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EM LOUVOR DO TEMPO
Às vezes talvez uma simples dor no dedo mínimo de um pé ou o brilho nos olhos de uma mulher
que passa e passa decididamente decerto para sempre e sinto ser possivelmente essa mão
inconfundível devido a uma determinada pressão no ombro desde sempre esperada
sim talvez essa dor ou esse brilho ou esse brilho e essa dor simultaneamente
distraem-me do vento que roda lá fora que roda loucamente lá fora que roda como se rodar fosse para ele uma verdadeira maneira de ser que roda envergando todas as suas vestes de inúmeras peças tufadas compridas e transparentes
e ascende das areias invariavelmente passivas da praia humilde feminina sensível às constantes embaixadas envolventes do mar até às pedras altas do velho forte altas e altivas no cimo dasua altura e da sua idade
na forma de um vulto esguio redondo e rodopiante de pinheiro ou simples ampulheta ou clepsidra
O vento a essas horas incertas perdidas da noite quando a obscuridade desde há tanto que mais parece desde sempre cobriu com o seu manto todas as coisas designadamente os compridos corpos humanos
e abafou os miúdos inumeráveis ruídos que costumam acompanhar a luminosidade cega do dia
entoa então por vezes nas árvores e nas casas e em coisas como os arames e as mais variadas saliências da terra
o seu canto levíssemo levitante vagamente triste cortante mais cortante mesmo
que a faca cujo gume acaba de sair das múltiplas mãos dos móveis amoladores
um canto que faz lembrar o uivo de certos animais feridos talvez na raiz da sua sensibilidade
ou a súbita irrupção dos primeiros violinos numa sala abafada pelo
veludo das cadeiras ou as peles das senhoras da alta sociedade
um canto próprio inconfundível decerto inolvidável para quem uma noite o ouviu
dificilmente dicionarizável porque a essas horas os académicos dormem
sonhando talvez com o discurso de ingresso de um novo membro na academia
e o vento é de uma sociabilidade altamente duvidosa e canta canta nas dobras da noite
Eu estou deitado e então sinto a ponta das pés nos lençóis recém-mudados
sinto como mais uma parte do meu corpo os próprios lençóis
e imediatamente faço calar o coro que na rádio canta o messias de haendel
e abre assim um espaço que não é o do meu quarto mas sim o da catedral
de toledo aconchegada na penumbra de certas tardes dos fins de maio
O vento vem na sua suavíssima voz e toda a gente morre de súbito para mim
os cuidados deitados talvez comigo desaparecem inspiro profundamente
e sinto-me tão bem que até me parece penoso dizer que me sinto tão bem
não vá eu deixar porventura de me sentir assim tão bem não vá o vento calar-se
Deve haver algures no meu corpo um lugar expressamente reservado para a voz do vento
uma cavidade qualquer assim como as salas dos aeroportos destinadas às pessoas muito importantes
mas esta minha só para o vento a única pessoa muito importante agora para mim
As ramadas das árvores agora sim agora devem viver
agora devem manifestar vivamente que vivem
haverá talhadas luminosas e brancas na crista das inúmeras ondas do mar da baía
e eu oiço completamente o vento e ouvir o vento é suficiente para me sentir vivo
para sentir as amplas asas da paz abertas no peito no leve leque das suas penas
Desvaneceram-se decididamente na vasta sede da noite
as rápidas mulheres munidas de imensos pés que sem reserva amei
jamais imprimi palavra alguam nas páginas brancas do papel tão brancas e sucessivas como dias
não tenho passado nem coisas quaisquer a fazer acabo até agora mesmo de nascer
Neste momento sou apenas sou pelo menos desde os pés da cama até aqui à cabeceira a voz vasta do vento
e a minha cama range como quando pomos os pés nesses velhos sobrados onde se deixa grelando a batata entre
cresce o ritmo da minha respiração o pulso bate-me cada vez mais apressadamente
volto-me vagamente vagarosamente mais ou menos lá para donde pressinto que o vento vem
é possível que morra de um momento para o outro quando menos espere
e a cabeça me fique a baloiçar ao vento de um lado para o outro primeiro
de parede para parede do quarto depois lá fora entre leste e oeste
Há um vento impetuosamente solto na noite da minha vida um vento
mais louco do que mulheres esbeltas e lentas nos seus longos cabelos
e sinto que as pontas dos pés me chegam mais longe cada vez mais longe
e não leio na agenda nenhumas horas marcadas nem sei de locais de encontro o leve sabor amargo
não necessito tomar o metro pedir gim tónico que vá bebendo gole
a gole no bar desertió pensando talvez que ali esteve um dia hemingway esperando talvez como eu
saboreando o leve sabor amargo do gim desfazendo o limão vendo as cortinas esvoaçar ao vnto
O vento vibra na sus voz de vento alarga aos quatro cantos
aos inumeráveis recantoa da noite as espirais translúcidas do seu vulto
infunde uma vida irritante saltitante e irrequieta em coisas
como latas amolgadas e enferrujadas precisamente nas partes amolgadas
como madeiras apodrecidas pelo salitre e pela chuva como portinholas desengonçadas
o vento sopra na areia enverga as vestes cheias de folhos e dobras
da areia possivelmente para ter um mínimo de corpo e tornar-se visível
e bailar rodopiando no largo à volta do vulto do cruzeiro
e caminhar caminhar cada vez mais caminhar cada vez a passos mais largos
e proceder à sistemática ocupação dos mais recônditos recantos da terra
Vejo vislumbro através da janela levemente entreaberta
que o vento circula a muitos quilómetros por hora na estreita estrada
que o vento enche preenche o espaço arenoso indeciso e nublado entre estas poucas casas sonâmbulas
que passa a mão inquieta de muitos dedos abertos e dispersos e diluídos
primeiro aqui pela aldeia depois possivelmente por toda a terra
e não tardará talvez a elevar vales a aplanar muitos dos montes
num trabalho perseverante e esgotante e esgotante que são joão baptista e cristo
aliás ocupados com outras coisas se devem ter visto imporentes para levar a cabo
E eu aqui sem nenhuma memória abandonado até por estas paredes ainda há pouco à minha volta
apenas dispondo deste resto de corpo onde o vento pode à vontade
vibrar quanto quiser até quando quiser e assim vibrando
demonstrar que existe que vive e dizer eu sou o vento e nasci em tantos
do tal em tal sítio e a sua afirmação valer como um bilhete de identidade
Creio que morreria se não pressentisse não sei bem como
mas através de um latejo levemente diferente do coração
que o vento já tão irrequieto esta noite ficaria talvez triste
