines dele, E a tua cara se faça
miraculada
à combustão, E entres rutilante por uma porta
para outra porta, Essa porta que dê
para uma porta de ti própria,
A mão ateando a escrita que se desloca
brilha direita,
Toca-te toda: tocas no chão
através dela, A terra
treme
quando lhe tocas, Tudo
se transmite e trannsforma,
A gangrena é uma força, Tu és a raiz dele,
Estás dentro
da luz de fora, Como o choque
sísmico
da estrela
POEMA DE HERBERTO HELDER in "POESIA TODA" EDIÇÃO 406, MARÇO DE 1996, ASSÍRIO & ALVIM
UM QUARTO AS COISAS A CABEÇA
Mesmo que fosse mais do que este quarto a minha vida
à volta da cabeça pronta a rebentar
mesmo que fossem quatro apenas as paredes
quatro paredes são de mais para uma vida
e há palavras horríveis ó meu deus sintagma da gramaticalidade
pura pura negação da vida três palavras onde
se apoia há muito o homem que afinal só fala por falar
e eu me apoio agora em holocausto ao ritmo à vibração verbal
há dizia eu palavras pavorosas que não são precisamente o adjectivo
que substituo por razões de métrica mas são palavras como
por exemplo vida e há muito haver deixado a minha infância
coisa talvez que só por havê-la deixado alguma coisa significa
e ser não já profissional qualificado mas pessoa crescida
que não leva talvez gravata mas que tem vida privada
gulosamente devassada por vizinhos companheiros de trabalho
e tem outras pessoas e tem horas e tem ruas ò meu deus
ó forma essencialmente vocativa do meu grito grande merda esta vida
Talvez haja a janela haja árvores e céu
talvez se eu caminhar ao longo do comprido corredor
que talvez una uns com os outros estes dias
talvez se houve uma entrada ao fundo haja uma saída
Hei-de passar a merda desta vida à procura de papéis?
Sempre entre mim e ao que chamam coisas há-de haver palavras
e dirão que há-de haver não só algum sentido para as coisas
mas um sentido seja ele qual for para a merda da vida
onde nasce de súbito um pequeno imenso monstro descendente de um tirano
e a mãe desse tirano descendente que podia ser tamanha como simples mãe
é mãe por profissão por pose pela posição de tão tonta cabeça
multiplicadas pelas capas das estúpidas inúmeras revistas
forma mais fugitiva de fugir à fome à alegria própria ao real
cabeça digo não apenas sem ideias mas cabeça onde já nada começa
criança que se sabe quantos quilos pesa que cor tinha
a primeira e menos metafórica das merdas que cagou
e o pai da criança que horrorosamente se apresenta como pai profissional
como marido inteirramente a par das regras da mulher
meu deus que merda metafórica esta merda desta vida
E eu ter de passar a vida à procura da chave
e procurar abrir e não saber da chave
e não existir nunca porta ou chave
e chave ser palavra ambígua ter sentido
e haver muitas palavras e muitíssimos sentidos
e a vida ser só uma e ser a vida
e haver mãos para as coisas gestos para as mãos
e não haver que porra uma saída
E esta cara esta cabeça susceptível de ser vista
e tudo quanto faço interpretado e comentado
e haver nomes e eu ser isto e não aquilo
eeu sentir-me em nomes encerrado
Quero dormir não ter esta doença de pensar
estender-me sob o céu o mais possível ao comprido
e que bastante terra cubra o meu comprido corpo
e eu seja terra apenas e a terra nada seja
Que eu durma ó meu nada e tu meu nada existas só
para na noite ouvir quem como eu é isso apenas que deseja
POEMA DE RUY BELO, RETIRADO DO LIVRO «PAÍS POSSÍVEL» - EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, JANEIRO DE 2016
DAVID MOURÃO-FERREIRA (1927-1996)
E POR VEZES
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.
POEMA DE DAVID MOURÃO-FERREIRA IN «MATURA IDADE» - 1973
ALEXANDRE O'NEILL [1924-1986]
UM ADEUS PORTUGUÊS
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
POEMA DE ALEXANDRE O'NEILL in «NO REINO DA DINAMARCA» - 1958
FERNANDO LEMOS | 3 DE MAIO DE 1926
DIA DE DESCANSO
Hoje reservo o dia inteiro para chorar
É o domingo decadente em que muitos
esperam pela morte de pé
É o dia do sarro que vem à boca da medocridade
circular dos gestos que andam disfarçados de gestos
dos amores que deram em estribilhos
das correrias pederásticas para o futebol em calções
mais o melhor fato e a mesquinhez nacional dos 10%
de desconto em todo o vestuário
E choro choro porque a coragem
não me falta para tudo isto e assisto
na nega de me ceder ao braço dado
Precisarei de um cansaço mas
lá estavam espertas
as mil e não sei quantas lojas abertas
para mo vender!
Mas hoje é domingo
Lá está o chão reluzente de martírio
e nem já o sonho me dá de graça o ter por não ter
já nem o amor que suponho me dá o sonho de ser
E choro de coragem isto é
as lágrimas hão-de cair sêcas nas minhas mãos
Falo cristalinamente sózinho
procurando entre as paredes e as varandas que vão cair
algum acaso isto é
o eco, de qualquer drama vazio
Espero como quem espera
o momento de posse entre dois ponteiros
de torneira em torneira nas súplicas febris
em que me trago aquecendo as mãos nas orelhas
para as não cortar em gritos
Espero e entretanto o mundo não se cansa
de me dar drogas para dormir e criar
novelos de lã à volta do coração
Não me lastimo grito
Quero que estas correntes da boca se tornem úteis
e não ficar pr'aqui moldado estátua
em verdete de ser chorado
A tropeçar onde não há perigo
com calçado duro a pisar as nuvens
neste tão estreitado mundo
Choro hoje o dia todo e lembro-me o que disso
podem pensar os homens das ideias revolucionárias
e choro
choro de coragem e para os microfones da revolução
As lágrimas e a revolução são como a morte de cada um
Cá do meu alto não se desce por escadas mas por desalento
por amor ao chão da terra que me pisam
e choro neste dia burguês fazendo cá a minha revolução
alheia às tais guerras de papel químico
Espero sem esperança mas certo
do que espero como de saber que um homem
não chora e choro
Choro hoje porque reservei o dia inteiro para chorar
porque é domingo e o que espero não é a morte de pé
talvez a coragem de que o mundo não esteja certo
Uma vez era ainda pequeno
chorei ao ver um prédio desabitado
Moro nele mesmo aos domingos e rio-me
das revoluções que ameaçam de pôr ou tirar-me as janelas
Sei que nada adianta
Vi o prédio desabitado era eu muito pequeno
Nê-le me reservo hoje o dia todo à liberdade de me dar
ao choro da coragem de esperar
E espero porque mesmo que o mundo fique desabitado
um grito afinal terá assim o seu eco
Enquanto durar este domingo vou chorar gradualmente
até que a noite me venha
cobrir o corpo de abafo quente
Então sairei à procura da prostituta cega
para lhe contar junto ao peito
como as pessoas se comportam aos domingos
POEMA DE FERNANDO LEMOS in «Teclado Universal» - 1963
O silêncio não existe porque é o constante rumor de uma inexistência. O que se ouve, para além do movimento da cidade, é o monótono murmúrio do nada. Apenas sombra de nada, quem nele procura um apelo ou uma resposta não os encontra ou encontra um sinal negativo. Nada diz esse murmúrio nulo, que é o eco inalterável do vazio do mundo, mas quem o ouve sente a radicalidade da sua negação como se a cada momento nos dissesse: Não há.
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA IN «RELÂMPAGO DE NADA», 2004
O construtor, antes de levantar a primeira pedra do dia, contempla e considera as suas feridas que enfraquecem a vontade de construir, com a sua própria substância de cinzas e sangue petrificado, a habitação em que a fénix poderá renascer com todo o esplendor original de um astro. Nada mais lhe resta do que lançar-se a um trabalho para o qual a disposição ainda não surgiu, mas que poderá despertar os impulsos da construção solar e abrir o horizonte luminoso e tranquilo de um rio em torno da morada. A construção está envolta numa espessa bruma e não há nela sinais de figuras ou formas, porque essa névoa é o próprio nada da confusão inicial e o fim de toda a construção como possibilidade de vida e de renovo. É do obscuro fundo da retina que surge um ténue raio cintilante que penetra na massa nebulosa da construção e a faz palpitar e estremecer. O construtor poderá então discernir algumas linhas de força, algumas estruturas e bases numa crescente e sincopada clarificação. Haverá um momento em que ele sentirá que o edifício dança porque tudo se duplica e se reflecte e se anima. De algum modo, é já a fénix que resplandece no fulgor da edificação e na plenitude do ser e do olhar na sua mútua criação
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA in "O Aprendiz Secreto", 2001
AH, PODER SE TU, SENDO EU!
