LIVROS
CANÇÃO DERRUÍDA
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sal de minha língua
mar derruído em palavras
extravio de joias no meu vocabulário magro
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Biografia e Livros retirado do site da Porto Editora
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MAR BECKER
as meninas da casa se inclinam sobre as janelas, nos parapeitos
e dormem
quem vê da rua, pensa que são as próprias janelas que estão
sonhando
e que sonhar é algo como o transbordamento
dos cabelos
POEMA DE MAR BECKER, DO LIVRO «CANÇÃO DERRUÍDA», EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, JANEIRO DE 2023
ESCREVO AGORA COMO QUEM ME DÁ A MÃO
aqui te embalo para sempre em meus sonhos,
a ti, o próprio, fruto de todo prazer indubitável,
a quem ferimps com nomes e histórias de famílias,
mas que está aqui e agora, ainda circulando em peixe
dentro das veias e da pulsação que nos levará à morte
e estar diante desta inafiançável situção é também
uma chance de contrapor a essa pobre velha cansada,
a morte, e que respeito tenho por ti, ò morte, agora,
quando me faltam as veias e as batidas do coração,
como à velha mãe faltaram na hora do enterro cego,
é você que guia os passos que não damos, a dor
que sentimos enquanto dizemos sou eu que sinto,
mas é mais que outra coisa, é mais que tudo isso,
e seria tão só você pudesse esta mesma coisa louca:
estar ao menos bem vestida quando me cuspisse da
seus tenebrosos decassílabos, além do que odeio
o cheiro do seu caviar russo, e antecipo suas cáries.
POEMA DE LEONARDO MARONA, RETIRADO DO LIVRO "NAQUELA LÍNGUA - CEM POEMAS E ALGUNS MAIS" (Antologia da Novíssima Poesia Brasileira)
MAR BECKER
poderia dizer que amo teu nome à boca
poderia falar das vezes em que chega a manhã
e eu o procuro
e faço dele a primeira palavra tocada
mas não, o que digo é que no amor tudo nasce frágil
que há manhãs em que me vejo à beira do teu nome
e não sou capaz de feri-lo
com a voz
Poema de Mar Becker
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Mar Becker (Marceli Andresa Becker) nasceu em Passo Fundo (Rio Grande do Sul). Formou-se em Filosofia, com especialização em Metafísica e Epistemologia, pela Universidade Federal da Fronteira do Sul. Em 2020, publica A Mulher Submersa, livro vencedor do Prémio Minuano e finalista do Prémio Jabuti, na categoria poesia, ao qual se seguiu, dois anos mais tarde, o livro Sal. Em Portugal, sai agora Canção Derruída (2023): obra que reúne os poemas de Sal e uma revisitação, com «ecos e variações», de A Mulher Submersa.
PAULO MENDES CAMPOS (1922-1991) ||| BRASIL
POEMA DIDÁCTICO
Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo
Como o fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa.
Minhas rugas são prantos da véspera, caminhos esquecidos
Minha imaginação apodreceu sobre os lodos do Orco.
No alto, à vista de todos, onde sem equilíbrio precipitei-me,
Clown de meus próprios fantasmas, sonhei-me,
Morto do meu próprio pensamento, destruí-me,
Pausa repentina, vocação de mentira, dispersei-me,
Quem sofreria agora sobre as armações metálicas do mundo,
Como o fiz outrora, espreitando a grande cruz sombria
Que se deita sobre a cidade, olhabdo a ferrovia, a fábrica,
E do outro lado da tarde o mundo enigmático dos quintais.
Quem, como eu outrora, andaria cheio de uma vontade infeliz,
Vazio de naturalidade, entre as ruas poentas do subúrbio
E montes cujas vertentes descem infalíveis ao porto de mar?
Meu instante agora é uma supressão de saudades. Instante
Parado e opaco. Difícil se me vai tornando transpor este rio
Que me confundiu outrora. Já deixei de amar os desencontros.
Cansei-me de ser visão, agora sei que sou real em um mundo real.
Então, desprezando o outrora, impedi que a rosa me perturbasse.
E não olhei a ferrovia - mas o homem que sangrou na ferrovia -
E não olhei a fábrica - mas o homem que se consumiu na fábrica -
E não olhei mais a estrela - mas o rosto que reflectiu o seu fulgor.
Quem agora estará absorto? Quem agora estará morto?
O mundo, companheiro, decerto não é um desenho
De metafísicas magníficas (como imaginei outrora)
Mas um desencontro de frustrações em combate.
Nele, como causa primeira, existe o corpo do homem
- cabeça, tronco, membros, aspirações e bem-estar...
E só depois consolações, jogos e amarguras do espírito.
Não é um vago hálito de inefável ansiedade poética
Ou vaga adivinhação de poderes ocultos, rosa
Que se sustentasse sem haste, imaginada, como o fiz outrora.
O mundo nasceu das necessidades. O caos, ou o Senhor,
Não filtraria no escuro um homem inconsequente,
Que apenas palpitasse no sopro da imaginação. O homem
É um gesto que se faz ou não se faz. Seu absurdo -
Se podemos admiti-lo - não se redime em injustiça.
Doou-nos a terra um fruto. Força é reparti-lo
Entre os filhos da terra. Força - aos que o herdaram -
É fazer esse gesto, disputar esse fruto. Outrora,
Quando ainda sofria sobre armações metálicas do mundo,
Acuado como um cão metafísico, eu gania para a eternidade,
Sem compreender que, pelo simples teorema do egoísmo,
A vida enganou a vida, o homem enganou o homem.
Por isso, agora, organizei meu sofrimento ao sofrimento
De todos: se multipliquei a minha dor,
Também multipliquei a minha esperança.
POEMA DO POETA BRASILEIRO PAULO MENDES CAMPOS
HILDA HILST
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.
Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
POEMA DE HILDA HILST
Tatiana Pequeno
À DERIVA COM MAR AO FUNDO
há uma imagem muito preciosa de nós.
por meses ela acompanhava o abrir in
voluntário da caixa de mensagens e o
dia tão outonal da tua presença chegava
mais veloz para a reserva dos voos de
ir ao encontro da tua larga omoplata de
receber. a fotografia arquiva aquele dia
já tão passado de julho (outro inverno) e
na tua blusa xadrez há alguma coisa ne
gra de mim enquanto no meu vestido pre
to há um detalhe de ti, além daquilo que
são os teus brincos muito arredondados.
e estou ancorada no teu corpo a dizer al
go do tipo «queria que aparecesse o mar».
nas ruas da Barra e do Rio Vermelho
procuramos mais uma vez a linguagem
modesta do aluguel - esta coisa menor -
que estivesse ao nosso alcance chegas
te a ligar para um pequeno imóvel com
varanda, do qual abstraímos rapidamente
(os preços sempre nos foram valores difíceis)
temendo a oxidação dos ferros e o gasto
com eletrodomésticos novos e alumínio
ao ficarmos tão próximas dos efeitos do
salitre presente no movimento equatorial
da maresia, fomos também ao banco onde
sob tua fala aceitei que fosse a hora de
mudar agência. mas sobretudo os investi
mentos que não tinha. indago-me hoje se
era já altura de perguntar sobre os segredos
cada vez mais graves que tu mantinhas.
talvez fosse o caso falar da brisa futura
a corroer a casa ou da umidade palusível
a destruir os livros. se enfim já pensavas
na troca ligeira das operadoras a longas
distâncias de nossos telefones. de qualquer
forma, ali, os planos pareciam todos feitos.