por ver desaparecer não um dos poucos amigos e admiradores veneradores
atentos e obrigados que talvez sinceramente tenha
não um espectador interessado do longo e variado festival que nestes momentos apresenta
mas uma coisa mais um obstáculo mais a demolir e a vencer
Tenho oito cadeiras trabalhosamente entrelaçadas no distante vime da juventude
quando pelas tardes de calma e calor me banhava na vala junto ao moinho
e os vimes os mais ginasticados emissários da vegetação das margens
cortavam em tiras a sombra que poisava ao de leve na água
tenho essas oito cadeiras disponho-as em fila com a seca solenidade de um cerimonial
e rígido e digno na minha estatura liberta enfim das volumosas volutas de barbitúricos
aguardo cheio de calma que o vento se sente multiplicadamente nas oito cadeiras que tenho
na casa caída e térrea que tenho na vida minuciosa e diária que tenho
Talvez o vento levante a voz aumente ainda mais de volume
convoque ventos de outros espaços e sopre na força irresistível da tempestade
e venha violentamente até mim e varra da minha casa
e varra da minha vida tudo absolutamente tudo o que não seja o vento
e sejam talvez coisas planas e chatas e domésticas e imensamente
miúdas e não disponham desta voz côncava do vento
Há nuvens negras que se deslocam apressadamente para o sul
há filas de canas que oscilam e fazem ao vento a elegante reverência da vassalagem
ou pelo menos da boa educação tudo se anima vibra soa na noite
O vento vai vencendo obstáculos dispõe cada vez de maior espaço
anexa pela violência territórios que ainda há pouconnlhe opunham certa resistência
ensaia agora agora a sua vastíssima valsa na ampla sala da noite
canta uiva produz esse inimitável som impossível de procurar nas páinas dos dicionários
afina a voz para as mais agudas notas do seu canto dilacerador e íntimo
Virá o dia muitos corpos afastarão finalmente da fronte os últmos véus do sono
muitos olhos procurarão a luz sentirei mais minhas as pontas dos pés
o canto quezilento e quebradiço dos pássaros no pátio nas árvores nos beirais
disputrá o lugar à voz do vento nos meus ouvidos
Voltarão primeiro um por um depois em bandos os cuidados
as pontas dos cabelos compridos de mulheres jovens entrar-me-ão para a boca
mas é provável é mesmo muito provável que algures nalguma parte profunda e perdida do meu corpo
continur vazia arejada e arrumada com o pó limpo uma sala
exclusivamente reservada à única pessoa verdadeiramente importante
até que um dia eu para sempre me veja disperso no vento e não passe
talvez de um secundaríssemo instrumento na complexa e simples orquestra do vento
POEMA DE RUY BELO QUE INTEGRA "TODA A TERRA", EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, FEVEREIRO 2003, E PREFÁCIO DE LUÍS ADRIANO CARLOS
A AGONIA NO JARDIM
A solidão avança como onda,
ausente
toda a luz
Saísse eu deste quadro,
poderia tocar o tronco amargo,
os ramos mais esguios dessa oliveira,
libertar-me das mãos
Podia ainda, se quisesse,
inventar vento
aproveitando a chama que ele
ostenta
Devo ceder a quê?
À história que contaram
sobre mim?
Eles não sabem da história mais de dentro,
a que me fez chegar até aqui,
sabendo finalmente:
que dizer sim
era morrer por dentro
que dizer não
era afogar-me nessa longa chama,
numa Palavra -
em mim
POEMA DE ANA LUÍSA AMARAL, do livro Ágora, edição Assírio & Alvim, Fevereiro de 2020
Alexandre O'Neill - (1924-1986)
A PLUMA CAPRICHOSA
Estou onde não devia estar
Estou no grande medo instintivo da minha mãe
no medo zangado e prático de meu pai
estou em ti no teu religioso medo
nas tuas lágrimas queixas e suspiros
de mulher ajoelhada
Estou na horrível palavra «querido»
quando tu a dizes encostada a mim
enlaçando-me com os teus braços de renúncia e cobardia
com os teus olhos de súplica silenciosa
com os teus olhos de humildade canina
enlaçando-me
a mim
teu amante teu senhor e teu filho
Estou no murmúrio de desgosto da minha família
da minha família imóvel diante de mim
da minha família poderosa
da minha família de olhar duro
da minha família de olhar terno
da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos
pronta a saltar-me em cima e reduzir-me
a mais um da família
Estou onde não devia estar
Estou ainda estou no verbo fugitivo
no verso enigmático palaciano e «puro»
no tapete de sonho que vai partir prò infinito
na palavra que desmaia de inanição e medo
do medo de dizer o que devia dizer e que não diz
tão doente ou mais do que eu
Estou onde não devia estar
Nos olhos do construtor que vê a fortuna a crescer
na consciência do médico que esquece o doente no seio da morte
no advogado que defende os interesses mais cruéis
no professor que se diverte a torturar as crianças
no general que manda fuzilar os inocentes
no polícia que procura por todos os meios a verdade
Estou onde não devia estar
Estou no compêndio de história onde a mentira se organiza
para proclamar uma «verdade»
Sou uma das intrigas de corte
uma das mais sinistras ou galantes intrigas de corte
sou a batalha dos Vinte-de-Língua-de-Fora
destroçando os Vinte-Mil-de-Coração-aos-Pés
sou a célebre resposta do Cavaleiro Trovão
ao insolente emissário dum rei inimigo
sou o mar de pão transformado em mar de rosas
só por causa do génio dum marido
Também apareço nas colunas do jornal
do jornal de maior tiragem e circulação universal
Sou o rapaz educado simpático filho de boas famílias
que deseja conhecer senhora de alguns meios
p'ra fins matrimoniais
ou o cãozinho que a mesma senhora entre os homens muito maus perdeu
numa hora de grande movimento
o cãozinho que queria fazer chichi e que disse Madame por favor espere aí
o cãozinho que nunca mais apareceu
Também posso ser visto no jornal
apanhando dinheiro aos que procuram um emprego
ou chamando com urgência uma alma capitalista generosa
p'ra financiar a ideia que trago na cabeça
No jornal já fui estúpido e perigoso como o senador
que ameaça reduzir o homem
a um pobre farrapo vacilante
Já fui a mulher tão simpática dum conhecido político
promovendo chás de caridade tricôs de caridade
enquanto o marido prepara mais pobres mais miséria mais chás de caridade
com aquele sorriso que todos lhe conhecem
No jornal cantei na festa do embaixador
e todos gostaram muito
Ofereci vinte escudos a uma pobre mulher tuberculosa
e todos acharam bem
Roubei cinco mil contos ao país
e todos foram no final das contas muito compreensivos
No jornal fui uma espécie de poeta oficial
no jornal fui uma ponte de propaganda sobre um rio de turismo
no jornal fui a República de São Salvavidas discursando na O.N.U.