Ei-lo que avança
de costas resguardadas pela minha esperança
Não sei quem é. Leva consigo
além de sob o braço o jornal
a sedução de ser seja quem for
aquele que não sou
E vai não sei onde
visitar não sei quem
Sinto saudades de alguém
lido ou sonhado por mim
em sítios onde não estive
Há uma parte de mim que me abandona
e me edifica nesse vulto que
cheio de ser visto por mim
é o maior acontecimento
da tarde de domingo
Ei-lo que avança e desaparece
E estou de novo comigo
sobre o asfalto onde quero estar
POEMA DE RUY BELO RETIRADO DE "AQUELE GRANDE RIO EUFRATES" - EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, SETEMBRO DE 2018
EUGÉNIO DE ANDRADE | 1923-2005
ENCONTRO NO INVERNO COM ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Com as aves aprende-se a morrer.
Também o frio de janeiro
enredado nos ramos não ensina outra coisa
- dizias tu, olhando
as palmeiras correr para a luz.
Que chegava ao fim.
E com ela as palavras.
Procurei os teus olhos onde o azul
inocente se refugiara.
Na infância, o coração do linho
afastava os animais de sombra.
Amanhã já não serei eu a ver-te
subir aos choupos brancos.
O resplendor das mãos imperecível.
POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE IN "HOMENAGENS E OUTROS EPITÁFIOS".
ODE DO HOMEM DE PÉ
Rua ferida pelo sol mais uma vez te saúdo
pelos passos lentos como o rolar dos anos
pelos dias vulgares cheios de maçãs
pela timidez que na loja nos assalta de pedir o troco
pelas crianças mal vestidas para a vida
nos bicos dos pés te saúdo
pela paixão que transferiu campaspe
do amor de alexandre então dono do mundo
para o coração de apeles pintor pobre
que tinha como dom o simples dom de olhar
por tantas coisas belas que ficaram fora dos meus versos
pelos rostos presentes pelo grande ausente por tudo
Oh como o sofrimento purifica minha rua
Ele passa-nos as mãos por todo o corpo
desce por nós como um olhar de mãe
e a mais agasalhada vida vê-se nua
Voz justificação de toda esta arquitectura que somos
chove a meu lado atrás de mim na minha frente
Eu mero obstáculo à incondicional vitória da chuva
peço o teu concurso para cantar a rua à chuva
Rua onde as casas olham quase com desgosto
aquela que a seu lado é demolida
onde eu pecador me confesso e agradeço
este milagre de estar vivo ainda na quinta-feira
passadas já segunda terça e quarta
e poder erguer as duas mãos acima da terra
rua onde passaram meus pais
onde invejei pela primeira vez o vinco das calças dos adultos
onde compartilhei com estranhos a estrela da manhã
e chorei a queda do maior amigo que não sei quem foi
rua onde tudo ganhei tudo logo perdi
onde assisti ao convívio silencioso das mais diversas árvores
e vi van gogh o holandês entre elas esperar as estações
que vinham alegres e submissas de mãos dadas com crianças
onde pensei que a dança liberta da condição de seres poisados que todos temos na vida de todos os dias
e muitas outras coisas que depois esqueci
rua que me levaste a tanto sonho vão
que me viste passar neste meu corpo sem nunca o conhecer
bem pouco basta minha rua para faze feliz o homem:
acender por exemplo repentinamente a luz
na sala onde pairava um certo mal-estar
o que dissipa como que para sempre a sua triste condição
Ou então na morte do escritor amigo recitar
o elogio fúnebre de há muito preparado
que se haverá de matar ainda mais o morto
e ele vivo terá por força de o imortalizar
Inútil inverter-te como antes rua para renovar a vida
A inquiteção que eu sentia quando me esquecia do sinal da cruz
quando de pernas excessivamente livres
cingia não de cruz mas sim de coração os inúteis caminhos
quando se me exigia o sacrifício dos olhares
e era meu dever nunca fazer ruído algum ao passar pela vida
Deixou de ser uma aventura atravessar-te rua
ao fim de ti nem mesmo há já esse equeno almoço
aonde pelo menos qualquer coisa começava
Não disponho de alento para muitos anos
Sinto-me velho nasci em 33 estamos em 60
vou fazer vinte anos. Isento do serviço militar
incapaz de lutar mandar obedecer
como que fiquei sempre à espera da maioridade
É tempo de assistir aos funerais dos amigos
começo a estar bom para jazer
«bom é acabar» - dizia o vice-rei
Já sou de deus deixei de ter idade rua
ele passou a ser a minha própria idade
não me levouu em conta o céu antecipado
e se algum dia porventura alguma criatura me moveu
o deus que é também teu há muito o esqueceu já ó rua
Se título algum tive já me vai caindo
só deus é minha veste e minha história
Que ele me abra ó rua a porta da palavra
Agora que por fim alguém em sua voz me chama
pelos rostos presentes pelo grande ausente
que me livrou num tempo de injustiça por tudo
ao fim de ti ó rua te saúdo mais uma vez te saúdo
POEMA DE RUY BELO IN "AQUELE GRANDE RIO EUFRATES", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, SETEMBRO DE 2018
RUY BELO (27 DE EVEREIRO DE 1933 | 8 DE AGOSTO DE 1978)
A MULTIPLICAÇÃO DO CEDRO
O senhor deus é espectador desse homem
Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe
nos olhos o tempo suave das árvores
Deu-lhe e tirou-lhe uma por uma
cada uma das quatro estações
A primavera veio e ele árvore singular
á beira do tempo plantada
vestiu-se de palavras
E foi a folha verde que deus passou
pela terra desolada e ressequida
Quando as palavras o deixaram de cobrir
ficaram-lhe dois dos olhos por onde
o senhor olha finitamente a sua obra
Até que as chuvas lhe molharam os olhos
e deles saíram rios que foram desaguar
ao grande mar do princípio
POEMA DE RUY BELO EXTRAÍDO DO LIVRO "AQUELE GRANDE RIO EUFRATES", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, SETEMBRO DE 2018
MORTE AO MEIO-DIA
No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça
Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul
que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol
No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente
E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol
O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização
Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?
Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe
atenta a gravidade do momento
O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz do dia
pois a areia cresceu e o povo em vão requer
curvado o que de fronte erguida já lhe pertencia
A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer
POEMA DE RUY BELO EXTRAÍDO DO LIVRO «PAÍS POSSÍVEL», EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, JANEIRO DE 2016
O DEUS QUE É TRANSPARÊNCIA
Ninguém me saúda nas esquinas do papel.
Nenhum deus me acompanha pelas ruas desertas.
Mas nos dedos sinto o rumor de um segredo vegetal.
É como se procurasse alargar a mão dos deuses.
É como arder com a água na brancura ofuscante
da ressaca. E as palavras da casa se levantam
a janela a porta a cama e a cadeira.
São presenças espessas e nítidas no perfil.
Assim se forma um círculo com energia erguida
nas sílabas preenchidas pela coerência do mundo.
Maternas são as sombras em torno de um centro verde
que foi talvez um deus antigo que se esqueceu
e o esquecimento é o seu signo: a transparência.
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA, in «Antologia Poética», selecção, prefácio e bibliografia de Ana Paula Coutinho Mendes, edição Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2001
UM GESTO
«Que cansativa que a polícia é!» suspirou, Matilde, fechando a janela. Depois, sorrindo do seu próprio comentário, deu dois passos no aposento e relanceou os olhos pelo espelho, que a penumbra como que apagara. Foi aí que se lembrou de uma mulher que vira três ou quatro dias antes, ao volante de um carro que parara junto ao seu, esperando que o sinal abrisse. Aproveitando aqueles breves momentos, a mulher mirara-se no retrovisor e, depois de levar um dedo aos lábios e o molhar com a língua, passara-o pelas sobrancelhas. Matilde puxou uma cadeira para o centro da sala e sentou-se, sem conseguir deixar de pensar naquele gesto, à luz do qual todos os móveis que a cercavam pareciam ganhar raízes no seu espírito. São gestos assim que emcorpam a vida, que lhe dão espessura, pensou ela. Tinha a certeza de que, enquanto se lembrasse daquele gesto e da mulher que o executara, o instante em que o captara continuaria a existir, tal como ela naquele preciso momento existia ali, naquela sala, deliberadamente alheada do aparato policial montado nas ruas adjacentes, devido a uma qualquer concentração perfeitamente inóqua e que só no caso de nas próximas horas nada haver no mundo digno de atenção mereceria umas escassas linhas nos jornais do dia imediato. Que peso teria aquela manifestação em comparação com o gesto da mulher que passara o dedo, molhado de cuspo, pelas sobrancelhas? Saberiam aqueles homens armados até aos dentes e distribuindo barreiras de arame farpado ao longo da avenida que o que eles supunham ser «este momento» amanhã já não teria existido? As feições da mulher haviam começado, é certo a diluir-se-lhe na memória, onde, de resto, o automóvel em que ela se encontrava e mesmo o seu cabelo já não tinham qualquer cor. Talvez esses pormenores funcionassem como catalizadores e contribuíssem para que o instante em que Matilde a entrevira através dos vidros dos dois carros se perpetuasse para além da sua contingência. Mas não. Matilde estava certa de que isso pouco importaria. Fosse a mulher loira ou morena, gorda ou magra, o que na realidade havia de marcante é que levara um dedo à boca e às sobrancelhas e que, sem disso poder ter tido consciência, colocara assim, ali, um travão no tempo, dando consistência a qualquer coisa sobre a qual os nossos gestos normalmente não produzem mais efeito que os de quem se industriasse a desenhar cruzes na água.