(havíamos escolhido um nome africano para
aquela criança adotada que seria nossa filha)
era quase tarde naquele imenso dia e no en
tanto paramos novamente ali naquele porto
na orla e, para sempre, o Sublime registrou
algo que te parecia sorrir e a mim também
sem que soubéssemos, afinal, que atrás de
nós a larga água de todos os santos nos des
protegia e nada depois de alguns meses faria
você desistir de preferir o sul àquela luz em
que insisti no ajuste da câmera para na memória
fazer caber, à esquerda o amor e à direita o mar.
POEMA DE TATIANA PEQUENO
Carlos Drummond de Andrade
AMÉRICA
Sou apenas um homem.
Um homem pequenino à beira de um rio.
Vejo as águas que passam e não as compreendo.
Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.
Vi que amanheceu porque os galos cantaram.
Como poderia compreender-te, América?
É muito difícil.
Passo a mão na cabeça que vai embranquecer.
O rosto denuncia certa experiência.
A mão escreveu tanto, e não sabe contar!
A boca também não sabe.
Os olhos sabem - e calam-se.
Ai, América, só suspirando.
Suspiro brando, que pelos ares vai se exalando.
Lembro alguns homens que me acompanhavam e hoje não acompanham.
Inútil chamá-los: o vento, as doenças, o simples trempo
dispersaram esses velhos amigos em pequenos cemitérios do interior,
por trás de cordilheiras ou dentro do mar.
Eles me ajudariam, América, neste momento
de tímida conversa de amor.
Ah, por que tocar em cordilheiras e oceanos!
Sou tão pequeno (sou apenas um homem)
e verdadeiramente só conheço minha terra natal,
dois ou três bois, o caminho da roça,
alguns versos que li há tempos, alguns rostos que contemplei.
Nada conto do ar e da água, do mineral e da folha,
ignoro profundamente a natureza humana
e acho que não devia falar nessas coisas.
Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração.
Nessa rua passsam meus pais, meus tios, a preta que me criou.
Passa também uma escola - o mapa -, o mundo de todas as cores.
Sei que há países roxos, ilhas brancas, promomtórios azuis.
A terra é mais colorida do que redonda, os nomes gravam-se
em amarelo, em vermelho, em preto, no fundo cinza da infância.
América, muitas vezes viajei nas tuas tintas.
Sempre me perdia, não era fácil voltar.
O navio estava na sala.
Como rodava!
As cores foram murchando, ficou apenas o tom escuro, no mundo escuro.
Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra.
Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos, turcos, uruguaios.
Seus passos urgentes ressoam na pedra,
ressoam em mim.
Pisado por todos, como sorriir, pedir que sejam felizes?
Sou apenas uma rua
na cidadezinha de Minas,
humilde caminho da América.
Ainda bem que a noite baixou: é mais simples conversar à noite.
Muitas palavras já nem precisam ser ditas.
Há o indistinto mover de lábios no galpão, há sobretudo silêncio,
certo cheiro de erva, menos dureza nas coisas,
violas sobem até à lua, e elas cantam melhor do que eu.
Canta uma canção
de viola ou banjo,
dentes cerrados,
alma entreaberta,
descanta a memória
do tempo mais fundo
quando não havia
nem casa nem rês
e tudo era rio,
era cobra e onça,
não havia lanterna
e nem diamante,
não havia nada.
Só o primeiro cão,
em frente do homem,
cheirando o futuro.
Os dois se reparam,
se julgam, se pesam,
e o carinho mudo
corta a solidão.
Canta uma canção
no ermo continente,
baixo, não te exaltes.
Olha ao pé do fogo
homens agachados
esperando comida.
Como a barba cresce,
como as mãos são duras,
negras de cansaço.
Canta a estela maia,
reza ao deus do milho,
mergulha no sonho
anterior às artes,
quando a forma hesita
em consubstanciar-se.
Canta so elementos
em busca de forma.
Entretanto a vida
elege semblante.
Olha: uma cidade.
Quem a viu nascer?
O sono dos homens
após tanto esforço
tem frio de morte.
Não vás acordá-los,
se é que estão dormindo.
Tantas cidades no mapa... Nenhuma, porém, tem mil anos.
E as mais novas, que pena: nem sempre são as mais lindas.
Como fazer uma cidade? Com que elementos tecê-la? Quantos fogos terá?
Nunca se sabe, as cidades crescem,
mergulham no campo, tornam a aparecer.
O ouro as formas e dissolve; restam navetas de ouro.
Ver tudo isso do alto: a ponte onde passam soldados
(que vão esmagar a última revolução);
o pouso onde trocar de animal; a cruz marcando o encontro dos valentes;
a pequena fábrica de chapéus; a professora que tinha sardas...
Estes pedaços de ti, América, partiram-se na minha mão.
A criança espantada
não sabe juntá-los.
Contaram-me que também há desertos.
E plantas tristes, animais confusos, ainda não completamente determinados.
Certos homens vão de país em país procurando um metal raro ou distribuindo palavras.
Certas mulheres são tão desesperadamente formosas que é impossível não comer-lhe os retratos e não proclamá-las
[demônios.
Há vozes no rádio e no interior das árvores,
cabogramas, vitrolas e tiros.
Que barulho na noite,
que solidão!
Esta solidão da América... Ermo e cidade grande se espreitando.
Vozes do tempo colonial irrompem nas modernas canções,
e o barranqueiro do Rio São Francisco
- esse homem silencioso, na última luz da tarde,
junto à cabeça majestosa do cavalo de proa imobilizado
comtempla num pedaço de jornal a iara vulcânica da Broadway.
O sentimento da mata e da ilha
perdura em meus filhos que ainda não amanheceram de todo
e têm medo da noite, do espaço e da morte.
Solidão de milhões de corpos nas casas, nas minas, no ar.
Mas de cada peito nasce um vacilante, pálido amor,
procura desajeitada de mão, desejo de ajudar,
carta posta no correio, sono que custa a chegar
porque na cadeira elétrica um homem (que não conhecemos) morreu.
Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la meio de conhecimento.
Portanto, solidão é palavra de amor.
Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.
Ela fixa no tempo a memória
ou o pressentimento ou a ânsia
de outros homens que a pé, a cavalo, de avião ou barco, percorrem teus caminhos, América.
Estes homens estão silenciosos mas sorriem de tanto sofrimento dominado.
Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado.
POEMA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE IN A ROSA DO POVO, EDIÇÃO COMPANHIA DAS LETRAS, FEVEREIRO DE 2017
carlos drummond de andrade
A FLOR E A NÁUSEA
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Poema de Carlos Drummond de Andrade in A Rosa do Povo, páginas 19, 20 e 21, edição Companhia das Letras Portugal, Fevereiro de 2017
Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
Poema de Ferreira Gullar
Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.
Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do horror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema
uma bandeira
Poema de Ferreira Gullar
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ODE A JACKSON DE FIGUEIREDO
JACKSON,
nem amigo nem inimigo,
nem mesmo (o que seria cómodo) espectador displicente na sua poltrona
espiando teus gestos, tuas palavras e obras,
mas distante, extraordinariamente distante daquilo que foi a tua vida,
mais distante ainda dos mundos que exploraste, viajante inquieto, sem tempo para esgotá-los,
e só te conhecendo bem depois que abriste os braços para morrer,
aqui estou, testemunha, depondo.