fui Mimi Travessuras declarando-se encantada por cantar em Lisboa
fui o capitão Westerling a fina-flor dos aventureiros
fui J.J. Gomes homenageaso pelo seu pessoal
fui Teresa a conhecida importadora de carícias
disfarçada sob um monte de chapéus
Estou onde não devia estar
Estou na paisagem onde a linha do horizonte é sempre a fronteira da nostalgia
e a solução um penacho de fumo
o meu coração fumegando na linha do horizonte
A todo este azul chamo cobarde
e a cobardia está em mim como em sua casa
está nos meus versos mesmo nos mais corajosos
nas imagens que fabrico à espera que a vida chegue e me liberte
nos grandes lemas sonoros que ponho no meu caminho
Estou onde não devia estar
E o destino passa por mim como uma pluma caprichosa
passa pelos olhos dum gato
como o avião passa no céu do camponês
como a cidade passa pelo convalescente
que sai pela primeira vez
Nos olhos da mulher que não perdi nem ganhei
nos olhos que durante um segundo me compreenderam e amaram
na sua ternura quase insuportável
o destino passa
No amigo que é lentamente puxado para o outro lado da razão
e um dia mergulha na sombra que trazia em si por resolver
o destino cumpre-se e passa
Na praia nocturna que as ondas visitam e deixam
como as imagens que sem cessar me assaltam e abandonam
na espuma que esmago contra a areia muito fria
na mulher que me acompanha e comigose perde na noite
nos soluços de luz verde que um fasrol nos envia
o destino detém-se e passa
Na inesperada hora de felicidade
vivida um pouco a medo
como os amantes quando percorrem as ruas desertas dum jardim
um pouco a medo
como a breve noite de amor em que um homem se encontra e refugia
o destino demora-se e passa
Estou onde não devia estar
Mas basta
basta
basta
Que o discurso termine
É tempo é madrugada
No dorso dos objectos que me cercam
na mão que me sustenta e eu sustento
no fio desesperado destes versos
é madrugada
As primeiras
vagas de luz
tomam de assalto
os redutos da noite
Na sua guarita
o militar
é um monte de sono
uma pálpebra que bate desesperada
um cigarro impossível de acender
uma espingarda tão absurda como o frio
o sono
a hora
a vida
É madrugada
é definitivamente madrugada
Contra o azul do céu
o azul operáriolevanta-se nas ruas
a cidade estremece já é dia
já é dia claro
De novo o «sim» e o «não»
o café em todas as gargantas
e o primeiro cigarro que começa a trabalhar.
POEMA DE ALEXANDRE O'NEILL IN POESIAS COMPLETAS & DISPERSOS, EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIN, MARÇO DE 2017
O desejo do início e do silêncio
para que o instante seja a fábula do instante
O silêncio para dizer as palavras anteriores
É o centro talvez a suspensão a perda
o fundo: a ausência de cor
fundo incessante que procuro defender
do assédio do sentido contra
as presenças acidentais e a agitação da superfície
Sigo-lhe a curva oculta até à interdição:
como transpor a parede circular
das coisas?
Lá fora a forma opaca
e provisória do ar as mesmas marcas
coloridas a distraída escrita
do acontecimento As pessoas passam
inscritas na janela com as casas e as árvores
e a árvore negra na curva, o céu oblíquo
Um olhar geral penetra-me e na ausência
de uma perspectiva já não sou
uma visão do mundo mas a subterrânea
corrente das intensidades do desejo
Aqui reina a imagem de um olho global
e é aqui que invento a metáfora da Figura.
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA RETIRADO DO LIVRO "ANTOLOGIA POÉTICA" EDITADO EM 2001 POR PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE E CUJO PREFÁCIO, BIBLIOGRAFIA E SELECÇÃO É DE ANA PAULA COUTINHO MENDES
BALADA DOS AMIGOS SEPARADOS
Onde estais vós Alberto Henrique
João Maria Pedro Ana?
Onde anda agora a vossa voz?
Que ruas escutam vossos passos?
Ao norte? ao sul? aonde? aonde?
José António Branca Rui
E tu Joana de olhos claros
E tu Francisco E tu Carlota
E tu Joaquim?
Que estradas colhem vosso olhar?
Onde anda agora a vossa vida repartida?
A oeste? A leste? Aonde? aonde?
Olho prà frente prà cidade
e pràs outras cidades por tràs dela
onde se agitam outras gentes
que nunca ouviram vosso nome
e vejo em tudo a vossa cara
e oiço em tudo o som amigo
a voz de um a voz de outro
e aquele fio de sol que se agitava
sempre
em todos nós
Dançam as casas nesta noite
ébrias de sombra nesta noite
que se prolonga em plena angústia
aos solavancos do destino
e não consegue estrangular-nos
Sigo e pergunto ao vento à rua
e a esta ânsia inviolável
que embebe o ar de calafrios
Onde estais vós? onde estais vós?
E por detrás de cada esquina
e por detrás de cada vulto
o vento traz-me a vossa voz
a rua traz-me a vossa voz
a voz de um a voz de outro
toada amiga que me banha
tão confiante tão serena
Aqui aqui em toda a parte
Aqui aqui E tu? aonde?
POEMA DE MÁRIO DIONÍSIO RETIRADO DO LIVRO "POESIA COMPLETA" EDIÇÃO IMPRENSA NACIONAL CASA DA MOEDA 2016
MÁRIO DIONÍSIO
eis-te de novo minha pátria inquietante
de esquinas fugidias nua aos perigos
de novo o fosso aberto o passo instável
as porteiras olhando os vizinhos olhando
e o riso frio das ilusões denunciadas
nas clareiras do espanto abertas pelo escuro
de novo tu minha pátria invisível
dos pontos cardeais em chama lenta
de novo tu minha pátria forçosa
do silêncio gritante e desolado
de novo as portas se nos fecham e os olhos
passam de largo e fingem não nos ver
de novo sós nas ruas alvejadas e de novo
os tijolos primeiros nos degraus hesitantes
cada um em seu posto a estrada vive entre folhas que voam
cada um em seu posto ergue-se a vida ao alto
vem coração aqui está a tua pátria
vem coração operário de outras horas
vem ledo e forte pelos bairros tristes
nas macieiras rompem as maçãs
desponta loiro o trigo no chão negro
é entre mortos que o futuro floresce
POEMA DE MÁRIO DIONÍSIO IN "POESIA COMPLETA", EDIÇÃO IMPRENSA NACIONAL CASA DA MOEDA, 2016
ROSA ALICE BRANCO
MAOMÉ E A MONTANHA
RUY BELO
ENGANOS E DESENCONTROS
Canto o homem solar que pisa a neve
A palavra confirma-se em silêncio
as metáforas sobem as metáforas descem
O homem é desejo e não trabalho
é essa mesmo uma das suas definições
Todos os paraísos se baseiam no presente
mas ao matar a morte matam o prazer
O agora do corpo une-nos à morte
O que é que eu fiz da minha juventude?