TEXTO DE LUÍS MIGUEL NAVA in Poesia Completa (1979-1994), Edição Publicações D. Quixote, Março de 2002
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RUY BELO
ATRAVÉS DA CHUVA E DA NÉVOA
Chovia e vi-te entrar no mar
longe de aqui há muito tempo já
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Mais tarde olhei-te e nem te conhecia
Agora aqui relembro e pergunto:
Qual é a realidade de tudo isto?
Afinal onde é que as coisas continuam
e como continuam se é que continuam?
Apenas deixarei atrás de mim tubos de comprimidos
a casa povoada o nome no registo
uma menção no livro das primeiras letras?
Chovia e vi-te entrar no mar
ó meu amor o teu olhar
o meu olhar o teu amor
Que importa que algures continues?
Tudo morreu: tu eu esse tempo esse lugar
Que posso eu fazer por tudo isso agora?
Talvez dizer apenas
chovia e vi-te entrar no mar
E aceitar a irremediável morte para tudo e todos
POEMA DE RUY BELO IN «O TEMPO DAS SUAVES RAPARIGAS E OUTROS POEMAS DE AMOR», EDIÇÃO 1402, JULHO 2010, ASSÍRIO & ALVIM
Uma nova antologia de Fernando Pessoa composta por 87 poemas escritos pelo ortónimo e por nove heterónimos, com o título "POESIA - ANTOLOGIA MÍNIMA" publicada pela Tinta-da-China, já está disponível nas livrarias.
A MAIS SINTÉTICA ANTOLOGIA DO MAIS VASTO DOS POETAS
Este livro é um convite a «desaprender Pessoa», segundo a expressão do mestre Alberto Caeiro, e a lê-lo como se tivéssemos acabado de o descobrir. Ao arrepio de uma tendência recente que colocou o poeta num novo cenário, menos literário e cultural, e mais urbano e utilitário, o que esta Antologia Mínima propõe é a descoberta ou redescoberta de Fernando Pessoa através de alguns dos mais espantosos versos do século XX: da «Ode marítima» à «Tabacaria», passando por «Chuva oblíqua», «O mostrengo», «O guardador de rebanhos», «Opiário», «Autopsicografia» e muitos poemas menos conhecidos, sempre reveladores de um génio que continua a inspirar espanto, enlevo e admiração.
O essencial da poesia de Fernando Pessoa e seus principais heterónimos, numa edição de Jerónimo Pizarro.
Fiama Hasse Pais Brandão
CANTO DOS INSECTOS
Podia cantar as aves, mas os insectos
são um misto de aves, de astros e de átomos
que giram em órbita como as imagens de atlas
do Universo ou esquissos de átomos.
As aves são as almas regressadas
ou que vêm da matéria para nós.
Este besouro zumbe junto ao tímpano
a voz com a qual o Amado me bafeja,
afasta-se e aproxima-se entre as tílias
que plantei em nome de Wolfgang Goethe
e hão-de dar a flor fonte do sono.
Por baixo delas o gato semovente
mostra a harmonia da garra que lambeu
para lavar o filho, e reconhece-o
como se fossem gatos num só ser.
Rente ao solo pisam a matéria viva
que é a erva, a terra e os mil milhares
dos ovos que movem a Terra astro.
São esses os insectos que são pó,
que nos roçam os pés e nos transportam
entre o nascimento e a primeira morte.
Quando o besouro passa ou poisa aqui,
o seu contexto move-se, e não pode
deixar mudar sozinho aquele insecto
sem o real concreto que o envolve.
A flosa canta a sua identidade
sem saber que é única neste espaço
em que as aves, os animais e o poeta
enquadram os insectos, em fase larvar.
Canto os que vão procriar na terra
fermentada e os já pairam aqui
desde que me senti tão similar.
O tempo é demarcado pela medida
do olhar que segue o sulco do insecto.
Tudo aquilo que está a ser olhado
aruma-se no verso com a ordem
que coloca os seres em relação recíproca
provável mas de evidência falsa
Ao poente o silêncio é o leito e o fundo
onde vibram os sons dde várias graças,
entre as agora espúrias aves canoras
o zum-zum estelar das moscas da tarde
anuncia a noite em que zumbe o Mundo.
A luz do Amado aconchega a noite,
acolhe o solitário na barca iluminada
e eis que o Rio tão próximo dá a imagem
da barca redentora que nos chama.
Ao cair da noite as tílias ficam
com as suas folhas secas de Outubro
à espera da manhã que as vai reter
presas um pouco mais na luz espalhada.
Sentada no jardim vejo o crepúsculo
juntar o insecto, o gato e a tília,
e o que a Natureza une ante os meus olhos
nada o pode desunir naminha vida.
Canto o bater das asas mínimo no ar
como um sopro de aragem num rebento
ou o escaravelho que dobra o fio da erva
e nele dança na oscilação.
Estou aqui a amar e a contemplar
o esforço e a força de cada ser.
O escaravelho cai na mão do Amado
e à sua direita tem o seu lugar
quando for esmagado pelo algoz
que não esteja possuído de fascínio.
Não desisto de cantar os animais
e as plantas que no berço me embalaram
e me ditaram a voz própria dos poemas.
O coração palpita-me como o abdómen
da borboleta que vem beber o néctar
da tília, que eu esperarei ainda.
Estou a vê-la, ela sacia-se e afasta-se
na fuga que eu atribuo ao seu voar.
Também o ventre do gafanhoto lateja
e o do grilo, suspensos pelos ângulos
das patas que lhes prendo. Tudo
está aqui disperso e ordenado
entre a manhã aberta que inicia
e a outra noite que hora depois de hora
emudece os sons até á morte.
E o pânico e a paz nocturnos
juntam-se como todos os contrários.
Dia e noite os insectos percorrem
em redor de nós a sua elipse.
O moscardo negro veio cintilar
na futura manhã que se repete.
Cada voo entre o poente e o futuro
está imóvel como nós no Tempo.
Subitamente a borboleta defronta
o pequeno gato ágil não onírico.
Move sádico devagar o dorso,
rasteja e salta, ora prendendo-o
ora soltando o breve corpo alado
que facilmente a imagem assemelha
a um ciclâmen que se solta e adeja.
Verei se o fôlego do insecto não sufoca
no duro jogo da cria de felino
a quem o instinto tão cedo movimenta.
Ficarão longo tempo nesta luta
fortuita e repentina em pleno cosmos
como entre si combatem os iões.
A borboleta oscila entontecida
indignamente prostrada sob garras,
ela que é o símbolo visível
da metamorfose galáctica.
Também o gato é belo, mas fatal
no destino circular da borboleta,
inato caçador de sons alados
néscio e voraz ele desconhece
o ciclo em que se gera a sua vítima.
E mesmo sem metamorfoses, o real
muda, repete e imagina sempre,
e cada estádio não é um só estádio.
O Amado volta cada noite inteiro
assinalando o espírito e a carne.
Na manhã que decorre, o seu sinal
é a perene borboleta que resiste
e só há-de morrer na morte absoluta
em que a matéria se perderá.
Está viva sobre a relva, embora as asas
pareçam pétalas pisadas. Não voa,
e estremece a recordar o voo.
E a Mão direita que nos abençoa
marca no seu corpo a sombra do Sol.
29 de Outubro de 1993
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - In "Cantos do Canto", retirado do Livro "Obra Breve", edição 0976, de Maio de 2006, editado pela editora Assírio & Alvim
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BIOGRAFIA DA RESPONSABILIDADE DA EDITORA "ASSÍRIO & ALVIM"
Manuel de Freitas
GRANDE HOTEL DE PARIS, QUARTO 312
Um amigo meu disse-me para nunca
meter gaivotas num poema.
O que seria fácil noutra cidade qualquer,
onde o ruído do seu voo não acompanhasse
tão de perto a minha insónia, a vaga
inquietação do teu corpo adormecido.
Alastra da Sé aos Clérigos, um alarme branco
que a janela deste quarto aceita há mais de
duzentos anos. Serão outras as gaivotas
e as cabeças que, depois de muito ou nenhum
sexo, se rendem ao limbo brasonado dos lençóis.
Mas eu vim para a casa de banho escrever
este poema simples, cheio de versos inúteis,
que me exige as horas que não tenho.
Sem ele, teria sido um dia grácil e ligeiro
como a morte, duro e inaceitável
como a vida. Pois consegui, antes destes
adjectivos todos, comprar o belo e o sublime
por menos de oito euros. E o livro que Jorge
de Sena dedica sem gaivotas, «à cidade do Porto».
Deveria ser fácil como um beijo, este poema.
Mas não. Chegamos à janela e só vemos
lixo, prédios devolutos, uma coroa
de terra a esboroar-se.
E invejamos,
das gaivotas, a pungente desrazão do voo,
essa alegria de não ter palavras
sob o céu limpo que nos mata.
Poema de Manuel de Freitas dedicado à memória de Jorge de Sena - in Terra Sem Coroa
Vasco Graça Moura
INSTRUMENTO DE SOMBRAS
coração, instrumento de sombras
e silêncios vibrantes, coração que te destróis
na turvação da alma,
de que matéria é feita a lucidez com quue palpitas
e sabes o que vai acontecer?
rente às águas fluviais, a neblina é mais espessa
entre os choupos de inverno.
também o amor é uma arte do tempo, uma
melodia delgada e frágil instalada em novembro,
tocada num instrumento de sombras
e pressentimentos, na indecisa fronteira
entre a vida e a morte. um dia
a chuva há-de diluir tudo
na sua música, nas cadências da sua
lenta anestesia.