Jackson,
os que te conheceram e te amaram,
os que te conheceram e não te amaram,
os que não tiveram tempo de te amar,
os que não cruzaram no teu destino, os que ignoram o teu nome, os que jamais saberão que exististe,
estão todos um pouco mais pobres do que eram antes.
Uns perderam o amigo.
Outros, o inimigo, o grande e belo inimigo que orgulha.
Outros nada perderam, e é tão triste, tão doloroso não perder nada.
Como estes, eu me sinto pobre da pobreza de não ter sido dos teus, Jackson,
e eu o sinto verdadeiramente por todos aqueles que jamais suspeitarão disso.
Voltou o tempo dos prodígios.
Ainda há pescas maravilhosas, eu sei,
e os peixes que arrebataste a um mar mais crespo que o de Tiberíades
estão cantando a glória do Senhor.
Milhares de escamas, milhares de dorsos, de luzes, de almas
elevam um cântico tão puro que a terra se mistura com o céu
e nem se percebe o pescador que as ondas arrebatam,
que as ondas arrebatam violentamente, para depois se apaziguar,
enquanto o corpo mergulha e os peixes cantam a glória do Senhor.
Agora sentimos que estás mais perto de nós,
que por obscuros caminhos nos chegamos mais a ti,
(pouco importam as ondas e esta camada de terra que nos separa de tuas espécies em decomposição).
Muitas coisas nos ensinou a tua morte, que a tua boca não soubera exprimir
e a tua pesca mais opulenta, Jackson, foi a de ti mesmo pelo oceano,
pesca terrível e prodigiosa de amor e de redenção.
Belo Horizonte, 1929.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (1902-1987)
A MÁQUINA DO MUNDO
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.
Poema de Carlos Drummond de Andrade
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Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902. De uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental". De novo em Belo Horizonte, começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, que aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro.
Ante a insistência familiar para que obtivesse um diploma, formou-se em farmácia na cidade de Ouro Preto em 1925. Fundou com outros escritores A Revista, que, apesar da vida breve, foi importante veículo de afirmação do modernismo em Minas. Ingressou no serviço público e, em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação, até 1945. Passou depois a trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e se aposentou em 1962. Desde 1954 colaborou como cronista no Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil.
MARCELO GAMA
(1878- 1915)
TAEDIUM VITAE
Dias de tédio, amargurados dias,
Estes que arrasto à espera de melhores
Estes de sol, então, são os piores:
Mais me abatem as lassas energias.
Porque este sol que me ilumina e aquece,
Embora luz, calor e vida seja
- lascivo sol que a natureza beija
lubricamente, e os seios lhe intumesce -
é o mesmo sol que me amesquinha e oprime,
o alvissareiro da maledicência,
que põe, perfeitamente, em evidência,
esta pobreza vil, que é quase um crime.
Por isso à lua, mal o sol se esconde,
Horas fico a cismar, contemplativo...
Abominável terra, esta onde vivo!...
Vêm-me vontades de partir... Mas onde?...
Mas onde achar a paz que est'alma aspira?
Se em toda a parte os homens são iguais!
Se aqui na terra são convencionais
Honra e virtude, e o mais - tudo mentira.
Lá onde eu fosse chegaria o tédio.
Que à vida é necessário o sofrimento,
E bem sei, para meu maior tormento,
Que esta dor só na morte tem remédio!
Todo este mal, toda esta desventura,
Vem do sentir e amar em demasia,
E ver que é sempre simulada ou fria
Toda afeição que eu supusera pura.
Conto os meus anos pelas minhas dores,
E são mais minhas dores que os meus anos;
E não bastando os próprios desenganos,
Comovem-me os alheios dissabores.
Que uma só vez não há, que eu não vacile,
Quando a desgraça os outros arremete!
Já chego a duvidar como Stecchetti:
- Sono un poeta o sono um imbecile?
Tu, que os meus versos lês e que os condenas,
Quando não és de todo indiferente,
Como és feliz! Como é feliz a gente
Que insensível assiste a alheias penas!
Bendita aspiração, ditosa sorte:
- extinguir-me, ou vencer estes espaços!
Por que nos teus escanifrados braços
Não me estrangulas, redentora morte?
Ontem levaste, aqui da vizinhança
A pobre mãe de três loiros filhinhos,
E entregaste-os à dor! Beijos, carinhos,
Mudaram-se em cruel desesperança.
E deixaste-me entanto, atormentado,
Escravo destes miseráveis nervos!
Meus dias, que penoso é maldizer-vos,
Sendo até pela morte desprezado!
Morrer!... Antes morrer! Que só existe
No renunciar à vida a paz perfeita.
Tornar-se a gente em pó, na cova estreita,
É deixar, finalmente de ser triste.
E se algum dia for desenterrada
Minha carcaça, hão-de me ver sorrindo...
Porque as caveiras riem, assistindo
Deste mundo à infinita mascarada.
Poema do poeta brasileiro Marcelo Gama
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Marcelo Gama, pseudônimo de Possidônio Cezimbra Machado foi um poeta e jornalista brasileiro. Foi um dos maiores representantes da poesia simbolista no Rio Grande do Sul, movimento forte naquele Estado.
MARIA REZENDE
ADORO PAU MOLE
Adoro pau mole
assim mesmo
Não bebo mate
não gosto de água de coco
não ando de bicicleta
não vi ET
e adoro pau mole
Adoro pau mole
pelo que ele expõe de vulnerável
e pelo que encerra de possibilidade
Adoro pau mole
porque tocar um pressupõe a existência
de uma intimidade
e uma liberdade
que eu prezo
e quero
sempre
Porque ele é ícone do pós-sexo
que é intrínseca e automaticamente
ainda que talvez um pouco antecipadamente
sempre um pró-sexo também
Um pau mole é uma promessa de felicidade
sussurrada baixinho ao pé do ouvido
É dentro dele
em toda a sua moleza sacudinte de massa de modelar
que mora o pau duro e firme
com que meu homem me come
POEMA DA POETA BRASILEIRA MARIA REZENDE
MARIANO MAROVATTO
PRIMEIRO PRECISAVA SABER
Primeiro precisava saber
de onde escrever. E assim
com modos bem portugueses
(seus livros de levíssimo papel
e gramatura alta)
fosse o meu barquinho,
leitoso nessa espumante
página de hálito nada
familiar, e já estaria lá.
Uma gota de sangue
nas pontas dos dedos
uma cara sorrindo, outra
resmungando. Precisaba saber
tomar ônibus, pensar no asfalto,
no ringue de patinação, menos
ovo, mais ártico. Ou terra, como
nos caminhos das ilhas:
ir até qualquer ponto final
e lá soltar com a mochila.