pergunta tristão uma vez findo o sortilégio
que o unia a isolda a loura e do rosto claro
Canto esse antigamente esse tempo impossível hoje para nós
quando rivalen o súbdito de marc
com o furor dos amadores da cornualha
se apaixonou por brancaflor irmã de marc
e assim deu início a um conto de amor e da morte
Isolda amou tristão com louco amor
e ouvia o seu cantar como só canta
o rouxinol quando o verão acaba
Ambos refugiados na floresta de morois
vêem chegar a estação quente uma terceira vez
tão belos e imóveis como estátuas mas
marc o ingénuo tio de tristão
em vez da realidade via as aparências e
quanta tortura amor terá causado
A única época feliz do homem terá sido o neolítico
quando o momento triunfava do futuro
Aquele que depois se dedicou a edificar a casa de amanhã
foi vítima do quadro do presente
O paraíso é de anjos e animais
articulemos nós só a palavra vida
Com a frágil felicidade sempre ameaçada
tristão despede-se da sua loura amiga
e extrai o seu prazer do esquecimento
Pesa-lhe na cabeça um pensamento
aves do bosque sede ao seu serviço
E tristão busca isolda com
a cruz no crânio dos loucos de outrora
Quando o sol se levanta traz a claridade
deixai-os ir ao fundo da loucura no
país afortunado dos viventes
Mas nunca mais na vida a voltaria a ver
Cólera de mulher é coisa de temer
e a mulher de tristão fá-lo morrer
antes que chegue o navio de isolda
Sem alteridade não há unidade
A poesia pode muito para mim
pois vem iluminar os meus fantasmas
Quando uma sociedade se corrompe
corrompe-se primeiro a linguagem
A tarde escreve uma curva suave
Vou muito simplesmente com o vento
sem sequer conhecer que fujo de mim mesmo
O trigo na campina amadurece
passeio no jardim a cena passa-se no espírito
digo-te adeus e digo adeus à minha juventude
Falo desses teus olhos matutinos
coroo-te de flores ó donzela
tão branca como a cera alta como a gazela
Tens no olhar o prestígio da guerra
voz velada de sol talvez luar
Quero um país que tenha a minha idade
Sinto ter ante mim tempos sem fim
Chego ao termo de quanto pode amar um homem
Já não há uma pátria para mim
falas e logo o tempo se detém
na fragrante fragrância do teu rosto
que luz constantemente em abundância
O murmúrio da minha indignação
por graça da beleza e juventude ignora
o impuro comércio cortesão
Morrer é uma coisa que se vê
O teu amor cresce como uma árvore
há vozes de desgosto na separação dos corpos
Eu canto aves animais herbívoros ou carnívoros
e centra-se na tarde e cerca-me completamente
este crepúsculo esta hora de poetas
A noite entra depois pelas nossas janelas
e traz consigo pitagóricos gente que vive só pelos desertos
Eu porém vivo vou de cidade em cidade
Escrever-te é a maneira de te ter presente
deste satisfação a um amigo e companheiro
pagaste a dívida de amizade e de fraternidade
Por confia em ti nada perdi
é a ti que te quero e não abraços teus
addeus mulher amada mundo meu
Eu digo eu canto e logo o mundo faz-se
ó ave vida momentânea sobre as águas
Chorar eis tudo o que por fim me é possível
antes a sepultura para mim que para ti
eu prefiro seguir-te a enterrar-te
se morres despedimo-nos da vida
pensar-te morta é morte para mim
que a dor que for me chegue sem aviso
tudo menos o meio de ficar no receio
Mas se te perco tu que és a minha esperança
qual é então a esperança que me resta?
Mais amarga a mulher que a própria morte
mais amarga que a morte é a separação
e aí tu em paris e eu em argenteuil
Louvados os caminhos da mulher
e aquele que por eles caminhar
Em mim canta por vezes abelardo
e é a mim que heloísa tenta
por vezes agradar e não a deus
Os actos de um amor que for em mim contentamento
não podem apoiar agora a penitência
Os sítios e as horas nossas testemunhas
encontram-se na minha consciência
Deus sonda os rins e o que neles se esconde
artistas da mentira e da bajulação e canto a
desolada mulher do fim do mundo mulher que
não teme o tema da prosperidade
não a venha a vaidade a visitar
A morena é do sol que nela incide mas
tu virgem loura és o lírio da montanha
Introduziu-te o rei na sua câmara
e tocou-te de estrelas de mistério
Alterno a alegria com a dor
na pureza da prece perturbada
participo da angústia e do prazer
em tanto desespero quanto aspiro
Ando em prosperidade e aflição
sou um homem de júbilo e de pena
e rio tanto mais quanto mais choro
Arrebata-me o róbur do rubor
Galateia desdenha mas espera
enjeita mas seduz ao mesmo tempo
Eu faço uso da carne e roupa branca
à minha mágoa impus um fundo freio
como de tudo o que se vende no mercado
pois é de deus a terra e quanto encerra
Quando eu despertar hei-de aflorar o vinho
não darei importância a quanto não
me preparar para a definitiva posição
Há muito desertei da minha fé
são meus amigos pecadores e publicanos
recuso aquele que sonda corações e rins
não me suja comer com as mãos por lavar
Eu suportei o dia e o calor
deixai-me ao acabar rezar completas
Pequenino e submisso como um riso
eu canto o insensível pássaro do nada os
lençóis de linho sob o cáustico cloreto as
estampas antigas onde os anjos sobem
escadas de salvação com homens pela mão
de olhos cheios de sombra e de penumbra em
casinhas térreas esmagadas pelas chuvas na
consequente conclusão do verão
Eu canto a solidão do céu só entre céu e terra
palavras pitorescas proferidas num
discurso dominado pela erudição
combinações confusas e entrecruzadas a
vermelhidão do púcaro da peste
Eu canto as rosas de trepar abertas em fevereiro a
tesoura que podava pela tarde
as casas corpos definidos sobre a terra as
luzes da ceia abertas nos casebres as
covas que o vento cava na água do mar
esse mar bravo de muitos dias de fevereiro
Já os olhos das árvores abotoam
Viajo pelo tempo até ao porto da velhice
onde poisar a pluma da penumbra
Eu canto as violetas vistas nos teus olhos
canto a cega conspiração das tuas mãos canto o
paquete que aparelha para o mar a
missa rezada em capela escusa
naquela noite confidente e cúmplice
dos olhos das mulheres ardendo como tochas
Neste verão fechado em nevoeiros
de dias devassados pelo som da ronca
eu canto a tarde posta sobre a tua testa
a ressalga do mar na minha casa
nas minhas duas mãos nas minhas lágrimas
Eu canto o teu vulto evidente nesta praia
e lá na ponta o forte dando já o corpo ao anoitecer
e sinto aqui o mar mesmo na cama
valsar a toda a volta desta tonta vida
Eu canto o pássaro que poisa já no ramo ou
uma reviravolta de quadrante
que arrasta folhas mortas no outono
e retiro a cabeça das vidraças desta vida da
terra deixada da mulher amada no
furor ambulatório dos meus passos
Durmo cego no mais secreto mar
A vida é como um manto ó agustina
e o adultério não é fácil à mulher
como o não era no século sétimo anterior a cristo
quando alguém começava a esperar pela morte
ou no século doze quando a fonte de vaucluse
corria e o verão chegava sem eu esperar
e a voz da tempestade vinha na idade
Eu canto as tardes frescas qundo nas
repartições nos não congregam os cuidados
e as longas alamedas se cumulam de flores vermelhas
e as donzelas se embrenham em silêncios tão pesados como bofetadas
Canto as rameiras que usam nos cabelos uns pentes de pedras
e se lhes vêem as saias de baixo amarelas e lilases
e há mulheres nobres de rostos com tons de um verde-maçã e violeta
sob os ramos mais baixos de sinceiros
e outras árvores de folhas amarelas e reversos brilhantes como prata
e a voz de uma ave oculta em laranjeiras
pode subitamente provocar o pranto