POESIA DE VASCO GRAÇA MOURA - POESIA REUNIDA, QUETZAL, 2012
podia bordar a minha cara
sobre tantas caras
do mundo
(abro parêntese
nele entra o voo desta paisagem
tão inútil
como mudar uma vírgula a alguém)
rostos que só vimos um momento
rostos que encontramos pelo caminho
os últimos momentos de um rosto
as ideias que se têm sobre um rosto
os seus longos trajectos ínvios
desde o latim liceal
o dorso dos rostos coberto de mato
olhos débeis palpitam dentro dos olhos
mal nos deixam ver os rostos nublados
por excesso de vegetação
palpitam
sobrepõem-se páginas de rostos
vemos rostos nos rostos
há rostos que choram tanto
que acabam por se partir
um molho de folhas arrefece
entre os meus olhos líricos de cortiça
por vezes olhamos para o espelho
não há nada lá dentro
por vezes morremos na rua
reflectidos nos vidros partidos
da varanda materna
no clarão intempestivo do fósforo
ilusão fulgurante
morremos um pouco
na mudança de linha
em cada parágrafo
mal assinalado
alguém
espera o primeiro choro da criança
para entrar nela
ainda suja da lama genética
venceste a insidiosa
a cadela que exige sangue
(julgas tu...)
Poema de Rosa Oliveira in tardio
YONVILLE
viu que o tempo atravessava tudo
entrava nas cabeças
desfazia pequenas ligações interiores
enlouquecia
sobre os cabelos caía
uma poeira de mãos rápidas
a rede quase invisível
à volta dos lábios
escondia os livros mais importantes
desfazia os dias em tarefas inúteis
atraiçoava os amigoa com amantes desdichados
secretamente sabia
o tempo vai transformar-nos
em glosas esventradas de nós mesmos
vai pôr a rezar os poetas mais obscuros
leva-nos pela mão
arrasa
olhou o horizonte e suspirou
era vasto demais
o prado e o céu juntavam-se
insuportável
como toda a paz campestre
Poema de Rosa Oliveira in tardio, edição Tinta-da-China, Março de 2017
A vida exige de ti ainda mais escuro
A poesia vai acbar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
- Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? -
Do livro "Ainda Não É o Fim nem o Princípio do Mundo Calma É apenas Um Pouco Tarde" (1974)
Nuno Júdice venceu o prémio Rosalía de Castro do PEN Clube Galego, que distingue, de dois em dois anos, escritores relevantes de língua castelhana, catalã, basca e portuguesa pelos seus trabalhos publicados em vários géneros literários.
Nesta 12ª edição, os prémios foram igualmente atribuídos à mexicana Carmen Boullosa, ao catalão Sergi Belbel e ao basco Harkaitz Cano.
O júri considerou que o escritor português tem feito “um ótimo trabalho em vários géneros”, que vão desde o romance até à poesia, mas que passam, também, pelo ensaio.
Autor: Escritores.online
O AMBIENTE EM S. VICENTE
I
Dia.
Calma demais na baía azul
contra a muralha adiante da outra ilha.
Luz sem sombra
e um vazio que perfila
mortos os corpos deitados
na ideia
e no cansaço
do movimento no cais e nas casas.
Ainda há vida
no velho tamarindeiro
hirto sob a poeira do vento
que sibila mas não sente
a nossa melancolia
dissolvida no ar quente:
o morno desassossego
que se respira em S. Vicente.
II
Noite.
Os montes sobem à lua
e descem vertiginosos na sombra.
O silêncio é mineral,
mesmo o das ondas na praia.
Passos acesos por um Petromax
deambulam, estacam.
Ouve-se uma voz: «entra já!»
O silêncio animou-se, falou fundo
como se anima e cala em S. Vicente.
III
Quando as nuvens pesam
e o céu e o sol
escurecem
toda a gente pensa:
acaso, o milagre?!
Mas não é milagre.
A chuva cai mesmo
quando acaso cai.
As ribeiras enchem.
A fome enverdece.
E a casa so pobre
escorrega na lama.
IV
E a pracinha ao fim da tarde
animada, sempre em festa
festinha lânguida prece
nos olhos da mulatinha
e de outras mais meninas
que passam, repassam, passam
os mesmos diminutivos
aos rapazes bailarinos
ou aos que ouvem a banda
encostados à parede.
Até que chega a velhinha
com o seu cão, o seu bastão
e começa, a levitar,
a rodar,
a dizer: eu sou rainha
nos bailes de S. Vicente.
E a festa acaba em vidinha
em que os termos mais soezes
se confundem com os sublimes.
E só me resta gritar:
tu és minha, tu és minha
porque rimas com rainha,
com pracinha, com vidinha
e muita coisinha fina
e mais um raio de gente!
Poema de Ruy Cinatti in "Obra Poética, Volume I", páginas 411, 412, 413, 414 - Edição Assírio & Alvim, Outubro de 2016.
alexandra de pinho
TEORIA SENTADA
A minha idade é assim - verde, sentada.
Tocando para baixo as raízes da eternidade.
Um grande número de meses sem muitas saídas,
soando
estreitos sinos, mudando em cores mergulhadas.
A minha idade espera, enquanto abre
os seus candeeiros. Idade
de uma voracidade masculina.
Cega.
Parada.
Algumas fixam-se à sua volta.
Idade que ainda canta com a boca
dobrada. As semanas caminham para diante
com um espírito dentro.
Mergulham na sua solidão, e aparecem
batendo contra a luz.
É uma idade com sangue prendendo
as folhas. Terrível. Mexendo
no lugar do silêncio.
Idade sem amor bloqueada pelo êxtase
do tempo. Fria.
Com a cor imensa de um símbolo.
Eu trabalho nas luzes antigas, em frente
das ondas da noite. Bato a pedra
dentro do meu coração. Penso, ameaçado pela morte.
É uma raíz séca, canta-se
no calor. É uma idade cor da salsa.
Amarga. Imagino
dentro de mim. Trabalho de encontro à noite.
Procuro uma imagem dura.
Estou sentado, e falo da ironia de onde
uma rosa se levanta pelo ar.
A idade é uma vileza espalhada
no léxico. Em sua densidade quebram-se
os dedos. Está sentada.
Os poentes ciclistas passam sem barulho.
Passam animais de púrpura.
Passam pedregulhos de treva.
É para a frente que as águas escorregam.
Idade que a candura da vida sufoca,
idade agachada, atenta
à sua ciencia. Que imita por um lado
as nações celestes. Que imita
por um lado a terra
quente.
Trabalhando, nua, diante da noite.
Herberto Helder - Ofício Cantante, Assírio & Alvim, edição 1297, Janeiro de 2009
Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-nos!
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar o corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado às ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ò arquitectos! Mas choraremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ò arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.
Poema de Mário Cesariny, página 193, do livro "POESIA", edição Assírio & Alvim, Novembro de 2017
ESTADO SEGUNDO
No meio duma vedação circular, esperava a ocasião favorável
a ignominiosos projectos de entrada. E todas as noites, depois
do jantar, a comissão de dança abarrotava de gente.
Examinaram o anel pondo-o de parte, ainda dentro do quarto.
Qualquer coisa ardia ao contrário, com frieza de ânimo e contrariamente à expectativa.
Fixaram, também, com virginal indignação, o grande quadro a óleo que pendia do tecto,
certamente um ex-militar pois no seu casaco farraposo havia fitas de medalhas.
A cancela rangia docemente quando, na mão de alguém, uma ponta de preocupação se tornou de um
cinzento pouco recomendável.
- Não, muito obrigado...
O dia surgiu a partir da fachada. Não havia neles cabelos bancos nem uma só linha que estivesse seca.
POEMA DE MÁRIO CESARINY RETIRADO DO LIVRO "POESIA", PÁGINA 265, EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM (PORTO EDITORA), NOVEMBRO DE 2017
AMADEU BAPTISTA
ALBERTO MORAVIA: O PARAÍSO
Vi como a actriz levitou entre as sete paredes da sala
e soube imediatamente como isso era bom.
O céu de antracite dos últimos dias
foi um sinal do tempo nos meus olhos
que de uma árvore a outra projectou
um momento único de calor e vida.
A actriz era o primeiro êxtase
nos vários segmentos dos meus olhos,
silenciosa sequência de roldanas
onde a luz é um milagre e algo palpita
nas têmporas como uma recordação.
Falou da ausência, a actriz?
Fumava em Roma num vestidinho negro
tão frágil como uma pérola
e actuava sobre as palavras como se algo real
estivesse para acontecer à nossa frente.
Sentada no banco de madeira,
com os botões da camisa sensulmente abertos
e os lábios vermelhos que lembravam um Verão próximo
do passado
ela esculpia na terra
algo tão perturbador como o princípio do mundo.
Foi bom olhá-la nos olhos,
tomar a eloquência por uma evocação
onde o silêncio tem o poder de despertar no corpo
um ritmo alucinante de febre e de loucura.