Poema do poeta brasileiro Mariano Marovatto
LUIS MAFFEI
1976
A palavra formiga é muito longa para ser formiga
O boi não cabe em suas letrinhas
Armário escrito num papel colado ao puxador não
cria um outro armário sobre o armário nem
desmata o que foi mata e já se desmatou há muito
nem desmata o armário morto pelo texto que o inventa só
na morte Isso
tudo é educação pelas perdas que bem se têm
que mal se veem
que só se notam quando é noite a gente sua
e chora como quem responde ao mundo uma resposta muito
boi pouco formiga
e entende
aos poucos
que é por pouco que não fomos concluídos bem no instante de
nascermos que é
um pouco
ir para a vida ir para a morte
ir a palavras como boi como fer
mento muito curta para ser de au
mento muito longa para ser um
boi Isso era educação caso não
fosse noite mal dormida como nunca uma vigília a imitará quando
palavras forem vozes de uma vida que
sem jeito
se encontra a si em poça de suor e urina e cabelos ensebados
pelo medo pelo armário sem
amante nem vestido sem
infância com
infância demais quando não falo
e mais quando só falo e falo dessa infância onde tudo fica ainda e quando boi
era formiga e um mendicante amor de tudo era o
futuro em que
(é agora?)
mendigo ainda e sei que tu mendigas pelo avesso o mesmo
extremo encontro a mesma aberta
cárie a mesma morte que me abraça como
um urso e consegue a criação da vida inteira e o suadouro das palavras
que usam boca e ressuscitam
Poema do poeta brasileiro Luis Maffei
LEONARDO MARONA
UM A MENOS
por ora os abutres sobrevoam
a lagoa fetal e, muito em breve já munidos
com as devidas garras de enxofre,
eles darão o rasante metálico
e tudo isso será apenas uma história,
um mito, um-terá-alguma-vez-acontecido,
mas os amantes estarão esfarelados
em suas carnes antigas, abraçados numa confusão pagã
a carne nova estará no balcão vermelho dos negócios de feira,
as breves frases delicadas ter-se-ão tornado
bustos pesados de paz em vírus.
a galope o pequeno órgão ratifica
a vaga culpa, estamos nus sob um sol desdenhoso,
não há realmente porque falar sobre isso com ninguém.
as salas minúsuculas e os alquimistas calvos
afunilaram o ambiente com paciência e muito ânimo.
serás processado, triturado e lançado ao acaso
em tua própria tendência succínica, e não será possível
abrir mão deste silêncio como osso tranca-traqueia,
ainda nem uma cabeça, um todo
germinal que no entanto pulsa.
a morte da grécia está nas ruas
e já não poderei vê-la porque a partir de agora
os olhos forçam para dentro as mágoas,
as covas rasas se alinham ao ventre,
não há realmente porque falar sobre isso com ninguém.
entende-se que a morte do pai reaproxima o par,
pois que assim seja, saberemos renunciar
a qualquer passado por uma nova vida, daremos
as mãos em nosso pior inverno, riremos como clowns
e poderemos até assaltar um banco, costuraremos
as máscaras dos sorrisos heróicos e caminharemos
com um pedaço a menos, adiante.
Poema do poeta brasileiro Leonardo Marona
LAURA ASSIS
ACERTO
Eu entendo
as variações
e não importa
onde você está,
espaço e tempo
são só equações.
Imagem e movimento
são sinais
ou projeções
que preparo
ou aparto
enquanto escuto
passos
em outra direção.
Eu desenho
traços,
pontos exatos,
rabiscos.
Sempre há risco
mas a vida é bem
mais difícil
que isso.
O resto é abismo
e de noite existe
essa matéria
invisível
inventando desvios
nas palavras
que você ainda
não aprendeu
a dizer.
Poema de Laura Assis, poeta brasileira
ALICE SANT'ANA
DEITADO COM O DEDO NA BOCA
deitado com o dedo na boca
o sorriso invertido
curvado como uma montanha
a pele da perna uma cédula
gasta e seca
todos os dias rigorosamente iguais
banheiro, visitas, ampolas de sangue
às vezes tem mordomias como
um pedaço de pão ou uma fruta
doces nem pensar
da janela passa uma nuvem de carros
um táxi amarelo convida
a ir a qualquer lugar
sem previsão de alta o táxi é mais
uma miragem um filme
na televisão aquele programa da tv5
sobres casas em paris sem saneamento
pessoas que moram hoje, você acredita?, em quartos
sem janelas, apartamentos no sexto andar
sem elevador, como será que fazem para subir
com a água? não tomam banho, naturalmente
depois se cansa da conversa
a nuvem se torna mais espessa
na hora do rush o táxi não tem serventia
se não puder tomar o caminho que leva
ao ponto mais alto
de onde se vê a curvatura da terra
Poema da poeta brasileira Alice Sant'Ana
ANNITA COSTA MALUFE
ANOTAR FORTUITAMENTE O BRANCO
anotar fortuitamente o branco o
contorno do vidro modulando o
branco do céu anotar como quem
anota rapidamente um recado as
letras dando a entender um nome
o vidro embaçado pela maresia
a planta fina que cresce entre as telhas
úmidas anote o que digo mas rápido
a voz tem um sotaque rápido ou
lento não sei bem o nome
de onde? um sotaque não me lembro
não faz sentido os nomes são
sempre os mesmos fortuitamente
anoto o contorno que modula veja
o tom de branco esgarçando
aqui rapidamente anote o que
digo entre as telhas na primavera
costuma ser nesta época não sei
de onde este sotaque este modo
de esticar o «r» eu acho que é
nesta época esta planta fina os ramos
costumo anotar mas rapidamente
o contorno se desfaz em seguida e
é entre as telhas na infiltração dos dias
um reflexo automático nisto
de falar da morte e em seguida
olhar o relógio
«Há uma espécie de reflexo automático nisso de falar da morte e, em seguida, olhar o relógio.»
M. Benedetti, A trégua
Poema de Annita Costa Malufe, poeta brasileira
ALICE SANT'ANNA
COMPROU BRINCOS DE ÂMBAR
comprou brincos de âmbar
porque alguém disse
que se juntasse a cor da pele
com a dos olhos e dos cabelos
a soma seria âmbar
no telefone ela sorri muito
mexe a cabeça para que os brincos
pendurados batam no fio
assim ela lembra que está de brincos
assim ela lembra que tanta gente passa uma vida
inteira sem saber qual é a soma
de todas as cores
e eu já encontrei a minha, ela diz
cheia de dentes (os dentes
imagino do outro lado da linha)
conta que tem dormido pouco
acorda sonolenta
não lembra nunca do que sonhou
ou fala isso porque no fundo os sonhos
são inconfessáveis
até para o analista teria vergonha
de repente uma longa pausa
e se os sonhos fossem
subitamente proibidos?
ela pergunta dramática
diz que não vai ter pressa
o mapa astral diz para não ter pressa
não vou acumular dívidas
minha vida será confortável
um amor e filhos será possível
enrosca o âmbar com o indicador
aperta a pedra até não quebrar
um amor que ainda vai acontecer
a astróloga a aconselhou a viajar
vai comprar um anel em cada canto do mundo
precisa usar os anéis todos juntos
uma mão toda de prata quase uma luva
depois perder os anéis um por um
especialmente aquele com a pedra âmbar
dizer que tomou todo cuidado possível
para não perder os anéis
mas todo cuidado não previne do frio
que afina os ossos no inverno
e faz com que os anéis deslizem e se lancem
não previne dos assaltantes
nem dos lapsos em quartos de hotel
nem das pessoas que pedem
para ficar com um lembrete uma recordação
todo cuidado não elimina sequer a vontade
de esquecer o anel de propósito
POEMA DE ALICE SANT'ANA, POETA BRASILEIRA
VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
POEMA DO POETA BRASILEIRO MANUEL BANDEIRA
CARLOS NEJAR
A GENEALOGIA DA PALAVRA
Minha morte começa a amadurecer e depois
vou comê-la como uma pera, largando o caroço
fora e depois vai vir uma semente com o mesmo
nome que vai crescer e amadurecer. Mas já não
é minha morte - é surpresa da terra apenas -
descendência de uma morte futura. Depois as
gerações perdem de vista a própria morte que
aparece como fio de água no meio das pedras,
visível a um e outro profeta. Mas nada abalará a
espécie: a vida também foi vista como um fio de
água no meio das pedras. Só que não se podia
distinguir os fios e as águas que conversavam
entre si, sem preconceito. E até moravam juntos,
vez e outra. Depois minha morte vai amadurecer
de novo, mas não será da mesma natureza. E
aprenderei a falar com o mundo. E o mundo vai
amadurecer como uma pera e depois vai vir uma
semente com o mesmo nome. Porém, já serei
eterno.
