
CHARLES BUKOWSKI ||| 1920-1994
OS DIAS CORREM COMO CAVALOS SELVAGENS NAS COLINA
o telefone toca e normalmente é a mulher com
voz sexy da companhia dos telefones a pedir-me
que por favor pague a conta,
mas desta vez é uma voz, baixinho,
«meu filho da puta»,
e é o editor de uma dúzia de revistas
acerca de tudo, desde panfletos religiosos
a abortos faça-você-mesmo,
e pergunta:
«porque é que não ligaste?»
ao que respondo: «nós não nos damos bem.»
«catálise», diz ele,
«topas?»
«topo», digo eu,
e então conta que me viu
no n.º 5 da revista Crablegs and Muletears
e que estou a escrever melhor,
e eu digo-lhe que sou um principiante lento
e tendo apenas 42 anos
ainda tenho hipótese de espalhar areia
no jardim de Abdulah,
e ele diz vem até cá
quero que conheças um amigo meu
e eu digo-lhe que depois da corrida
lhe ligo...
é sábado está calor
e as caras gananciosas que passam apressadas
chupadas e secas e impossíveis
querem que me ajoelhe entre os lírios e reze
mas em vez disso vou a um bar
onde posso beber vodca com laranja do bom a 70 cêntimos
e as pessoas não param de falar comigo,
é um grande clube de corações solitários,
pessoas desertas por uma voz e por um milhão de dólares
e sem receber uma coisa nem outra,
e à nona corrida já estou a perder cem dólares
e um negro grandalhão vem ter comigo
e espalha sobre a mão os recibos de apostas do último vencedor
como música de violinos,
e eu digo
«está bem, está bem»,
e ele respondeu «estou com um par de canastronas
e agora elas andam à minha procura,
mas eu vou dar de frosques, vou trancar as portas
e embebedar-me.»
«está bem», digo-lhe, e ele vai-se embora
e eu pergunto-me porque é que tantos negros
falam comigo, e lembro-me de que
uma vez num bar um negro enorme me iniciou
numa coisa qualquer chamada Muçulmanos;
tive de repetir uma série de palavras complicadas e
bebemos toda a noite,
mas achei que ele estava a gozar:
não estou numa de destruir a totalidade da raça branca -
apenas uma pequena parte:
eu.
«de qual gostas?» pergunta-me um tipo
e eu digo «do 3.º cavalo», e ele diz
«o 3 está fora» e vai-se embora
e isso era tudo o que queria ouvir
e aposto 20 no 3,
peço um vodca-laranja
e vou até à última curva
onde, caso andes aqui há tempo suficiente,
consegues perceber qual será o vencedor
antes da recta final.
e eu estou ali quando o 3 passa por mim
distância e meia atrás do 6,
os outros estão fora,
e está renhido, os dois dão tudo por tudo
sem sinais de cansaço
mas eu tenho de reduzir a distância
e olho para o quadro e vejo que
o 6 está a 25 para 1 e eu estou só a 7 para 1
e com um bocadinho de sorte talvez consiga,
e consegui por três quartos de distância
e os sapos da minha cabeça alinharam-se
e saltaram por cima da morte (por pouco tempo)
e fui até lá buscar os meus 166 dólares.
estava na banheira com uma cerveja quando tocou o telefone,
«cabrão, onde é que estás?»
era o editor.
«apareço daqui a meia hora», disse-lhe.
«se quisesse alguma coisa de ti arrancava-to
à porrada», diz ele.
«está bem», digo eu «meia hora, então.»
dá para beber mais um par de cervejas.
é um sítio nas traseiras de South Hollywood,
uma pequena divisão com um esquentador
na casa de banho e metade do quarto ocupado
por uma estante de livros: bastante Huxley (Aldous), Lawrence
(não o da Arábia), e montes de tomos e volumes
de pessoas a meio do recreio
entre a poesia e o romance
sem a motivação ou disciplina
para escrever filosofia escorreita,
e ele tinha lá uma mulher
no último fio da juventude,
laranja-pálida, um bocadinho sem ânimo,
mas calada, o que era bomm,
e ele disse: «querida, dá uma cerveja ao homem»,
e eu atirei-lhe o meu último livro
onde inscrevi «para um connoisseur
de vagina e verso...»
e ele disse: «estás a ficar gordo, cabrão,
mas ainda ssim estás com melhor ar
do que da última vez
que te vi.»