Ela, a actriz, nada podia fazer,
embora invocasse a infância com todas as forças do espírito,
em nítidas sucessões de terríveis marés-vivas.
Sentei-me e aplaudi.
Ela era sobretudo o exercício das coisas que nos fazem aproximar da solidão dos homens,
a cidade cercava-a e entontecia-a
porque algo se lhe colava à pele, um enigma, uma ave, talvez,
essa memo a que perdemos o rastro entre Bari e La Spezia
quando os múltiplos sinais da representação nos intimidavam
a conferir à comunicação o estatuto do medo e do fascínio.
A actriz? Agora podes vê-la.
Entre os toldos amarelos e azuis e a areia ocre dessa praia
ela penteia meditativamente os cabelos de oiro,
embala a boneca de trapos,
canta sentada num trono onde cada um de nós já se sentou
um dia
para se sentir espectador de algo fascinante
que em silêncio responde à nossa solidão.
Escuta-a.
Ela chama um nome desconhecido num rumor incontornável,
o nome do homem que partiu,
persegue-o num único movimento,
a sombra do seu corpo alonga-se na ausência
e o arco dos seus braços transfigura-lhe o olhar,
é uma mulher que vem com o rosto iluminado pela escuridão
para regressar do outro lado da noite
com uma criança nos braços,
ela própria,
um peixe vermelho que cintila
como uma pedra na distância
que vai do inferno ao paraíso,
de Capri a Peruggia.
Não é um incêndio que ela tem na boca?
A actriz tem na boca um incêndio
que é tanto a ternura como a exaltação,
ela entregou-se ao grito pela incandescência pura,
é um sonho e exalta-se pela beatitude de um crime
nesse sangue espesso
que é um círculo fulvo noutra esfera do mundo,
um brilho que se amplia numa barra de vidro
onde o rosto reflecte mil acrobacias
que reencontra a pedra onde a limpidez preserva
a tensão dos rostos em cada expectativa.
E a actriz sorri ainda porque o poder da luz amplia nos lugares
formas tão indistintas como as que há no coração
e outras tão belas como as corças que correm na planície
e nós pensamos que nos pertencem com o mesmo vigor
da agilidade do salto que empreendem.
Chamaste? Viste como isto era bom?
E o sortilégio era esse,
a magia do mundo,
a passagem de um lugar para outro lugar
onde tudo era possível
e um tiro à queima-roupa sobre o nosso peito
continha em si a graça de nos devolver à vida.
POEMA DE AMADEU BAPTISTA
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
CATÁLOGO BOTÂNICO DA PRIMAVERA
Principia a estação, com o seu ruído
feito de sons de pássaros, que eu decifro.
Mais difícil sinal são as cores várias,
que despontam cada dia e eu vejo,
ano após ano, iguais e singulares.
Primeiro, um pouco além, o lírio roxo,
que me traz consigo a criança viva
que o colheu e, tal como a um barco
o fez singrar, só, roxo, macerado,
na água que descia por um rego.
Um lírio com a mão que o cortara
já decepada e presa ao passado,
sem o seu corpo. Vejo as três pétalas
assim a confundir-se com os três dedos,
como se as nossas mãos por vezes vivessem
mais do que os passados corpos.
Depois, foi esta a manhã das camélias
brancas, cravadas com dureza em rostos,
que, ainda de olhos fechados, tocam
as corolas em busca do seu cheiro.
São camélias mortais, e ainda atraem
a face dos mortos, que algum dia
as bafejaram com o seu hálito próximo.
Manchas brancas de círculos informes,
cada círculo contendo outro círculo.
E, no centro de cada rosto, apenas,
em cada Primavera, duram os olhos.
Já caem as glicínias, de alto, sobre
o esplendor do crânio ou do cabelo.
São cachos também roxos, em manhãs
de assombro, por cada dia mais
trazer um diverso cacho pendente.
Misturam-se com a cabeleira antiga
estes cachos de glicínias de hoje.
Mas são absolutos, novos, singulares
os momentos com a sua luz e cor,
os seus insectos e as suas sombras.
Alguém, que os colhera os fez prender
entre cabelos fecundos, de orelhas,
adornos para os filhos da Terra.
Estão, depois dos lírios e das camélias,
para salvar, em cada dia novo,
o viço dos cabelos, mais eternos
do que a já sepultada carne. Carne
de alguém que tinha um nome seu e que
se oferecia, com deleite, ao Tempo.
Só pode ter sido a de parentes, dúbios
cohabitantes do ser que relata
esta actual Primavera, com saudade.
A Primavera, que me surpreende
somente por estar a ser olhada.
Se aquela rosa rubra, na manhã
em que surgiu, logo fosse ignorada,
eu não estaria aqui neste papel,
dando-me inteira à nova Primavera.
Recebo-a, olho-a como um visitante,
aliás porque, na sua latada,
ela está perto do meu sólio. Rosa
de repente vista, primeira rosa
na natural frescura. E, também,
o vento lhe tocou, e já a abrem
aquelas mãos que haviam sabido
lançar barcos de pétalas aqui.
Junto da rosa só cabe esta boca,
pronta a beijar com amor as suas línguas
ou a beber a linfa que é da abelha.
Havia uma boca assim, sem a face,
a respirar ao ritmo dessa rosa,
que hoje nasceu fadada para ser
a sempre minha, única, igual.
A cor da rosa mostra-me o lugar
daquela boca, e eu quero sentir-me
aqui e ali. Pois vejo-te, rosa,
e vejo a outra, a que foi beijada.
Assim, não posso mais do que olhar.
Rosas terás em redor, solitária.
- Eis os melros, rasteiros, que insistem
em tornar-se evidentes, saltitando
sobre cômoros de terra. Mas hoje
perante o mistério das flores súbitas,
são como eu, embora não como eu,
com a negra plumagem que os cobre.
Sobre a lage do poço correm dois,
negros contendores no mesmo sprint,
músicos de assobio que eu bem entendo.
E, próximos da rosa, mas alheios,
estão a nascer os narcisos, de amarelas
frisadas campânulas e de sépalas
perto do solo, e que se elevam
na luz de cor. Também uma figura
de mulher genuflectida as colhia,
e uma criança, oscilando no riso,
quer ter para si uma flor solar.
Junto aos eternos matizes das pedras,
a cor dos narcisos, nítida, clara,
evoca esses desejos saciados
em tempo ido: o da mulher, prendendo-os
no seu seio, e os da criança, seguindo
o movimento que pertence ao tempo.
Hoje, como hei-de separar os corpos
da haste e da corola dos narcisos,
pois a mancha amarela tem a forma
humana contida em si, curva, erecta.
Salva-me o vermelho vivo da rosa,
que atrai a cor intensa dos narcisos
para contraste, outra tensão,
que eu revivo, amando o beijo da rosa
e a prece ao sol destes narcisos.
Mas outra prece, hesitante, desponta
ao raso dos terrenos, dispersa, ágil.
Flores que vibram esguias e tácteis,
de um vermelho ardente, submissas
como pálpebras, ao cair da noite.
Abrem-se na aurora, comovidas
pela unção da luz, porque se chamam
páscoas. E são amadas, benditas.
Anunciam a passagem eterna
da luz sagrada entre noite e aurora.
A aragem devagar as sacode,
finas folhas e hastes a dançar,
em pleno dia de êxtase, no sono
das corolas exaustas pela noite.
Noutra manhã, eu vejo, deslumbrada,
a poalha da brancura florida
que envolve os troncos velhos da ameixoeira,
flores que o ar conhece e o vento leva,
há muito, para lugares e tempos.
Poalha em que não estão vultos humanos.
Apenas um nó de sombra, atrás
de cada flor, mostra a imagem de antes
ou a espessura de um fruto futuro.
São as flores do jardim que guardam o enigma,
pois cada espécie vista tem em si
um sinal visível de outra estação.
Flores solitárias que, uma a uma, vêm
ligar-se a fragmentos de vida antiga.
- Repetem-se os melros p'lo empedrado,
a debicar sempre nas pedras húmidas,
sob o fascínio do cálido dia.
Tão nítidos, tão certos, a presença deles
não cabe ao lado de uma flora rara,
a desta Primavera em narração.
Também os loureiros em flor, visíveis
ao longe como nuvens, são visões
completas, com a floração e as folhas
na mesma cor de sempre, indecifrável.
Alguém pega no ramo do loureiro,
num verso clássico, e o dá a toda
a humanidade, pois a memória
da poesia passa de poeta a poeta,
para o mundo. Se o meu relato é vivo
é porque olho c'os outros a Primavera,
e nesta Primavera eu vi melhor,
presa do assombro do que é novo e antigo.
Os meus olhos, o espírito e as mãos
pegam em cada imagem de uma flor,
em cada dia de visão e ganho.
Mas a perda, enfim, virá somar tudo
igual a si mesmo, uno, passado.
E, de repente, uma flor de palavras
muito branca chega até mim, e é
esta estação, nesse florir de goivos.
Uma carta traz-me inscrita as palavras
de Eugénio, goivos, e o seu eflúvio.
Esta transcreve-a ele de Pessanha,
diante de tão nítidos canteiros.
Grata, prendo-me a esses elos vivos
da corrente de vozes, que se oferecem
aos ouvintes, depois de recolherem
o real, o findo, o que foi amado.