POEMA DO POETA BRASILEIRO CARLOS NEJAR, RETIRADO DO LIVRO «OS VIVENTES» - EDIÇAO DA TEXTO EDITORES LTDA - BRASIL PARA A LEYA BRASIL, 2011
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
NUDEZ
Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.
Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho,
estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.
Nem era dor aquilo que doía;
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
do meu silêncio. nesta concha.)
Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.
Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende.
ou se contrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.
Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
escrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos,
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve.
POEMA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE IN "ANTOLOGIA POÉTICA", EDIÇÃO RELÓGIO D'ÁGUA EDITORES, DEZEMBRO DE 2007
«Sem erotismo, a vida não tem a menor graça.»
Chico César, músico e poeta, autor de Versos Pornográficos. O Globo.
Carlos Nejar
Não quero que me encontrem
ou molestem. Isolo-me no quarto
de um país, onde posso
entretecer o génio.
Não usei como tantos,
bota rude na perna
cortando o lodaçal,
nem apanhei batatas
no dorso do quintal.
Não quero que me encontrem.
Talvez por desperdício
no sonho, ou por vício
de esquecer-me nos livros.
E a filosofia me convence
de exatidão. Com a erva
úmida a física fermenta
e incha a metafísica
aos ombros, nos torrões.
Não quero que me encontrem.
Evito o endereço nos postais.
E por pensar com o vento,
vou conciso. E um método
é preciso dos objetos
simples aos complexos.
E com a mecânica converso,
e da mente e a celeste.
Se a fantasia engana,
o mundo é a mesma corda
segurada no balde,
ou a gota pelo escuro
da paineira ou das moitas.
Renovar é volver
ao ponto de partida.
Olhar por dentro quando
é num relance a vista.
E o que aprendi a nada
me serviu. E quanto
me custou para adiante
servir-me. As novas ciências
eram noivas que possuí
sem casar com nenhuma.
Matemática, ordem
do universo, espuma
com voo em remos certos.
Mas uma filha tive.
Não, não era a ciência,
se aplaquei o desejo.
E de pensá-la ou percebê-la
existo. Quando nascer
é ato de vertigem.
Pulsando o coração,
como se um grito.
Ou barulho de riacho.
E eu, René Descartes, nada faço
sem antes refutar o preconceito,
a partir dos outros e de mim,
quando a razão que esposo
não demarca seu fim.
Nas coisas: beatitude
sem vestes, canavial
das horas. Nada se urde
no terror. Tais os anais
que longas ondas seguem
e um batel singra. Normas,
regras, tatos na constelar
matéria. E a verdade, martelo
na tensa natureza. Com a água,
movimento do impossível.
E os sentidos sem reparo
nos traem e há que abstrair
até a infância. Como este véu
que a vasta noite arranca.
Não quero que me encontrem,
mais que civilizado, francês,
viajor inveterado, por mim
avança a ideia infinita. Deus.
E a ciência que não
me deixou viver.
Poema de Carlos Nejar in "Os Viventes", edição Texto Editores, Ltda,2010, Brasil
´
1.
Aqui tudo é julgamento.
Todos os atos vividos
tamborilam neste eito
e sou de mim saltimbanco.
E do que vem. Os viventes
se apresemtem. São tão reais
quanto sois. Não me desmentem.
2.
Sabei que esta forma humana
nem se compra nem vende.
Tampouco a força que jaz
sob a alma, renitente.
Ou a renitência
de ver, se desvendo
nas águas do poema
ou no seu olhar latente.
É vosso o que nele vedes.
3.
Viventes, o que sabeis
- que mundo o poema!-?
Em sua terra
nada se queima.
Viventes, o que sabeis
da morte e o resto
se nem sabemos de nós
no anel do vento?
Se nem sabemos de nós
ou donde o ingresso
na condição de estar só
com a alma ao menos
na alma de quem vos ama
dentro do poema.
Viventes, o que sabeis
da morte? O excesso
vinga com sua lei.
Tempo vivente
com estes que somos nós
e os que descendem.
Viventes, o que sabeis
deste poema?
Aqui está vivo quem
vivendo teima.
E cria a sua própria vez.
4.
Vos ponho nomes
- nomes não tendes -,
sois meus parentes
intransponíveis.
Ou apenas tendes
aqueles nomes
que vos pressentem:
sinete ou risca.
Aqueles nomes
de manjedoura
ou julgamento.
Nomes avulsos
e indossolúveis
a quem procura
desnomeá-los.
São criaturas
os nomes, naves.
E se designam
ao navegarem.
5.
Nós, os viventes
e conviventes
de um mundo antigo.
A rima é cântaro
perto da fonte.
Cântaro à noite
cântaro, cântaro
o ritmo um jorro
que se levanta.
6.
Vos ponho nomes
ou nome pondes
em quem vos põe.
Como se o lanço
dalguma escada
fosse alcançado
antes dos pés
ou a digital
de um ser viesse
antes do mal.
Ou nome tendes
antes de mim.
7.
Povo submisso
junto ao meu peito,
contigo fico.
O mais esqueço.
Contigo fico
quando for pátria
o nosso corpo,
esta fuligem.
Povo submisso
junto ao meu peito,
contigo fico.
O mais esqueço.
Contigo fico
quando for pátria
o nosso corpo,
esta fuligem
de sofrimento.
O mais nos foge.
8.
Vientes, jazemos
dsavindos.
Em força obstinada
mundo sempre domingo.
O galo não cantou.
Acordou um juízo.
A aurora sabe dosar
as coisas.
Que outros frequentam
a criação?
Tempos de um só,
sopesados e vivos.
Pode a moléstia mortal
ser entretida?
Apodrece a aurora.
Não nos conformamos
com o que não é luz.
Nossa pobre glória
sujeita ao vento,
à intempérie
da solidão.
9.
Não há pátria
a quem ama.
Porque não posso
separar o amor
do amante
que se faz a pátria dele.
E ser da solidão
é se perder.
10.
Ainda voltarei a estes campos,
a este chão, ao zumbido
das abelhas pelo tempo
querendo voejar e nelas preso.
Ainda voltarei aos meus viventes
para vê-los andar comigo
às faldas da montanha.
Ainda voltarei: os mortos sabem
soluções piedosas
e as mormuram de ouvido.
Poema de Carlos Nejar, do livro Os Viventes, edição Leya Brasil 2011
DECRETO-LEI
Desterrem o poeta.
Seu lugar não é aqui.
Nem onde, viventes,
pensais que seja.
Nem a imortalidade
dá-lhe pão ou água,
ou ar onde respira
a usura de existir.
Nômade, rebelde,
intruso, destemido,
talvez nemhum lugar
traga-lhe pouso.
E nem espera tanto,
estando velho, enfermo,
o desterro que concedeis
há muito se apura em viver
convosco a solidão
indestrutível. Desterrem
o insurrecto e que a vós,
viventes, poupem.
