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JULIO CORTÁZAR (1914 -1984)
DISTRIBUIÇÃO DO TEMPO
Cada vez são mais os que crêem menos
Nas coisas que preencheram as nossas vidas,
Os mais altos, os incontestáveis valores de Platão ou Goethe,
O verbo, a pomba sobre a arca da História,
A sobrevivência da obra, a descendência e as heranças.
Nem por isso caem do céu do neófito
Na ciência que expõe máquinas na lua;
Na verdade, tanto faz que o doutor Barnard
Faça transplantes do coração
Era preferível mil vezes que a felicidade de cada um
Fosse o exacto, o necessário reflexo da vida
Até que o coração insubstituível pudesse dizer simplesmente basta.
Cada vez são mais os que crêem menos
Na utilização do humanismo
Para o nirvana estereofónico
De mandarins e estetas.
Sem que isto queira significar
Que quando houver um instante de inspiração
Não se leia Rilke, Verlaine ou Platão,
Ou se escute os nítidos clarins,
Ou se vislumbre os trémulos anjos
De Angélico.
POEMA DE JULIO CORTÁZAR TRADUZIDO POR JORGE HENRIQUE BASTOS
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ALGUNS NÃO DEVERIAM ESTRANHAR CERTOS FACTOS NA CIDADE DE LIMA
Erny:
teu olhar é como um rifle belga automático
- ano 1936 -
cheio de balas e um projéctil na culatra
para os dias húmidos na lembrança.
Para os lagos e o crespúculo.
Para os pequenos túmulos na berma das estradas.
A invasão do povoado palidamente sujo.
Para as cidades que adivinharam o meu regresso
Depois da madrugada, com a máquina fotográfica
com o seu olho eléctrico a descansar sobtre o abdómen.
Não é estranho para ti, velho Erny,
que és um búfalo à deriva num safari,
quando teu rosto sorri como o sol em Macchu Pichu,
ver-me a caminhar às margens do Rimac com uma bela
e suave mulher a escrever o seu nome em grandes combates
e sorri sempre das histórias que eu desconhecia,
a descobrir os factos quando as grandes
civilizações do seu sorriso revelavam acontecimentos.
Velho Erny,
apontavas o teu rifle entre a folhagem
às vezes vermelha, outras vezes violeta.
Nada é estranho para ti, velho corvo,
que me observas a correr em direcção ao mar próximo de Lima
e calar diante das ruínas que silenciam as coisas.
Algo assim como a pesca de atum perto da Florida
ou a caça em Bengala.
Nada é insólito para ti, que viu-me regreassar
a esta cidade sem razão aparente.
É óbvio que poderia amar
a adolescente durante o bombardeio de uma cidade
com corpos despedaçados.
Volto com a minha máquina fotográfica,
com a sua lente intacta na escuridão,
com o desejo cego de pássaros selvagens
que se arrojam em voo ao desconhecido.
Como a velharia que pensou esquecer
como se esquecem so desencontros e as indecisões
entre filmes de 35mm. E os fantasmas da fotossíntese.
Com temor não à dor
mas à inevitabilidade dos tornados que se formam na costa sul
e arrastam em confusão ódios e rancores,
árvores e algas marinhas.
Como os que afirmaram ser desta terra.
Com tua barba de feiticeiro,
és capaz de apontar com firmeza o rifle belga
do ano trinta e seis,
não ver os pássaros nem as nuvens de Kilimanjaro,
nem o relâmpago dos cantos de fúria das minhas memórias,
manejas o gatilho como se colocasses um disco de Mozart,
puxas a trava da arma e tens consciência que a bala está na agulha,
sóbria e oculta,
como uma mulher no instante derradeiro do amor, no último
suspiro.
Sempre o mesmo facto. O compassado e eficaz acto
de accionar o gatilho, sentindo-se rei.
Porque agora meu caro Erny,
a terra se ergue como altas catapultas
rubras ou verdes ou violetas
sobre as escarpas íngremes que lamentam o mar
e o meu corpo a cair ao chão
ferido de sangue e solidão pelas águias da noite.
POEMA DE MANUEL RUANO, POETA ARGENTINO