Aqui, depois do loureiro, floriu
a acácia, também sem qualquer vulto
escondido no seu florir imenso.
São árvores solitárias, constantes
na pura relação com a luz solar.
E, talvez por fim, neste infinito,
uma inflorescência de gladíolo
rosada, erecta, se tenha aberto.
Vem de um único bolbo, soterrado,
está só, entre a verdura vária.
Junto de si viveram outras hastes
também de gladíolos, há muito tempo.
Braços levaram-nas juntas, consigo,
em braçadas de amor e de alegrias.
Os braços são as linhas de matizes,
unidas em redor da cor suavíssima
das flores de hoje, a florir aqui.
Cada manhã me põe diante dos olhos
nova forma de cor e luz e, às vezes
figuras esbatidas de outra estação
igual, porém perdida já, inane.
- Melro audaz, que te aproximas mais
de mim, ou do que eu fui e agora sou,
não vejas que eu represento o Tempo.
A tua colheita de grãos e de larvas
seja o teu mais subtil pensamento.
- E, afinal, entraste no meu espaço,
num intervalo entre o concreto e o abstracto.
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão
Carcavelos, Março, 1997
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TERESA RITA LOPES
CONVERSANDO COM OS ASTROS
1
Confesso que me desiludiste um pouco
Quando ouvi dizer que estavas para chegar
pus-me ansiosa à tua espera
Foste o primeiro
cometa da minha vida
Antes de te conhecer pensava
que serias maior mais vistoso mais em fogo
Depois
aceitei o teu recato a tua timidez
e tentámos
acertar o passo e o olhar
Encontrámo-nos no céu
da Cacela e depois puseste-te a caminhar comigo
até Lisboa
Aqui perdemo-nos de vista
Há luz eléctrica
a mais Nesta cidade até do céu somos despossuídos:
o buruburinho das luzes obscurece os astros
que fogem
a esconder-se atrás dos montes mais próximos
Dizem
os cientistas que voltas daqui a três mil anos
Que é isso para o deus de quem és brinquedo
e eu também?
Em breve regressarás ao teu abismo
e um dia destes também eu mergulharei no meu
Marquemos já encontro para o dia 11 de Abril
de 4997
à esquina do crepúsculo
2
Eis-te de repente Espreitas e devagar
levantas-te do leito do rio afogueada
sacudindo a saia
Que fazias aí deitada com ele
minha magana?
ah lua! maluca lua que não tomas
juízo!
Aqui estamos de novo cara a cara
sorriso no sorriso
Quantas vezes já nos olhámos
assim nos olhos tão enamoradas?
Saboreio
daqui deste meu décimo andar jardim suspenso
todos os momentos da tua caminhada céu acima
Agora já estás perfeitamente senhora de ti
redonda e rutilante
e olhas de alto o rio
que se aquieta para te receber e espelhar
tua inevitável retirada
Ninguém te dá a idade
que tens
Quem havia de dizer que ficaríamos
grisalhas um dia!
Mas a ti fica-te bem esse
cabelo de neve luminosa O meu pediu ao Outono
o ruivo fulgor de suas folhas
Ah lua amiga minha
da longínqua infância da perdida juventude
cúmplice de tanto fervor adulto sozinho e
comungado confidente de tanto pranto em fogo
transformado à tua alquímica maneira em fina
prata
aonde vais buscar esse sorriso manso
teu sereno aceitar de tudo o que acontece
tua ironia doce?
Quem me dera libertar-me assim
da canseira do dia!
Minha amiga minha Mãe meu amor
porque és tudo isso ao mesmo tempo
afaga o áspero
dorso da minha irrequieta mágoa
e afoga-me no teu
mar de luar
que é água e ar e fogo ao mesmo tempo
CONVERSANDO COM OS ASTROS - POEMA DE TERESA RITA LOPES
ARMANDO SILVA CARVALHO
CASIMIRO DE BRITO
COM PESSOA NO MARTINHO DA ARCADA
Também eu me sentei, anos a fio,
à mesa de Pessoa no Martinho
da Arcada e olhei para dentro do novelo emaranhado
da sua vida. Não há nada
para desenrolar, concluímos. Corriam
os anos setenta, oitenta
e os meus dias eram uma concha recheada de
metáforas cotações enigmas letras
de câmbio de afectos graffitti estatísticas
enquanto nas ruas de Lisboa a revolução rolava
ao sabor da maré e das brisas agitadas
pelo patrão Vasques e por outras
abelhas mestras. "Governa quem é alegre (...)
para ser triste é preciso sentir".
Também eu tomei café
de costas viradas para o Tejo e encontrei
o meu sossego no desassossego de Soares
como se fôssemos o mesmo guarda-livros cansado
que descia a Rua Augusta e depois se dividia
em dois, ele
a caminho da Rua da Madalena, eu
da Rua do Ouro, onde escrevíamos
apressadas sílabas no verso de papéis comerciais
que nos pagavam o pão e a renda
da casa. Do meu gabinete eu via o "lago azul" do Tejo,
ele não. O que mais me fascina
nesta fotografia
é a página que o poeta lê como se fosse
a mãe louca que embala um filho
morto. Uma tãbua
"todos os papéis estão brancos"
"todas as mensagens se adivinham"
onde eu posso entrar e entrava nesses dias
quando me cansava de caminhar nas ruas baixas
que vão dar ao Cais das Colunas e então sentava-me
à sua mesa e misturava
como se fossem obscuras folhas de café
as palavras dele e outras minhas:
Sofro de não sofrer e sobre a morte
escrevo em seu trabalho de não saber
sofrer lavrando-a enquanto
a vida visita. Vivo ou finjo que vivo?
O discurso do corpo
canta, uma vaga aragem que sai fresca
do calor do dia e me faz
esquecer tudo e com as aves
resvalo e com os rios...
Incontáveis foram as veze em que o meu cansaço
da bolsa e da vida,
dos ruídos da baixa e dos barcos que partiam
no azul nevoeiro
se aconchegava na página desconhecida
como se fosse um velho buraco de
família uma espécie de sono
metafórico uma imersão
em águas antigas que exerciam em mim
um vago domínio. E então eu lia
o que ele talvez ali
estivesse lendo:
"Nem uma saudade já me resta
dos búzios à beira dos mares"
e também eu me sentia
nesses momentos
o sócio minoritário de um pequeno comércio de poetas
sentados na bruma: havia um que buscava
o mar dos búzios, outro que partia
para as praias onde havia búzios
e ouvia o mar "só e calmo",
como quem habita um aroma
paciente. Também eu
escrevi versos como se fossem lançamentos
de escrita, "com cuidado
e indiferença": havia que fundir-me,
entrar para dentro da areia
idizível; havia que pesar o ouro das palavras
sabendo que pesava
cinza. "O universo
não ẽ meu", lia Pessoa na página em que não sei
o que lia, o universo "sou eu" - fonte
sonolenta
que se bebe a si própria
e mais nada. Também a mim
me doeu "a cabeça e o universo" nesses dias
em que fui abandonado à tona de água
como se a água tivesse um dentro e um fora
e os cabelos que me foram caindo não dissessem
que tudo são cabelos correndo como rios
um pouco loucos
de um lado para o outro - "uma vaga doença",
"um prenúncio de morte"
que não tem outro mistério além do mistério
de partirem barcos. Também eu
me sentei à mesa de Pessoa no Martinho
da Arcada enquanto lá fora chovia
"como se houvesse chovido (...)
desde a primeira página do mundo"
e o que faço agora é vê-lo estar lendo um nada
que é tudo basta olhar
para o olhar do amigo que sobre o poeta se debruça,
mudo. O enigma que vê outro enigma
no palco ainda verde
e já em ruína
POEMA DE CASIMIRO DE BRITO
GLOSA À CHEGADA DO OUTONO
O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura assetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...
Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.
Poema de Jorge de Sena
A FLOR DA SOLIDÃO
Vivemos convivemos resistimos
cruzámo-nos nas ruas sob as árvores
fizemos porventura algum ruído
traçámos pelo ar tímidos gestos
e no entanto por que palavras dizer
que nosso era um coração solitário
silencioso profundamente silencioso
e afinal o nosso olhar olhava
como os olhos que olham nas florestas
No centro da cidade tumultuosa
no ângulo visível das múltiplas arestas
a flor da solidão crescia dia a dia mais viçosa
Nós tínhamos um nome para isto
mas o tempo dos homens impiedoso
matou-nos quem morria até aqui
E neste coração ambicioso
sozinho como um homem morre cristo
Que nome dar agora ao vazio
que mana irresistível como um rio?