Canto uma flor desconhecida que abre
seu ventre mate na íntima penumbra de florestas
quando em quase toda a natureza humana
a vibração de besta substitui a alegria
e as mulheres multiplicam os cabelos
de uma cor fulva e serpenteantes
eu canto o despertar da ira como um gesto inicial
quando não descoberto o mundo apetece e
nos poemas não cabem as ffelpudas folhas das nespereiras e
se sabe esperar meses pelo resultado de uma frase dita num salão
Eu canto a crueldade generosa e o febril fogo castigador
vivos no homem que não pervertia ainda
essa paixão vencida que há por baixo da mentira
canto o cansaço de quem cai na relva e sob a gigantesca tília
jaz quando as rameiras não eram ainda
as aves proibidas que só saem ao anoitecer
e a pequena pedra sua a sua água perlada
e há no manso mar nuvens que anunciam o calor
canto aquele português que não domina ainda
a face decomposta e deformada
mas onde se reflecte a luz do sol e onde cai a chuva
e que sabe saborear amoras bravas
e os caldos de sêmola aprecia
num retiro furtivo de evasão das mundanas congregações
canto o tempo em que havia colóquios mortais
debaixo das ameixieiras rutilantes
e o pecado não era tíbio e consentido
por mulheres que viviam na intimidade da sensualidade
e amavam quer o cheiro quente de um campo lavrado
quer a emanação olorosa da fruta
que amadurecia nas salas das casas
canto a miséria franca inda sem luvas
eu canto tudo isso ou não canto realmente nada disso
Canto o tempo dos gastos com as permanentes
deslocações da corte de uma terra para outra
e os cortesãos há séculos vergados sobre o chão
rodeados talvez de espargos bravos quando
os dias se passavam em amores
e nos mais variados exercícios de armas
e uma casta esmoler aliviava os precisados
sem em troca exigir-lhes as virtudes dos vencidos
Canto o tempo de sol e as pragas de gafanhotos vindas com a chuva
quando a sensualidade corroía já esse homem altivo
por se saber prestes a morrer
quando ninguém gostava da ambiguidade fugidia e fácil
e as mulheres se mostravam já capazes
da verdadeira compreensão da sensualidade
amiúde divinizadas perlos homens para as isolarem
Canto os contemporâneos dos homens ilustres
que mais tarde falhavam outra vez
quando a felicidade era um sofrimento já passado
junto de tílias perto de alguns pássaros
que caíam cerrados como pedras
canto os poços tão fundos que segundo os velhos
se ouvia o cantar dos galos nesse dia que havia para lá do fundo
quando havia inúmeros objectos cujo uso se esqueceu
e um silêncio pouco após ameaçado levemente
pelo cantar dos galos pelas flautas dos pastores
e a penumbra não era precursora da sombra
Eu encho o peito de ar e canto tudo isso
Que alguém ampare o que for que em nós espere
que alguma coisa dure antes de ir-
-se embora ó morna urna eterna e nocturna
ávida e lêveda dúvida lívida mas tórrida
parássemos e víssemos e velhíssimos nos embrulhássemos num
sensual servil lençol sob o dossel azul e mole
A área da matéria é vária e etérea
o átrio é pétreo e vítreo
mas a larva ou a erva que sirva para que a água ferva
que a vida a não absorva nem a ponha turva
que o debate debite azeite por quem opte e lute
Contemplo por exemplo o amplo tempo
onde o tema do drama recai numa trama
e o meu acto é um tecto para um grito
que gosto de ver roto quando luto num
segundo que descendo dura menos que subindo
muito menos que amando nada se me afundo ao
relento cego sossegado branco
Não mais hei-de voltar ao estaleiro onde me despedi de solteiro
na noite solitária de mãos dadas com o vento
Foi da maré vazante a vitória precária e aparente
da terra e sua gente sobre a pátria permanente
de peixes e corais conchas e tudo o mais
Eu canto as mulheres cabelos de sargaço e áticos narizes de aço
ou rostos de marfim que me perdem a mim
e entre elas tu comprida cabeleira
tanto tempo perdido coisas sem sentido
palavras para o teu ouvido flores do teu vestido
mulher que choro agora e ausente embora é comigo que mora
causa desta tristeza que me altera a natureza
enfim coisas insignificantes que hoje valem mais que antes
E aquele pinheiro positivo e uno
oposto aos fáceis fogos vesperais
pinheiro antes de mim e digno de respeito
mais profundo que um homem e que sabe mais
alheio às manhas que por si a própria vida tem
e muito mais as tem naturalmente quem
com paixão vive a vida e a vive sem medida
e a consente em imolar ao mar
que há muito ouve insistente chamar
e é complexo como a máxima mulher
Ó mar azul meu actual paul
ó catedral de angústia ó pequena réstia
dessa feliz felicidade que sei que não há-de
haver sem eu correr o risco de a perder
ó essa voz que cresce com o dia que desce
sobre esse pinheiro manso onde ainda me condenso
e não nesta miséria que é eu ser pessoa séria
Canto a vela cheia de vento que me arranca num momento
e me faz imolar ao mar que como um deus exige a vida de homens
que lhe ouviram a voz sentiram vocação e
cedo se iniciaram nos mistérios de um supremo ser
que na água que é rapidamente a mim me lava
E canto a neve que se atreve ao que me deve
névoa vinda do sul por sobre o mar azul
luz do lápis-lazúli que se azula
e açula a rasa solidão do mar
melancólica morte dessa praia ao norte
a praia onde desmaia toda aluz que saia
do dia luminar que lá ao longe vai levar
a alegria feroz da luz veloz
deixando sobre o mundo o grito do meu luto
ebulição da vida a custo reprimida
viola violenta que a luz é que sustenta
E sonho como fausto em renovar a vida
gesta já gasta que arrasta a flor da giesta e
sustento-me de ti mesa da vida posta
luz que me aquece quando tudo me arrefece
mulher que passas pela estrada branca
da vida amena ao som da leve avena
olhos redondos olhos como abrunhos
e que vergas à luz como uma verdadeira amendoeira
e morro muito a custo após o mês de agosto
dor dolorosa minha e do meu sonho
num pensamento ermo de um enfermo
que ora aspiro a frescura perfumada de um limão
termo e habitação da terra por deus dada
ora é meu destino a dor lida no olhar do pescador
e mesmo quando durmo em dor me afirmo
O meu desporto é a versificação
e troco o próprio verão por três quatro palavras
dessas a que é alheio o coração
Um verdadeiro pescador é dias que nas redes traz
uma vida não chega pra fazer um pescador
na consciência oculta e ignorada do seu tempo
Mas tantas coisas houve que passaram para mim
essa dor onde havia íntimas mulheres
largos ao sol quadros antigos tons de luz
recantos odorosos como a adolescência
essa prega dos lábios onde nasce o riso
o limiar da dor ou os acessos ao amor
tudo isso situado nas imediações dos olhos
Canto o homem que tinha ainda alguma voz no rio
que corria veloz pra preservar a limpidez e
no rosto um resto de malícia e de melancolia
e a voz na noite tanto esmorecia
que por cima do vento mal se ouvia
e os medronhos caíam as folhas buliam
na perfídia do perigo ou na nudez da perversão
Mas nada disso havia ainda nesse tempo
além do célere corcel do tempo que corria
do dispensável excesso de experiência
convite à convicção da consciência
terrível e terrestre turbulência
Eu canto a mínima ruína de queimar os dedos o
passo tão calculado como o de uma prostituta
infiltração nas íntimas instituições
pródigos monumentos a nós próprios e
o terrível turíbulo da torpe turbulência
abundância de mãos em máximas imersas
acção dispendiosa para a paz do mundo
Quem se busca a si próprio bruscamente afasta
o manto gotejante das águas tirrenas
do peregrino pertinaz de ítaca ou da