E o que firma o Decreto
tem o vosso semblante
e ao vos poupar, há
de poupar-se antes.
A república é um gato
que não entende o outro,
salvo o dono. E o poeta
é afrontoso, visionário,
obstinado em conjurar
as sombras que se agarram
ao dia. Subverte a razão
do Estado, por não ter
razão alguma. Contamina
a benevolência dos civis.
É animal desocupado,
o poeta. A alguns, inofensivo
como uma barata que olha
outra barata e acaba vendo
a glória, mais excelsa.
Ou néscia. Sua palavra
explode e mata, quando
a lágrima faz chover orvalho
sobre as ruas da infância.
E não há mais infância
nemhuma a defender.
E só ela pode convencê-lo
a calar e não se cala,
não renuncia à pólvora
da língua. Não renuncia
a nada, nem à luz da agonia.
Desterrem o poeta. Já se ouve
o bramido da tábua do mar,
já se ouvem os bárbaros cercando
a democracia de ganidos.
Os bárbaros, os bárbaros
não poupam nem os mortos.
Só os viventes resistem;
a república não sabe expiar
as suas culpas, cenários
que prende no viveiro.
E até os cães perseguem
o poeta com seus dentes
de léguas. E a palavra
ao cão persegue e o cão
a outro. E não carece
o poeta de vossa caridade
desatenta. Carece da praça
de uma palavra apenas:
a praça de um soluço.
Desterrem o poeta.
E ficará vossa consciência
em paz, junto aos vindouros.
Desterrem o poeta.
Desterrem o futuro.
Poema de Carlos Nejar in "Os viventes"
ULISSES
Vaguei dez anos
desde Troia.
Não sou herói,
mas homem
marcado pela pátria.
Fui povo.
E por amar o tempo
combatendo,
eu vim do Inferno.
Andante
de praias e mulheres,
nenhuma aurora
comigo velejava,
embora velejasse
mais tarde
com meus ossos.
Circe era um corpo
apenas e na alma
o limite saturava.
Nem Calipso, a ninfa,
conteve o meu exílio.
Amarrado ao mastro,
tapados os ouvidos,
apaziguei a morte
e seu coro celeste.
Ninguém eu sou.
No inferno vi Tirésias.
Consultei na sombra dele
a sombra da minha mãe
e a sombra deste barco
que me leva.
Ninguém eu sou
sem pátria
e a ela escrevo
a eternidade
em mim.
Na espuma escrevi
Penélope e meu filho.
Povo escrevi. Destino.
Regressei. Pedinte fui,
revi Argos - meu cão -
e aos pretendentes
com mão certeira
revelei a morte.
E uma cicatriz
me desvendou.
Ninguém
é Ulisses por acaso.
Poema retirado do livro "Os viventes" de Carlos Nejar.
Os viventes é obra única, orginalmente lançada em 1979 e definida pelo crítico literário português Eugénio Lisboa como um livro que reune "algo de austeramente bíblico" e uma "poesia fraternal, que julga, mas conforta, e nos dá fórmulas simples de vida e entre-ajuda".
Nestes poemas, Carlos Nejar não expressa apenas sua profunda afeição pelos seres reais e imaginários, mas procura resgatar de cada um a sua anima, aquela essência tantas vezes esquecida ou menosprezada. Para o poeta, todas as criaturas - do torturado Jó ao exploradoe Roald Amundsen, de um inseto ao filósofo Friedrich Nietzsche - estão de alguma forma unidas, pois "não há pátria / a quem ama".
A esta edição foram acrescentados 300 novos poemas.
Edição brasileira editada pela Leya em 2011.
A Adolescência de Holderlin
Os deuses correm sobre a relva e atam
o sol ao seu redor.
Lançam o efémero
amanhecer no areal.
E, sendo a venda
que levam sobre os olhos pouco espessa,
aprendem nossos rostos,
para a morte.
Nosso fel escondido
só veriam
e o escuro das vísceras,
se, amantes,
não suasse a beleza em nossa pele.
(Por isso, contra os deuses,
há o eterno.)
(Ao lado de Vera)
Celestial
Quando tentei ser santo,
queria apenas ser um santo
sem compromisso
de fazer milagres.
Seria uma espécie de santo avulso,
desses que permanecem
desconhecidos no céu
e que só vêem Deus
de muito longe,
sem direito a carro oficial.
(Terminal)
poema de Álvaro Alves de Faria
António Fernando de Francheschi
Marechiave
te darei o braço se me pedes
para lançares a rede na rebentação
se me pedes te darei os olhos
para abarcares o arco da baía
também tuas serão as mãos se me pedes
safas para recolher velames
se me pedes te darei o ventre de escamas
e os pés para o mergulho se me pedes
os cabelos te darei para a última coreografia
e as coxas para a orgia
se me pedes a boca será tua
para as palavras finais
e mais te darei se me pedes
tudo
menos a chave do mar
(Tarde Revelada)
No Embarcadeiro da Volta
Em Portugal, onde anda um sol que se demora
a diluir uma erosão crepuscular;
no embarcadeiro dos fantasmas a esticar
constantemente o coração que se evapora,
que busca a luz que vem de dentro para fora
e nunca a luz das coisas como são; no pomar
da árvore de ouro, nem a árvore agora
nem a outra, a ancestral cansada de durar;
em Portugal, lugar do velho escoadouro
de todo um continente, deste Ocidente inteiro,
terminal das paixões peregrinas primeiro
e enfim partida aos precipícios do vindouro,
é ali que toca ao coração do brasileiro
despedir-se de Europa e entender-se com o touro
(Os Deuses de Hoje)
Carlos Nejar
Luis Vaz de Camões
Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi resposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente cega,
como eu, num dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerónimos o túmulo,
quando não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.
(Os viventes)
Reunião Familiar
O homem trouxe
o pão
o suor
a paixão
para a mesa da família.
A mulher trouxe
o pano
a paciência
o perdão
para a hera da partilha.
Entre o prato
e a comida,
este filho
e esta filha
dividiram a solidão
de outra fome
já perdida.
(Natureza da coisa)
Poema de Mário Chamie
Jovem, tentei escamotear. Impossível.
Culpado eu era. O quanto não sabia.
Fui eu quem armou a mão de Brutus
na traição a César no Senado.
Fui eu quem traiu Atahualpa, o inca,
e dizimou os astecas.
Fui eu quem matou o czar e sua família
e ateou fogo à aldeia vietnamita
e toda noite comete execráveis crimes
na tevê.
Se não fui eu
quem morreu em Waterloo e traiu em erdun,
se não fui eu
quem torturou o guerrelheiro argelino-argentino
se não fui eu
quem matou Lorca. Chatterton e Maiakovski,
então,
por que essa insônia,
esse impulso de entrar na primeira delegacia
e declarar: me Prendam!
Se não fui eu,
então por que volto sempre tenso ao local do crime
deixando ali vestígios e poemas?
(O Lado Esquerdo do meu Peito)
poema de Affonso Romano de Santa'Anna
"O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente." Os versos, do português Fernando Pessoa, se adequam perfeitamente a Manoel de Barros, advogado de formação, "fazendeiro por necessidade e poeta por ócio".