Ele nasce engrossa e vai desaguar
e entre tantos gestos é um mar
Vivemos convivemos resistimos
sem saber que em tudo um pouco nós morremos
Poma de Ruy Belo
RUA DE ROMA
Quero uma rua de Roma
com seus rubros com seus ocres
com essa igreja barroca
essa fonte esse quiosque
aquele pátio na sombra
ao longe a luz de um zimbório
mais o cimo dessa torre
que não tem raiz no solo
Em troca darei Moscovo
Oslo Tóquio Banguecoque
Fugaz e secreta à força
de se mostrar rumorosa
só essa rua de Roma
em cada nervo me toca
Por isso a quero assim toda
opulenta de tão pobre
com o voo desta poma
o ribombar desta moto
com este bar de mau gosto
em cuja esplanada tomo
este espresso após o almoço
à tarde um campari soda
Em troca darei Lisboa
Londres Rio Nova Iorque
toda a prata todo o ouro
que não tenho em nenhum cofre
só no cotão do meu bolso
e no que a pátria me explora
Quero essa rua de Roma
Aqui onde estou sufoco
Aqui as manhãs irrompem
de noites que nunca morrem
Quero esse musgo essa fonte
essas folhas que se movem
sob o sopro do siroco
ora tépido ora tórrido
frente à igreja barroca
tão apagada por fora
mas que do altar ao coro
por dentro aparece enorme
Quero essa rua de Roma
casta rugosa remota
Em troca darei as lobas
que não aleitaram Rómulo
mas me deixaram na boca
o travo do transitório
Quero essa rua de Roma
sem conhecer quem lá mora
além da madonna loura
misto de corça e de cobra
que ao longo de tantas noites
tanta insónia me provoca
Quanto às restantes pessoas
inventarei como sofrem
Quero essa rua de Roma
Terá de ser sem demora
Sabemos lá quando rondam
abutres à nossa roda
Mas não me lembro do nome
da rua que assim evoco
soberba se bem que tosca
direita se bem que torta
com um Sol que tanto a doura
como a seguir a devora
Em troca darei o troco
do que por nada se troca
o florescer de uma bomba
o deflagrar de uma rosa
Quero essa rua de Roma
Amanhã Ontem Agora
Que importa saber-lhe o nome
se a trago dentro dos olhos
Há uma igual em Verona
Outra ainda mais a norte
Outra talvez nem tão longe
num burgo que o mundo ignora
Outra que apenas se encontra
onde a paixão a descobre
Mas rua sempre de Roma
Romana em todo o seu porte
mistura de alma e de corpo
aquém além do ilusório
Romana mesmo que em Roma
não haja que a recorde
Onde quer que o sexo a sonhe
e o coração a coloque
é lá que todo sou todo
Aqui não Aqui não posso
POEMA DE DAVID MOURÃO-FERREIRA
ALGUMAS PROPOSIÇÕES COM PÁSSAROS E ÁRVORES QUE O POETA REMATA COM UMA REFERÊNCIA AO CORAÇÃO
Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração
POEMA DE RUY BELO
ACORDAR NA RUA DO MUNDO
Madrugada, passos soltos de gente que saiu
com destino certo e sem destino aos tombos
no meu quarto cai o som depois
a luz, ninguém sabe o que vai
por esse mundo, que dia é hoje?
soa o sino sólido as horas, os pombos
alisam as penas, no meu quarto cai o pó.
um cano rebentou junto ao passeio.
um pombo morto foi na enxurrada
junto com as folhas dum jornal já lido.
impera o declive
um carro foi-se abaixo
portas duplas fecham
no ovo do sono a nossa gema.
sirenes e buzinas. ainda ninguém via satélite
sabe ao certo o que aconteceu. estragou-se o alarme
da joalharia. os lençóis na corda
abanam os prédios. pombos debicam
o azul dos azulejos. assoma à janela
quem acordou. o alarme não pára o sangue
desavém-se. não veio via satélite a querida imagem o
vídeo não gravou
e duma varanda um pingo cai
de um vaso salpicando o fato do bancário
POEMA DE LUIZA NETO JORGE
Alberto Raposo Pidwell Tavares (Al Berto)
FERNANDO GUIMARÃES
ÚLTIMAS PALAVRAS DE VIRGÍLIO
Foi junto dos pântanos que nasci. Neles vi o rosto de meus pais
e de todos os antepassados. Olham-me sempre através do lodo
tranquilamente. Quando me falam, talvez a água entre
pelas suas gargantas e as palavras tornam-se mais lentas e serenas.
Escuto-os e sei como hei-de continuar a viver ao seu lado. Eles ensinam-me
o sentido que procuro em cada frase. Reparo que um verso fica
mais perto, e descubro como as sílabas longas e breves encontram
a pouco e pouco o que é o seu justo lugar; trata-se da harmonia apenas
que lhes pertence. Há-de ser assim naturalmente e tudo se repete
sem qualquer esforço, como se os deuses estivessem ali. Mas eu sinto-me
tão frágil diante deles... Sei que os seus lábios são demasiado pesados
e, por isso, nada lhes pergunto. Espero, tranquilamente. Então eles olham-me
com contida alegria, acenam-me, fazem sinais que não compreendo
sequer: Há uma explicação que procuro ainda e fito de repente
as suas pupilas. Aí, nesse ponto negro, surpreendo aquilo que principia
a oscilar entre o nada e todas as coisas, a ignorância e o meu conhecimento:
esta será a claridade de que precisam para me ver. Não me ofusca
e é essa a luz que mais desejo agora. Mas sei que preciso
também da noite. E é acerca dela que tantas vezes escrevo. Há-de alguém
continuar a ler o que chega dessa sombra, mesmo que seja eu que a venha
dissipar para que se torne só meu o que digo. Pergunto algumas vezes
pela paz que existe em tudo o que perdemos. Imaginarei
depois a minha última viagrm. Só isto. Não é mais fácil falar sobre
a última viagen de cada um de nós? Ela arrasta-nos para o interior
da areia. Encontramos, depois, as mesmas ondas esquecidas, os sinais do mar
ou alguns versos, aqueles que há muito ficaram presos às nossas mãos.
Encontramos também aquilo que poderia ser apenas a proximidade
de qualquer sonho. Sim, porque é adormecidos que nós seguimos
por esse caminho difícil, entre sombras, com o peso das nossas pálpebras
pousadas sobre o corpo. Ah, conheço esse peso. Queria recordá-lo
como se viessem falar acerca do meu rosto com simplicidade
para que finalmente o consigam reconhecer. Mas quem há-de
escrever o que por mim não pode ser escrito, senão com o silêncio
de ambos? Este era o meu destino, o caminho que sigo
ao encontro de outras vozes, cercado pelas nuvens que existem
apenas no interior dos olhos, nessa escuridão súbita que se torna
uma secreta forma de saber. Aí descubro estas palavras e para elas quero
a mesma simplicidade, porque é assim que se fala da morte.
POEMA DE FERNANDO GUIMARÃES
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Escritores > Fernando Guimarães
Data Nasc: 03/02/1928 Naturalidade: Cedofeita, Porto
Na web:
Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra, viu editado, em 1956, o seu primeiro livro de poesia, ‘Face junto ao vento’, mas poucos anos antes já tinha debutado na revista Eros, com a publicação de alguns poemas.
Lecionou Filosofia em várias escolas do ensino secundário e colaborou em diversos jornais e revistas, como O Comércio do Porto, Jornal de Letras, Árvore.
O seu trabalho enquanto tradutor reflete afinidades literárias muito concretas – traduziu obras de Shelley, Keats, Byron, Dylan Thomas, Hugo von Hofmannsthal e Elaine Feinstein.
Trabalhou como investigador no Centro de Literatura da Universidade do Porto. Integrou o Conselho Científico e foi membro investigador do Centro de Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica Portuguesa.
Recebeu, entre outros, o Prémio D. Dinis (1985), o Pen Clube Português (1988) e o Prémio Luís Miguel Nava (2003).
Em 1995 foi feito Comendador da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.
Fernando Guimarães é um reincidente na lista de autores galardoados com o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (APE). Em 1992, a distinção reconheceu a obra ‘O Anel Débil’ (Edições Afrontamento); volvidos 15 anos, foi o livro ‘Na voz de um nome’ (Roma Editora). Este último livro valeu-lhe também o Prémio Literário Ruy Belo 2008.
Em 2006 foi-lhe atribuído pela Universidade de Évora o Prémio de Ensaio Vergílio Ferreira, tendo em vista o conjunto da sua obra ensaística.
A sua obra poética “Os caminhos Habitados”, venceu o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes 2014.