criança apenas convencida da recente vida
sem bem conhecer afinal como conseguida
A útil única e vibrátil vida que
no ríspido rigor real ainda vibra
no quente coração dos corajosos homens
ao ritmo de uma néscia narrativa
provém dos livros desse adolescente aberto
às grandes massas do instinto e risco
dificilmente tributáveis pelo fisco
Se aos deuses nada há a acrescentar
pouco lhes há também a retirar
e muitas vezes mesmo a invejar
Conhecesse eu as ruas tão bem como a vida
recebesse no rosto o bafo azul do nevoeiro
e as amplas janelas que de par em par
deixam entrar em casa imenso o mar
jamais haviam de deixar passar
a nesga negra da profunda negação
esse orgulho do sexo que odeia o segredo
as vozes do serão no morno ar às vezes
Canto a destra desenvoltura que amestra a desventura
e o castigo que traz a paz da culpa
e os grandes gritos só devidos aos aflitos
manto de insulsa água que rodeia as árvores
e o ríspido risco assumido vivo e a
rajada de luar humilde na calçada
Envelheci talvez. Tenho coisas atrás
essa cara convulsa agora causa de rerpulsa
os sórdidos recantos desse rosto
que um intenso gosto antes tivera em contemplar
o desnível possível à cascável acessível
alguém menor que a pedra inferior à onda
mais planta do que absurdo e árvore jamais
onde desprevenida se jogava a nossa vida
sem ser-nos devolvida alguma imagem
onde minimamente esparso ardesse o remorso
Sempre fora o meu mal evitar fazer mal
Esse espectro do nosso desespero o confidente
amara apenas essa rapariga
para a emancipar do infortúnio
Aqui sobre estas águas eu suspenso deixo
a vida até qualquer outro verão
onde outra vez procure em vão o que ora procurei
Eu canto a margem terra empedernida
que exagera e se mostra enfim tão indecisa
quanto antes entre terra e água e o
vento devorador dessas nocturnas raparigas
Das amadas mulheres só me ficam
as que no casamento buscam a legalização
do ouro que a especulação assegurou aos seus antepassados
hoje tão cintilantes quão discretas antes
Viram-se homens de muitos gestos mas de poucas mãos
e viu-se o ar mandado pelo mar
atravessar as ávidas janelas
e entrar de mansinho nas primeiras casas
representantes da cidade e dos seus habitantes
de sorriso escolástico nos lábios
As ondas de tão sôfregas mordiam
pretensas pedras mas afinal terra
e contra o cais as palmas como que batiam
na tragédia que toda a festa encerra
A cidade era parda àquela hora
naquele tempo em que nascem brancas maias
e a mais bela é a cor rubro-saturno
Névoa ou mágoa de sal tudo era azul
Toda a noite eu dançava entre as fogueiras
precisava de ouvir vozes humanas
para me dissipar a solidão
e queria viver e não morrer
e via corações nos cântaros de barro
e ria e ria mais ao vê-los rebentar
a golpes de espadim entre sério e a brincar
Onde estavam agora os amigos de outrora
que comigo corriam pelas praias
e a inocente fronte só de beijos me a cobriam
no correr dos dias?
Só me quedava ver escorrer das bocas negras dos mendigos
aquela água que corre das carrancas
quando a tormenta cerra o céu dos templos
As aves são um sol branco e maior
sobre o trigo que cresce e que decresce
como o homem que nasce e nascendo envelhece
e eu passo e vou e volto e então abro
os olhos sobre o rio do balcão do paço
e há um vasto espaço nos meus olhos
E canto a alegria de volúveis bailarinos
camareiros arautos fâmulos donzéis
e sonho que não mais acabará essa alegria
As casas as fachadas tudo se reveste de veludo
e casa por ladrões rondada é casa roubada
E a resina arde em meio da multidão
que enche as ruas onde então já danço
entre o aroma ou música que areja
os quartos já fechados desde há muito
que ergue casas já há muito demolidas
e uma voz ouvida e perdida
se vê pelo presente repetida
inicial lustral como uma madrugada
Que importa que no mundo morram os ministros?
É patriótico negar a nacionalidade
aos naturais de um país vencido
que só buscou no mar razão de ser. Eu canto a
memória fugitiva como a água
que parece estender alguma mão de paz
sobre a ácida lâmina de um sabre
Gente amarela e morna amordaçada
domina esse país aonde a ironia
dissimula a impossível alegria
numa vida que vai por mim contaminada
vida do largo da areia e do vento
À minha personalidade própria de poeta
na carne cerebral de que careço
a eternidade vem-me das papoilas
desfolha-se-me a vida como as pétalas das rosas
e pensei e li mais do que vivi
E só tu sobressais entre as demais
mulher eterna com a luz na fronte
e dominante agora em todo o horizonte
Humano mesmo se demasiado humano
povoam-me cidades sossegadas
de sonhos que semeiam as semanas
onde o só silêncio é soberano
Dobra-se a brisa à mão do meio-dia
a fantasia é fértil em verdade
e do presente obscuro português
algum futuro há-de enfim nascer
Do salmo lúgubre da luz final do dia
que já há quatro séculos se entoa
hão-de rasgar a noite portuguesa
as raparigas da cidade de lisboa
E eu hei-de voar ao vento do momento
Dizias qualquer coisa? Esta manhã? Perfeitamente
Madrid, 31/V/1977
POEMA DE RUY BELO IN «O TEMPO DAS SUAVES RAPARIGAS E OUTROS POEMAS DE AMOR»
JORGE DE SOUSA BRAGA
PORTUGAL
Portugal
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir
como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo mentira que o Infante
D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electrochoques e está a recuperar
aparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar uma pétala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
como me pude eu apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada de ressentimentos
O meu irmão esteve na guerra tenho amigos que emigraram nada de ressentimentos
Um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado na piscina municipal de Braga
ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional
Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho que Camões lá deixou
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca
(DE MANHÃ VAMOS TODOS ACORDAR COM UMA PÉROLA NO CU, 1981)
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
GRAFIA 1
Água significa ave
se
a sílaba é uma pedra álgida
sobre o equilíbrio dos olhos
se
as palavras são densas de sangue
e despem objectos
se
o tamanho deste vento é um triângulo na água
o tamanho da ave é um rio demorado
onde
as mãos derrubam arestas
a palavra principia
(MORFISMOS, 1961)
VITORINO NEMÉSIO
26
O anoitecer situa as coisas na minha alma
Como as cadeiras arrumadas
Quando os amigos partiram.
Meus degraus ainda têm a passada do adeus,
Lá quando uma palavra cria tudo,
E o resto, fechada a porta,
É posto nas mãos de Deus.
Então, à minha janela,
Tudo repousa e larga o aro dos conjuntos,
Tudo vem, com um gesto secreto e confiado,
Pedir-me o molde e o amor do isolamento,
Como se um desconhecido
Passasse e pedisse lume
E eu, sem reparar, lho estendesse:
Quando quisesse conhecê-lo,
Só a minha brasa ao longe,
Na noite que se faz pelo peso dos rios
E vive de fogo dado.
Assim nocturno, sou
O suporte de quem não tem para consciência,
Que é como não ter para pão:
As coisas cegas
Prendem-se a mim,
Ao meu olhar, que é único na noite
Pelo seu grande alcance de humildade,
E fico cheio delas,
Como estes sítios ermos, junto de uma cidade,
Cemitérios de tudo, lugares para cães e bidons velhos;
Fico cheio da pobreza e do sinal das coisas,
Como um retrato de gente pobre é pobre e gauche
(Vale a recordação),
Mas sinto-me, ao mesmo tempo, seco e cheio de tacto
Como se fosse o seu bordão.