Nascido em 19 de dezembro de 1916, em Cuiabá, no Mato Grosso, o autor é filho do capataz João Venceslau Barros e de Alice Pompeu de Barros, de quem afirma ter herdado a sensibilidade - que, para ele, "é transmitida pelo sangue". Mergulhado na arte de "não fazer nada", como chama o ato de escrever, criou a série de livros "Memórias Inventadas - A Infância, A Segunda Infância e A Terceira Infância".
Aos 93 anos, Manoel diz a verdade quando se define como um mentiroso. Afinal, com um punhado de histórias fictícias, construiu para si toda uma biografia.
O poeta e dramaturgo brasileiro Ferreira Gullar é, desde ontem, o mais recente Prémio Camões. O anúncio foi feito pela ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, na presença dos membros do júri, e volta a galardoar a poesia como já acontecera em 1989 com Miguel Torga, o primeiro distinguido.
Um instante
Aqui me tenho sem começo aqui me tenho nada lembro à luz presente
como não me conheço
nem me quis
nem fim
sem mim
nem sei
sou apenas um bicho
transparente
VIDA TODA LINGUAGEM
Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.
Vida toda linguagem,
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjetivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará - oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sêmen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias.
Vida toda linguagem --
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e anjo
E deus talvez, e nada
Vida toda linguagem,
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos terraços do inverno, con-
[tra a chuva,
tenta fazê-la enterna - com se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.
SINTO QUE O MÊS PRESENTE ME ASSASSINA
Sinto que o mês presente me assassina,
As aves atuais nasceram mudas
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre homens nus ao sul de luas curvas.
Sinto que o mês presente me assassina,
Corro despido atrás de um cristo preso,
Cavalheiro gentil que me abomina
E atrai-me ao despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde me espreita
A morte espacial que me ilumina.
Sinto que o mês presente me assassina
E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas
De apóstolos marujos que me arrastam
Ao longo da corrente onde blasfemas
Gaivotas provam peixes de milagre.
Sinto que o mês presente me assassina,
Há luto nas rosáceas desta aurora,
Há sinos de ironia em cada hora
(Na libra escorpiões pesam-me a sina)
Há panos de imprimir a dura face
À força de suor, de sangue e chaga.
Sinto que o mês presente me assassina,
Os derradeiros astros nascem tortos
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre o morto que enterra os próprios mortos
O tempo na verdade tem domínio,
Amém, amém vos digo, tem domínio
E ri do que desfere verbos, dardos
De falso eterno que retornam para
Assassinar-nos num mês assassino.
EGO DE MONA KATEUDO
Dor, dor de minha alma, é madrugada
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
Noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminaste.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormido e claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria.
BALADA
(Em memória de uma poeta suicida)
Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o fato
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mais intacto
(Tanta violência, mas tanta ternura),
Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirma-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra só um delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência, mas tanta ternura!
Cruel foi teu triunfo, torpe mar.
Celebrara-te tanto, te adorava
De fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares - tanto amava
Teu dorso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!
Envoi Poemas de Mário Faustino retirados do livro "O Homem e sua hora"
ODE A JACKSON DE FIGUEIREDO
JACKSON,
nem amigo nem inimigo,
nem mesmo (o que seria cómodo) espectador displicente na sua poltrona
espiando teus gestos, tuas palavras e obras,
mas distante, extraordinariamente distante daquilo que foi a tua vida,
mais distante ainda dos mundos que exploraste, viajante inquieto, sem
tempo para esgotá-los,
e só te conhecendo bem depois que abriste os braços para morrer,
aqui estou, testemunha, depondo.
Jackson,
os que te conheceram e te amaram,
os que te conheceram e não te amaram,
os que não tiveram tempo de te amar,
os que não cruzaram no teu destino, os que ignoram o teu nome, os que jamais saberão que exististe,
estão todos um pouco mais pobres do que eram antes.
Uns perderam o amigo.
Outros, o inimigo, o grande e belo inimigo que orgulha.
Outros nada perderam, e é tão triste, tão doloroso não perder nada.
Como estes, eu me sinto pobre da pobreza de não ter sido dos teus, Jackson,
e eu sinto verdadeiramente por todos aqueles que jamais suspeitarão disso.
Voltou o tempo dos prodígios.
Ainda há pescas maravilhosas, eu sei,
e os peixes que arrebataste a um mar mais crespo que o de Tiberíades
estão cantando a glória do Senhor.
Milhares de escamas, milhares de dorsos, de luzes, de almas
elevam um cântico tão puro que a terra se mistura com o céu
e nem se percebe o pescador que as ondas arrebatam,
que as ondas arrebatam violentamente, para depois se apaziguar,
enquanto o corpo mergulha e os peixes cantam a glória do Senhor.
Agora sentimos que estás msi perto de nós,
que por obscuros caminhos nos chegamos mais a ti,
(pouco importam as ondas e esta camada de terra que nos separa de tuas espécies em decomposição).
Muitas coisas nos ensinou a tua morte, que a tua boca nõao soubera exprimir
e a tua pesca mais opulenta, Jackson, foi a de ti mesmo pelo oceano,
pesca terrível e prodigiosa de amor e de redenção.
Belo Horizonte, 1929
Aparências
Não sou mais tolo não tenho mais queixas:
enganasse-me mais desenganasse-me mais
mais rápida mais tempo mais voraz e arrebatadora
mais volúvel mais volátil
mais aparecesse para mim e desaparecesse
mais velasse mais desvelasse mais revelasse mais re-
velasse mais
eu viveria tantas mortes
morreria tantas vidas
jamais me queixaria
jamais.
Capricciosa
É claro que estou exposto
eu como todos os outros
animais às intempéries
que cedo ou tarde nos ferem;
mas aqui a noite, seda,
suavemente me enleia:
espelhos olhares vinhos
uvas cachos rosas risos
e ali, do lado de lá
das lâminas de cristal
tão tranqüila e cintilante
quanto o céu, sonha a cidade.
Desperta-me um celular:
a morte também tem arte.
Balanço
A infância não foi uma manhã de sol:
demorou vários séculos; e era pífia,
em geral, a companhia. Foi melhor,
em parte, a adolescência, pela delícia
do pressentimento da felicidade
na malícia, na molícia, na poesia,
no orgasmo; e pelos livros e amizades.
Um dia, apaixonado, encarei a minha
morte: e eis que ela não sustentou o olhar
e se esvaiu. Desde então é a morte alheia
que me abate. Tarde aprendi a gozar
a juventude, e já me ronda a suspeita
de que jamais serei plenamente adulto:
antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos
os deuses façam felizes e maduros
Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.
Ícaro
Buscando as profundezas do céu
conheceu Ícaro as do mar
Adeus poeira olímpica
grãos da Líbia
barcos de Chipre
Adeus riquezas de Átalo
vinhos do Mássico
coroas de louro
flautas e liras
Adeus cabeça nas estrelas,
Adeus amigos
mulheres
efebos
Adeus sol:
Ouro algum permanece.
A morte de Arquimedes de Siracusa
Os equilíbrios dos planos, as quadraturas
das parábolas, os cálculos da areia,
das esferas, dos cilindros e das estrelas:
nada do que realizei se encontra à altura
do que há por fazer. A matemática é longa,
a vida breve; e logo agora Siracusa,
sitiada, quer alavancas, catapultas,
dispositivos catóptricos, cuja obra
suga meu sangue, que é meu tempo. Por milagre,
hoje deixaram-me em paz. Na garganta trago
intuições por formular: áspero e amargo
pássaro engasgado. Nas paredes não cabe
mais diagrama algum. Traço-os no chão do períbolo,
na terra. Quem vem lá? Não pises nos meus círculos!