Bibliografia:
A Face Junto ao Vento, 1956 (poesia)
Os Habitantes do Amor, 1959 (poesia)
As mãos Inteiras, 1971 (poesia)
Três Poemas, 1975 (poesia)
Poesia 1952-1980, 1981
A Poesia da Presença, 1981 (ensaio)
Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, 1982 (ensaio)
Casa: o Seu Desenho, INCM, 1985 (poesia)
Tratado de Harmonia, 1988 (poesia)
Poética do Saudosismo, 1988 (ensaio)
A Analogia das Folhas, Edições Lumiar, 1990 (poesia)
Poética do Simbolismo em Portugal, 1990 (ensaio)
O Anel Débil, Edições Afrontamento, 1992 (poesia)
Conhecimento e Poesia, 1992 (ensaio)
Poesias Completas, Vol.I, Edições Afrontamento, 1994
Os Problemas da Modernidade, 1994 (ensaio)
As quatro Idades, Presença, 1996 (prosa)
Diotima e as outras Vozes, Campo das Letras, 1999 (teatro)
O Modernismo Português e a sua Poética, 1999 (ensaio)
Limites para uma Árvore, 2000 (poesia)
Lições das Trevas, 2002 (poesia)
Artes Plásticas e Literatura: do Romantismo ao Surrealismo, 2003 (ensaio)
Mulher, Asa, 2006 (poesia)
Na Voz de um nome, Roma Editora, 2006 (poesia)
Sentido e Sensibilidade, Caixotim, 2007 (ensaio)
A Obra de Arte e o Seu Mundo, 2007 (ensaio)
A Poesia Contemporânea Portuguesa (3ª edição), 2008 (ensaio)
Agumas das Palavras – Poesia Reunida 1956-2008, Quasi Edições, 2008
História do Pensamento Estético em Portugal, 2009 (ensaio)
As Raízes Diferentes, Relógio d’Água, 2011 (poesia)
Os Caminhos Habitados, Edições Afrontamento, 2013 (poesia)
Poesia 1952-19802015, Modo de LerAs suas imagens mais significativas correspondem a um empenho de captar o ritmo de tudo quanto, de algum modo, se pode dizer palpita, ou se desenvolve a partir de um núcleo geminativo. Eis uma poesia cuja ontologia poderia mesmo exprimir, em abstrato, dizendo nós não existimos, e nada existe, salvo … Ler mais |
Os Caminhos Habitados2013, Edições Afrontamento“Há-de ser o silêncio. Ele vem de novo ao teu encontro como se o esperasses. Talvez seja maior a tranquilidade que existe no único caminho que vinhas percorrer. Sabes que se esta sombra te acompanha é porque nela habitas.” Poema da pág. 59 |
A Poesia Contêmporanea Portuguesa2009, Quasi EdiçõesApresenta-se aqui uma visão geral da poesia na segunda metade do século XX. Esta poesia é atravessada por alguns movimentos que vêm de um tempo anterior ou que com ela coincidem: Neo-Realismo, Surrealismo, Poesia Experimental ou, recentemente, o Pós-Modernismo. À margem destes movimentos, vários poetas mais ou menos isolados se … Ler mais |
História do Pensamento Estético em Portugal2009, Editorial PresençaUma obra essencialmente filosófica que dá conta do aparecimento do pensamento estético em Portugal. |
Sentido e Sensibilidade2007, Edições CaixotimVolume de ensaios da autoria do professor e ensaísta Fernando Guimarães, em torno da obra de diversos autores portugueses, evidenciando os traços que lhes são comuns. Obra de marcante interesse para uma compreensão alargada das intersecções dos autores românticos na literatura moderna. |
Mulher2006, Edições ASAEm Mulher recolhe-se a poesia de Fernando Guimarães onde esta palavra, que pode estar presente ou ausente, exprime a comunicação e o encontro que se entreabrem no ser, na existência humana. Tais poemas aproximam-se de uma reflexão – digamos uma ontologia – que vai procurar o sentido que há nessa existência. |
Na Voz de um Nome2006, Roma Editora |
Lições de Trevas2002, Quasi EdiçõesPlano Nacional de Leitura Livro recomendado para o Ensino Secundário como sugestão de leitura. Na primeira parte do seu novo livro, «Lições de Trevas», Fernando Guimarães procede a um convite à leitura. São poemas sobre como ler um livro, dirigindo-se ao leitor e explicando que a poesia não é tanto … Ler mais |
O Modernismo Português e a sua Poética1999, Lello Editores |
INFORMAÇÃO RETIRADA DO «SÍTIO» ESCRITORES.ONLINE
SUCEDEM-SE OS DIAS
A poesia é de facto um animal
difícil de domesticar. Há as palavras,
as tardes de sol nas esplanadas dos cafés,
as manhãs brumosas junto ao mar. Os cavalos
galopam na planície, mudam de direcção
bruscamente. Aonde irão? Mudou
de cor o céu. Ainda azul, mas baço agora.
O maço de cigarros em cima da mesa,
os estudantes loiros que tomam café,
as raparigas que com os dentes e os lábios
tentam seduzir os nossos destinos incertos.
Para onde nos leva o tempo? E o desejo?
De madrugada acordei, assustou-me a solidão.
Tanto silêncio na noite que parece misteriosa.
Sucedem-se os dias da nossa morte lenta.
Quem quer saber de nós? E nós,
de quem queremos saber, sinceramente?
A linguagem desenvolve em nós a ilusão
de entender o mundo e o que nos acontece.
É como ir pelos carris do comboio,
de qualquer comboio para não se sabe onde.
Vamos indo e acreditamos que uma noite
havemos de chegar ao destino. Para quê
querer ou pedir mais? Duas da tarde.
Vieram três pessoas sentar-se à minha mesa
do café. Hello, Bob, how are you doing?
O António Nobre não teria resistido
ao rosto angélico, ao olhar virginal
da rapariga que se sentou connosco a tomar
café. Que espera ela da vida, que
pensa do futuro? Que fantasias
ou sonhos graves atormentam
o seu espírito aparentemente
tão sereno? Vive numa casa
perto do mar, é estudante. Se eu
fosse andando? Mas não me apetece.
Poesia, deixa-me ir assinalando o percurso
da intranquilidade. A minha biografia
é igual à de toda a gente, não tenho
vida privada nem sei o que isso é.
Isolando-me, preservo da corrupção o
interior. Alimento a necessidade de
me sentir original e diferente adoptando
certa maneira de falar. Tudo o que
escrevo é autobiográfico, evidentemente.
É o que me têm sugerido, com o ar de
acusar-me. Confessional, pouco artístico.
Queriam-me solene, conformado,
obediente? Sabem mais da minha
vida do que eu, vêem-me por todo
o lado nos meus poemas. E sou apenas
o sonho de um outro, o meu e o
deles, ficção e histórias que se contam.
Escrevo porque não existo. Lugar-comum,
retórica conhecida. Questão de perspectiva.
A linguagem permite todos os abusos e a
verdade nunca existiu. Só a poesia.
De que derrotas se fez a nossa vitória
sobre o vazio que nos estava prometido?
Ir-se construíndo dia a dia, operariamente.
Abelhas modestas, vivendo na obsessão do
mel que depois nos roubam. Por que tosses,
rapariga que lês o jornal? A montanha
ao fundo, a brisa que vem do mar. Passa
o inefável sem cessar diante dos nossos
olhos, escondido na banalidade do destino.
Uma existência divina, quem pudera. De
calções, sentado na esplanada do café,
parece que nunca saí do mesmo sítio. Por
favor, rapariga, fecha um pouco o ângulo
das pernas, começam a perturbar-me as tuas
calcinhas azuis. Um pardal poisa na mesa,
depois voa de novo. Vou-me
embora também, pousar noutro lugar.
Poema de João Camilo
RUI KNOPFLI (INHAMBANE, 1932 | LISBOA, 1998)
CAIR DO PANO
As acácias já se incendiaram de vermelho
e o zumbido das cigarras enxameia obsidiante
a manhã de Dezembro. A terra exala,
em haustos longos, o aguaceiro da madrugada.
Ao longe, no extremo distante da caixa
de areia, o monhé das cobras enrola
a esteira e leva o cesto à cabeça,
cumprido o papel exacto que lhe coube
e executou com paciente sageza hindu.
Dura um instante no trémulo contraluz
do lume a que se acolhe, antes da sombra
derradeira. Assim, os comparsas convocados
para esta comédia a abandonam, verso
a verso, consignando-a ao olvido
e à erva daninha que, persistente, a cobrirá
irremediavelmente. O encenador faz
a vénia da praxe e, porque aplausos
lhe não são devidos, esgueira-se pelo
anonimato da esquerda alta. É Dezembro
a encurtar o tempo, o pouco que nos sobra.
Poema de Rui Knopfli incluído no livro O Monhé das Cobras, publicado em 1997, pela
Editorial Caminho.
Que a palavra seja um volume ardente e preciosamente nu
e que trema porque o seu centro é obscuro e incerto
e que se perca na sua chama como numa nuvem
que o seu brilho não apague o movimento da sua sombra
e errante se extinga agravando a solidão de um exílio como um país de sangue
Ese for veementemente como uma onda vermelha
que nela perpasse um húmido murmúrio de névoa
Que a argila reverdeça na prateada lama das suas luas de areia
e mais do que tudo o coração e o olvido se reúnam
entre as luzes e as sombras do seu outono de água
Que a fronte se torne alta de terra vento e chama
porque nela o silêncio é a pureza que vibra
sobre o sangue incessante
Se arder para o corpo do dia que arda para o corpo da noite
Como um arco lentíssimo sobre um espaço de vento e solidão
ou um ouvido solitário de árvore
ela será luminosa harmonia que se esvai
na sua imperfeição de sombra enamorada
e unir-nos-á docemente à sua fugidia sombra
ANTÓNIO MARIA LISBOA
Eugénio Lisboa
Regresso, mas não regresso
ao paraíso perdido,
ao centro de mim, possesso
de quanto, aqui, retido,
de novo vejo, sem ver,
sendo eu quem já não sou:
mundo outro eu quero haver,
nesta fome em que me dou.
Este mar (a cor, a vida)
durou só o que durou:
a corrida é já perdida
e o barco naufragou.
No entanto, a casa é minha,
mesmo podre e desdourada:
o calor é o que antes tinha,
nela está minha morada!
(O frio é apenas meu
e não da velha cidade:
só em mim esmoreceu
o calor da mocidade.)
30 de Setembro de 1989
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