Poema de Vitorino Nemésio (EU, COMOVIDO A OESTE, 1940)
FERNANDO GUIMARÃES
ANNA AKHMATOVA
Estou agora sozinha. A noite pronuncia os nomes necessários.
Havia outrora alguém que deixava cair sobre os meus ombros
a areia rugosa. Dissera mesmo, com um sorriso: "Os teus
ombros de clepsidra..." E eu sentia esse rumor límpido, que levava
as pessoas a fitarem-se durante instantes, com uma suspeita
inesperada; uma espécie de veneno, digo-vos. O olhar
pousado neste espelho imobiliza-se; os dedos que teceram
os dourados ícones esperam ainda. Ficou à minha volta
apenas um ligeiro odor de tabaco, porque há muito as conversas
esmoreceram. Recomeço o maquillage e sei como os dedos
perseguem um corpo frágil e destruído; ao tocarem
com cuidado as sobrancelhas ainda poderão erguer esse pó azul
que as transforma numa espécie de versos, quando Tomachevski
nos vinha explicar: "a rima é a forma canonizada, métrica
da eufonia." E sinto ainda esse rumor triste, que ficou perdido
entre as vozes ciciadas, agora tornadas cúmplices. Uma mulher
aparecera com uma ave destruída nas mãos; o ar ficou
iluminado e sabíamos que ela pensava ainda num voo
que se tornara impossível. Foi assim que pude ver à minha volta
esta renda que chegava da idade, o tremor límpido que percorria
os braços, o contorno apenas adivinhado das veias. Sabia
que devagar começara o tempo a envolver-me; atravessei
um jardim e olhei as pegadas deixadas há muito nos caminhos. Pensei
nos bolbos, nas escamas da terra. Junto às portas entreabertas podia ver-se
alguns sinais que não sabia interpretar: talvez as sementes que nasciam
da própria casa, e sozinha escutava o rumor que atravessava estes corredores
vegetais. Tornava-se maior a minha sombra
em cada quarto, um pouco inclinada para os móveis abandonados onde
ficou um pano
estendido como se esquecêssemos o seu peso. Recebo daqueles que amei
a luz; assim me inclino um pouco sobre esta mesa e inicio
uma leitura morosa, paciente. Por vezes, em qualquer recanto, escuto ainda o grito
agudo dos que se suicidaram e reparo num vestígio de sangue
nas suas têmporas: como um fio vermelho que marca as páginas
de um livro. - Ficou caída sobre os joelhos esta manta cujas pregas
componho devagar; atravessada pelo frio húmido, desce até ao soalho que
cuidadosamente
enceraram. Quase em surdina, alguém ao meu lado disse: "Espero a noite
e os cavalos que a seduzem." A noite... É nela que irei procurar os limites
silenciosos destas paredes a que me acolhi; a sombra e a luz confundem-se
sobre os meus cabelos que sempre gostei de ter um pouco curtos. Reparo
nos favos da casa; há uma janela próxima que estremece
quando as folhas a vêm tocar, e principio a escrever ali as palavras que
ficaram esquecidas.
Era assim que começava um poema ? Tornaram-se mais cansados os
gestos. Apenas sei
que caminho ao encontro dos companheiros que nunca pude esquecer, e agora
os meus passos são de água.
Poema de Fernando Guimarães in [Casa: O seu desenho, 1986]
Jorge de Sena
A MISÉRIA DAS PALAVRAS
Não: não me falem assim na miséria, nos pobres,
na liberdade.
Se a miséria e a pobreza
fossem o vómito que deviam ser posto em palavras,
a imaginação possuída e vomitada que deviam ser,
viria a liberdade por acréscimo,
sem palavras, sem gestos, sem delíquios.
Assim, apenas se fala do que se não fala,
apenas se vive do que não se vive,
apenas liberdade é uma miséria
sem nome, sem futuro, sem memória.
E a miséria é isso: não imaginar
o nome que transforma a ideia em coisa,
a coisa que transforma o ser em vida,
a vida que transforma a língua em algo mais
que o falar por falar.
Falem. Mas não comigo. E sobretudo
sejam miseráveis, e pobres, sejam escravos,
no silêncio que à linguagem faz
imaginar-se mais que o próprio mundo.
Poema de Jorge de Sena in "Antologia Poética" escrito em 5 de Agosto de 1962, edição Guimarães, Novembro de 2010
nunca mais quero escrever numa língua voraz,
porque já sei que não há entendimento,
quero encontrar uma voz paupérrima,
para nada atmosférico de mim mesmo: um aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça,
tanto a noite caminhando quanto a manhã que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo -
estou farto de tanto vazio à volta de nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence,
este mundo não é o outro mundo que a outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras línguas,
e estes livros, estas flores, quem me dera tocá-los numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema, um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo forte e silêncio
Poema de Herberto Helder, in "SERVIDÕES", editado pela Assírio & Alvim, Maio de 2013
O BOI DA PACIÊNCIA
Noite dos limites e das esquinas nos ombros
noite por de mais aguentada com filisofia a mais
que faz o boi da paciência aqui?
que fazemos nós aqui?
este espectáculo que não vem anunciado
todos os dias cumprido com as leis do diabo
todos os dias metido pelos olhos adentro
numa evidência que nos cega
até quando?
Era tempo de começar a fazer qualquer coisa
os meus nervos estão presos na encruzilhada
e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante
e a minha vida não é mais que um teorema
por de mais sabido!
Na pobreza do meu caderno
como inscrever este céu que suspeito
como amortecer um pouco a vertigem desta órbita
e todo o entusiasmo destas mãos de universo
cuja carícia é um deslizar de estrelas?
Há uma casa que me espera
para uma festa de irmãos
há toda esta noite a negar que me esperam
e estes rostos de insónia
e o martelar opaco num muro de papel
e o arranhar persistente duma pena implacável
e a surpresa subornada pela rotina
e o muro destrutível destruindo as nossas vidas
e o marcar passo à frente deste muro
e a força que fazemos no silêncio para derrubar o muro
até quando? até quando?
Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros: Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor
e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim e ao cabo
recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!
Quereria gritar: Dêem-me árvores para um novo recomeço!
Aproximem-me a natureza para que a cheire!
Desertem-me este quarto onde me perco!
Deixem-me livre por um momento em qualquer parte
para uma meditação mais natural e fecunda
que me afogue o sangue!
Recomeçar!
Mas originalmente com uma nova respiração
que me limpe o sangue deste polvo de detritos
que eu sinta os pulmões como duas velas pandas
e que eu diga em nome dos mortos e dos vivos
em nome do sofrimento e da felicidade
em nome dos animais e dos utensílios criadores
em nome de todas as vidas sacrificadas
em nome dos sonhos
em nome das colheitas em nome das raízes
em nome dos países em ome das crianças
em nome da paz
que a vida vale a pena que ela é a nossa medida
que a vida é uma vitória que se constrói todos os dias
que o reino da bondade dos olhos dos poetas
vai começar na terra sobre o horror e a miséria
que o nosso coração se deve engrandecer
por ser tamanho de todas as esperanças
e tão claro com os olhos das crianças
e tão pequenino que uma delas possa brincar com ele
Mas o homenzinho diário recomeça
no seu giro de desencontros
A fadiga substituiu-lhe o coração
as cores da inércia giram-lhe nos olhos
Um quarto de aluguer
Como preservar este amor
ostentando-o na sombra?
