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XAVIER VILLAURRUTIA (1903-1950)
NOCTURNO DOS ANJOS
Dir-se-ia que as ruas fluem serenas na noite.
As luzes não são nítidas que ajudem a revelar o segredo,
o segredo dos homens que passeiam, conhecem,
porque estão todos imersos no segredo
não ganhariam nada em fragmentá-lo
sim, é bom guardá-lo
e dividi-lo só com a pessoa eleita.
Se cada um falasse uma vez só,
e com uma só palavra, aquilo que pensa,
as letras do desejo moldariam uma grande cicatriz cintilante,
uma constelação antiga, mais viva ainda que as outras.
Seria uma constelação ardente como o sexo
no corpo profundo da noite,
ou como os gémeos que pela primeira vez na vida
se olham de frente, e se abraçam para sempre.
A rua enche-se como um rio de seres ávidos,
caminham, aguardam, prosseguem.
Trocam olhares, ensaiam sorrisos,
formam pares imprevisíveis...
Há esquinas e bancos sombrios,
auras indistintas, formas profundas,
e súbitos vãos com uma luz que cega
e portas que cedem à mais leve pressão.
A rua fica deserta num instante.
Parece afugentar de si mesmo
o desejo de começar de novo.
Está paralisado, mudo, ofegante
como o coração entre dois espamos.
Mas uma nova pulsação
lança ao rio da rua outros seres sedentos.
Cruzam-se, e sobem,
voam ao rés do chão,
nada de forma milagrosa
e ninguém se atreveria a dizer que não caminham.
São anjos,
desceram à terra
através de degraus invisíveis.
Vieram do mar, espelho do céu,
em barcos de fumo e sombra,
a fundir-se e confundir-se com os mortais,
a inclinar os seus rostos entre as coxas das mulheres,
a deixar que outras mãos apalpem febrilmente os seus corpos,
e que outros corpos procurem os seus até encontrá-los
como os lábios que se fecham,
a fatigar a boca tanto tempo estagnada,
a libertar as suas línguas de fogo,
a dizer juramentos, canções, e palavras porcas
com que os homens concentram o antigo mistério
da carne, do sangue, e do desejo.
Têm nomes fictícios, sinceramente divinos.
Chamam-se Dick ou John, Marvin ou Louis.
Em nada, senão na beleza, se distinguem dos mortais.
Passeiam, aguardam, e seguem.
Trocam olhares, ensaiam sorrisos,
formam pares imprevisíveis.
Sorriem astuciosos ao entrar nos elevadores dos hotéis
donde ainda praticam um voo lento e vertical.
Em seus corpos nus há vestígios celestiais,
signos, estrelas, e letras azuis.
Deixam-se cair nas camas,e afundam-se nas almofadas
que os fazem pensar um momento nas nuvens.
Mas logo fecham os olhos para se entregar aos gozos da sua misteriosa encarnação,
e quando dormem não sonham com os anjos, mas com os mortais.
Poema do poeta mexicano Xavier Villaurrutia
XAVIER VILLAURRUTIA
NOCTURNO DOS ANJOS
Dir-se-ia que as ruas fluem serenas na noite.
As luzes não são nítidas que ajudem a revelar o segredo,
o segredo dos homens que passeiam, conhecem,
porque estão todos imersos no segredo
não ganhariam nada em fragmentá-lo
sim, é bom guardá-lo
e dividi-lo só com a pessoa eleita.
Se cada um falasse uma vez só,
e com uma só palavra, aquilo que pensa,
as letras do desejo moldariam uma grande cicatriz cintilante,
uma constelação antiga, mais viva ainda que as outras.
Seria uma constelação ardente como o sexo
no corpo profundo da noite,
ou como os gémeos que pela primeira vez na vida
se olham de frente, e se abraçam para sempre.
A rua enche-se como um rio de seres ávidos,
caminham, aguardam, prosseguem.
Trocam olhares, ensaiam sorrisos,
formam pares imprevisíveis...
Há esquinas e bancos sombrios,
auras indistintas, formas profundas,
e súbitos vãos com uma luz que cega
e portas que cedem à mais leve pressão.
A rua fica deserta num instante.
Parece afugentar de si mesmo
o desejo de começar de novo.
Está paralisado, mudo, ofegante
como o coração entre dois espasmos.
Mas uma nova pulsação
lança ao rio da rua outros seres sedentos.
Cruzam-se, e sobem,
voam ao rés do chão,
nadam de forma milagrosa
e ninguém se atreveria a dizer que não caminham.
São anjos,
desceram à terra
através de degraus invisíveis.
Vieram do mar, o espelho do céu,
em barcos de fumo e sombra,
a fundir-se e confundir-se com os mortais,
a inclinar os seus rostos entre as coxas das mulheres,
a deixar que outras mãos apalpem febrilmente os seus corpos,
e que outros corpos procurem os seus até encontrá-los
como os lábios que se fecham,
a fatigar a boca tanto tempo estagnada,
a libertar as suas línguas de fogo,
a dizer juramentos, canções, e palavras porcas
com que os homens concentram o antigo mistério
da carne, do sangue, e do desejo.
Têm nomes fictícios, sinceramente divinos.
Chamam-se Dick ou John, Marvin ou Louis.
Em nada, senão na beleza, se distinguem dos mortais.
Passeiam, aguardam, e seguem.
Trocam olhares, ensaiam sorrisos,
formam pares imprevisíveis.
Sorriem astuciosos ao entrar nos elevadores dos hotéis
donde ainda prarticam um voo lento e vertical.
Em seus corpos nús há vestígios celestiais,
signos, estrelas, e letras azuis.
Deixam-se cair nas camas, e afundam-se nas almofadas
que os fazem pensar um momento nas nuvens.
Mas logo fecham os olhos para se entregar aos gozos da sua misteriosa encarnação,
e quando dormem não sonham com os anjos, mas com os mortais.
Poema de Xavier Villaurrutia (1903-1950)
AMANHECER
Que se faz na hora de morrer? Volta-se
a cara contra a parede?
Agarra-se pelos ombros o que está perto e ouve?
Deita-se cada um a correr, como o que tem
as roupas incendiadas, para chegar ao fim?
Qual é o rito desta cerimónia?
Quem vela a agonia? Quem puxa o lençol?
Quem afasta o espelho por embaciar?
Porque a esta hora não há mãe nem parentes.
Já não há soluço. Nada, mais que um silêncio atroz.
Todos são uma face atenta, incrédula
de homem de outra margem.
Porque o que sucede não é verdade.
Poema de Rosario Castellanos
RECINTO
Onde porei o ouvido que não escute
minha voz a chamar-te?
E onde não escutar este silêncio
que te afasta lentamente triste?
Eu caminho as horas presenciadas
em nós por nós os dois.
Sei desse fruto maduro das vozes
em campos de setembro.
Sei da noite esbelta e já tão nua
em que nossos corpos eram um.
Sei do silêncio perante a gente obscura,
de calar este amor que é de outro modo.
Enquanto chove a ausência liberto
a escravidão de carne e a alma só
no ar suspende sua águia amorosa
que as nuvens pacíficas igualam.
Poema de Carlos Pellicer traduzido por José Bento