O poeta e ensaísta Antonio Cicero é autor, entre outras coisas, dos livros de poemas Guardar (1996) e A cidade e os livros (2002), e dos livros de ensaios filosóficos O mundo desde o fim (1995) e Finalidades sem fim (2005). Organizou, em parceria com o poeta Waly Salomão, O relativismo enquanto visão do mundo (1995) e, em parceria com o poeta Eucanaã Ferraz, a nova antologia poética de Vinícius de Moraes (2003). É também compositor de inúmeras letras de música popular, tendo parceiros como Marina Lima, Adriana Calcanhotto e João Bosco, entre outros. Atualmente escreve uma coluna para o jornal Folha de São Paulo
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?
Poema de Cecíla Meireles
ARTE POÉTICA
Não quero morrer não quero
Apodrecer no poema
Que o cadáver de minhas tardes
Não venha feder em tua manhã feliz
E o lume
Que a tua boca acenda acaso das palavras
- ainda que nascido da morte -
some-se
aos outros fogos do dia
aos barulhos da casa e da avenida
no presente veloz
Nada que se pareça
a pássaro empalhado múmia
de flor
dentro do livro
e o que da noite volte
volte em chamas
ou em chaga
vertiginosamente como o jasmim
que num lampejo só
ilumina a cidade inteira
Manuel Bandeira
Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
Poema extraído do livro " Manuel Bandeira — 50 poemas escolhidos pelo autor", Ed. Cosac Naify – São Paulo, 2006, pág. 35.
Ferreira Gullar. Um intelectual que é, acima de tudo, poeta
Revista BRAVO! | Março/2009
Por Almir de Freitas
• Leia também entrevista com o autor feita por Armando Antenore
Sobre Ferreira Gullar, ninguém menos que Vinicius de Moraes escreveu, em 1976, que se tratava do "último grande poeta brasileiro". Na época, o maranhense estava exilado em Buenos Aires, depois de cumprir um longo périplo — Moscou, Santiago, Lima — fugindo da mão pesada da ditadura militar. Ali, um ano antes, espremido entre os golpes no Chile e na Argentina, temendo "desaparecer" em meio à proliferação de ditaduras latino-americanas, Gullar tinha escrito a sua obra-prima, Poema Sujo (1975). Poema-limite, vertiginoso na evocação da São Luís da infância do poeta, das histórias, personagens e sensações prestes a mergulhar no esquecimento da morte, Poema Sujo levaria o nome de Ferreira Gullar, de fato, ao panteão mítico dos grandes nomes da poesia brasileira, ao lado de Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto e — à parte a modéstia do próprio — Vinicius de Moraes.
Se ele não era exatamente o "último" naquela época, hoje não são poucos os que o consideram o maior poeta vivo do Brasil — e não apenas pelo impacto de Poema Sujo. Nascido José Ribamar Ferreira no dia 10 de setembro de 1930, o também dramaturgo, ficcionista e crítico se aproxima das comemorações de seus 80 anos de idade não como mero sobrevivente de uma era que passou. Ferreira Gullar é, antes, um intelectual e um escritor a quem não falta o gosto pelo estudo, pelo debate e, sobretudo, pela poesia. Só neste ano, a editora José Olympio prepara a edição de dois volumes: uma reunião dos poemas de cordel escritos pelo autor nos anos 70, ilustrados pelo artista paraibano Ciro Fernandes; e Em Alguma Parte Alguma, seu novo livro de poemas, o primeiro desde Muitas Vozes (1999). Além disso, a Nova Aguilar acaba de lançar Ferreira Gullar — Poesia Completa, Teatro e Prosa, um volume de mais de mil páginas que traz, além da obra poética completa acompanhada de farta bibliografia, a reunião de textos antes esparsos, duas peças de teatro e um ensaio inéditos.
São 60 anos de carreira, período em que ele atravessou, ativamente, todos os episódios decisivos da moderna poesia brasileira. Da mesma maneira que sua obra se localizou em algum ponto entre dois extremos — o lirismo e a sordidez, o local e o universal, a multidão de vozes e a solidão —, sua trajetória revela um poeta que oscilou entre a ousadia aberta e a prevenção contra os formalismos ocos. Parafraseando Caetano Veloso, pode-se dizer que Ferreira Gullar "entrou em todas as estruturas e saiu de todas", num movimento contínuo de experimentação de sintaxes em busca do aperfeiçoamento da própria voz — uma busca pelo novo em que ele nunca perdeu de vista suas origens.
Foi assim desde quando, ainda no Maranhão e incrivelmente atrasado em relação aos modernistas, Ferreira Gullar estreou na literatura, em 1949, com as redondilhas, decassílabos e alexandrinos de Um Pouco Acima do Chão, livro de lustroso sotaque parnasiano. "Talvez eu nasça amanhã", diz o último verso do último poema desse livro que ele, mais tarde, renegaria. Como se cumprisse uma profecia, o poeta, já vivendo no Rio de Janeiro, abandonou a régua e a rima no livro A Luta Corporal (1954). E o fez com autoridade e desassombro: na concepção de uma poesia visual, formada por estilhaços de palavras que exploravam novas possibilidades sonoras, Gullar não apenas superava certo prosaísmo que rondava a poesia do modernismo da época, como também antecipava os procedimentos do concretismo. Poeta visceral, ele, contudo, desembarcou do movimento atirando contra a racionalização "matemática" promovida pelo grupo paulista — Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos à frente. O racha provocou uma das cizânias mais persistentes e ferozes da literatura brasileira, até hoje responsável por uma resistência a Gullar em certos círculos de São Paulo.
O ciclo, poém, estava estabelecido. Inovador mas avesso ao dogma, Gullar deu prosseguimento, na prática, à profunda reflexão sobre o papel da poesia. Em 1959, lançou as bases do movimento neoconcreto, a partir do qual construiu o corpo principal de sua (polêmica) abordagem das artes plásticas. Já nos anos 60, ingressou no Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes, iniciando uma fase "popular" e engajada politicamente, cujas ramificações se estenderam ao teatro. Mas, se as frias ortodoxias estéticas não serviam a Gullar, o mesmo se aplicaria às normatizações de uma arte concebida como assessório da revolução social.
Na soma dessas idas e vindas, forjou a poesia que conquistaria Vinicius de Moraes. Naquele ano de 1976, foi Vinicius quem trouxe ao Brasil a fita cassete gravada pelo próprio Ferreira Gullar com Poema Sujo, promovendo "sessões" no Rio de Janeiro para exibir a todos a poesia "orgânica, crua, fecunda, emocionante" daquele intelectual maranhense que, no exílio, procurava traduzir a totalidade de sua própria existência.
O curioso é que a crueza de
Poema Sujo
— e também de
Dentro da Noite Veloz
(1975) — teve a capacidade tanto de elevar Ferreira Gullar àquele panteão mítico de poetas quanto de aproximá-lo (por conta das circunstâncias, inclusive) da "poética deliberadamente impura da poesia marginal", na expressão do crítico José Guilherme Merquior. Nesse momento, Ferreira Gullar, que voltaria ao Brasil em 1977, ainda trafegava naquele território entre os extremos. Viveu os movimentos do seu tempo, apontou caminhos, experimentou. Mas sempre, ontem como hoje, desempenhando o papel de tradutor de sua própria história, a de um homem que — como todos — está num ponto difuso entre a infância e a morte.