Somos colegas forçados
Os mais simples são os melhores
Nos seus limites conservam a humanidade
Mas este sedento lúcido e implacável
familiar do absurdo que o envolve
com uma vida de relógio a funcionar
e um mapa da terra com rios verdadeiros
correndo-lhe na cabeça
como poderá suportar viver na contenção total
na recusa permanente a este absurdo vivo?
Ó boi da paciência que fazes tu aqui?
Quis tornar-te amável ser teu familiar
fabriquei projectos com teus cornos
lambi o teu focinho acariciei-te em vão
A tua marcha lenta enerva-me e satura-me
as constelações são mais rápidas nos céus
a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo
Lá fora os homens caminham realmente
Há tanta coisa que eu ignoro
e é tão irremediável este tempo perdido!
Ó boi da paciência sê meu amigo!
Poema de António Ramos Rosa (O Grito Claro, 1958)
Eram sete e meia.
O mais tarde que podias entrar era até às oito
e depois das oito tornava-se reparado.
Havia ordem no mundo
e meia-hora para nós,
meia-hora que não foi como queríamos
meia-hora em que cada um de nós nos prejudicava
habituados que estávamos a não nos termos visto nunca.
Levámos meia-hora a combinar outra hora para nós
meia-hora que afinal só começou depois de terminada
ao despedirmo-nos até à vista.
E até tornar a ver-te
eu não me senti, nem a fome, nem a sede
nem outra vontade que tu,
fiz como os poetas
que apagam a realidade
para lhe pôr outra melhor por cima.
(Inédito)
Poema de Almada Negreiros in Revista Ler n.º 50, 2001
... Acuso!
Ai vida sem alegria,
Sem desespero nem nada!...
A gente deita-se..., é noite;
Levanta-se a gente..., é dia;
E a mesma porta fechada
Do lado de cada estrada,
De cada lado de cada!,
Finge de guia.
Assim, que posso eu fazer
Da minha alegria?!
Tinha alegrias profundas,
Só comparáveis
Aos meus desânimos...
... Tenho-as:
Mas esses dons inefáveis
Sobem-me à boca,
Volvem-se em azedume...;
Que eu renho dentes postiços,
Com cárie de verdadeiros.
Protesto...!, e com todo eu.
De que me vale?
Só como
O que me dão a comer
Os carcereiros.
Só bebo
O que me dão a beber.
Só tenho o que não é meu...!
...De que me vale?
("Acima, acima, gajeiro,
Acima, ao tope real!")
Ai tope real quebrado,
E conservado, embrulhado,
No quarto dos quatro muros!...
Eis o meu quarto:
Fechado;
Cortininhas nas janelas;
O tope real a um canto,
Mumificado:
... Como um violino sem cordas.
No chão, passeiam baratas:
Luzidias, bufas, gordas...
Aos cantos, teias de aranha:
... Como frangalhos de rendas
De sonhos empeçonhados,
Com insectos enredados;
Um cemitério de moscas
Pendente
Do tecto recto,
Como um pingente;
E eu..., a passear de alpercatas
E a declamar às paredes
Qualquer velha lengalenga
Com luas e pauis...
(" Vá, ... queres que te conte o conto
Das calças azuis...?")
O cemitério das moscas
Bate-me, às vezes, na testa.
Tropeço em cadeiras toscas
De pé coxinho...
E ao lado, o Senhor Antunes,
Que é meu vizinho,
Escarra tão virilmente
Que faz tremer as paredes...
A bela Dona Praxedes,
Senhora decente
Do quarto da frente,
Rompe vingativamente
Num sarcástico falsete.
E o papagaio da escada
Comente e repete:
"Má-raios de gente!,
"Tudo uma cambada...!
"Má-raios de gente!,
"Tudo uma cambada...!"
São palavras da criada.
Eis o leito em que me deito,
No buraco do meu quarto,
E em que sofro a dor do parto,
Que não acaba,
De Mim Próprio!
(... Clarões, incêndios, sóis, cúmulos,
Asas de anjos sobre cúpulas,
Passagens do Mar Vermelho...)
Eis o meu quarto, que cheira
A cisco, a velho,
E a vida podre e vazia...
Ai vida sem alegria,
Sem desespero nem nada!...
A gente deita-se: É noite.
Levanta-se a gente: É dia...
Boi gasto, sofre o teu jugo!
(... A unha maior, mordi-a:
Sabe-me a boca a sabugo...)
Puxa o teu carro!,
Sofre o teu jugo!,
Arrasta a tua charrua...!
E, se estás gasto de todo,
Podes ficar, alastrado
Na lama da rua...
Num travesseiro de lodo...
E revirando a quem passa
Um olho morto, vidrado,
Redondo, espantado, enxuto,
mas enorme,
Porque atrás dessa vidraça
Deus não dorme!
Poeta
De lábios de infante,
Cabelos de seda,
Sorrisos de luto...,
- Que pairas
Ao canto
Da janela baça?
Que sonho te enreda,
Que tanto
Desvairas?
Retira-te!, enfia
As mangas de alpaca.
E senta-te à mesa, e começa...
Inclina a cabeça,
Co'a língua de fora,
E copia, copia, copia, copia,
Com letra legível e opaca.
Ora agora,
Consegue que goste, e sorria,
Sua Senhoria
O chefe da secretaria.
... Assim, que posso eu fazer
Da minha alegria?
Acuso!, protesto!, acuso!
De que me vale?
... Teus versos,
São sérios, ou mangação?
Não sei o que são!
Tens mesa, e compras toalhas...,
Mas falta-te pão.
São soluços de ironia...
Ninguém tos compreende... E vão
Encher-tos de gralhas
Na tipografia.
... Assim, que posso eu fazer
Da minha alegria?
Que a bola que rebola achei-a pouca,
O tecto baixo e recto me pesou,
Pela frincha da porta o fumo entrou,
Por isso a fonte cantou rouca!
Por isso a fonte cantou rouca,
A fonte que Deus benzeu.
Que o mundo que lá passou
Lá se mirou...
, e bebeu!
Por isso, eu...,
"Por isso grito e gritarei,
"Do fundo da minh'alma até à morte:
"Aqui-d'el-rei! Aqui-d'el-rei!"
Poema de José Régio
NOTÍCIAS DO BLOQUEIO
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
Vai pois e notocia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensas delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se
Poema de Egito Gonçalves (1920-2001)
O espólio do poeta açoriano Antero de Quental existente no Arquivo de Cultura Portuguesa Contemporânea da Biblioteca Nacional passará a partir de hoje a estar on-line em http://purl.pt/14355.
A Terra dos Eleitos
Era então essa
a terra do segredo,
o espaço de ventura
prometido?
De abundância
e
de doces lugares,
em que o excesso de ser
contrariava
a existência parca
da viagem?
Era essa então a terra
da promessa,
o espaço de fortuna
dos eleitos?
Devia ser:
e líquidas fronteiras
ali foram traçadas
Feitas de leite e mel
para os eleitos
e de fel e de sangue
para os
outros
E se a morte te esquecesse?
Ficarias aí deitado, o olhar fixo noutros olhares. Silencioso,
ou a contar histórias de barcos, de oceanos e de mares,
de peixes e de turbulentos rios - até que a luz
poeirenta do mundo se extinguisse,
para sempre.
Poema de Al Berto in "Luminoso Afogado"