«foi em Paris?», perguntei.
«Passadena, Calif.», respondeu.
«o Faulkner também morreu», disse eu.
«gostas da gaja?», perguntou,
«olha para ela.»
olhei para ela e agradeci-lhe a cerveja.
«formosos são os campos de França»,
disse eu.
«preciso de cento e cinquenta», disse-me.
«Jesus», respondi,
«ia pedir-te exactamente o mesmo.»
«ouvi dizer que o Harry voltou para a patroa.»
«sim. à procura de emprego. a pintar mobília. a fazer baby-sitting.
ele até foi bartender uma noite.»
«o Harry? bartender?»
«só por 3 horas. depois disse que ficou farto.»
«farto?»
«"farto" foi a palavra que ele usou.»
«preciso de cento e cinquenta.»
«quem não precisa?»
«o Faulkner não precisa», disse ele.
«o que é que será que ele mistura nas bebidas? tenho de desacelerar...»
a gaja mostrou-me uns poemas que tinha escrito e eu li-os
e não eram nada maus tendo em conta
que ela tinha sido concebida para
outras coisas e o resto da noite foi bastante chata,
sem porrada, too old to tango, tigre a dormir à sombra,
e prometi escrever um ensaio acerca do SIGNIFICADO DA
POESIA MODERNA que ele prometeu publicar sem ler
sabendo eu à partida que jamais o escreveria.
foi uma noite cheia de promessas, um tigre velho
e uma miúda. fui de carro para casa por ruas secundárias,
evitando a esquadra da polícia,
a fumar king-size e a entoar partes da Carmen
porque estava muito escuro e o Bizet guiava melhor do que
o Ludwig que estava preocupado com coisas mais importantes
estacionei e assim que abri a porta
o bebedolas do andar de baixo disse:
«ei, chefe, que tal uma fresquinha?»
tirei uma cerveja do saco e passei-a pela janela.
«preciso de um dólar», disse ele.
«isso é uma merda, não é? eu ia pedir-te exactamente a mesma coisa.»
«estás de mau humor», disse ele.
«claro», disse eu, «ouviste a última? o Faulkner morreu.»
«Faulkner? não era aquele jóquei daquela pista de corridas? Pomona Fairgrounds?
Rudioso? Caliente? conhecias o puto?»
«conhecia o puto», respondi
e subi as escadas.
não se passou nada o resto da noite, como dizem os Arkies(1),
e tinha alguns contactos a quem podia ligar,
4 ou 5 números, uns negros, outros brancos,
ums velhos, outros novos,
mas não parava de pensar em hospitais brancos
e em palmeiras à sombra,
e estava tudo sossegado, por fim havia sossego
e há momentos em que tens de voltar atrás
e olhar à volta, há um tempo para o Ludwig,
um tempo para as paredes,
um tempo para pensar no Ernest
e naquela caçadeira apontada à cabeça dele;
um tempo para pensar
sobre amores mortos, flores mortas,
todos os mortos, pessoas mortas que te dão um nome,
de Florida a Del Mar, Calif.,
toda a tristeza como um desfile
de doces imbecis desaparecidos,
água a correr em lavatórios,
meias lavadas,
roupões usados, deitados fora,
o mundo patinho feio
discretamente a escorregar para longe de mim
e eu próprio a escorregar,
um tigre velho,
cansado da batalha.
na manhã seguinte acordei com alguém a bater-me àporta,
ignorei, nunca vou à porta,
não quero ver ninguém,
mas continuaram com uma persistência delicada
então levantei-me e vesti o meu velho roupão amarelo
vozes abafadas vindas dos quartos
e abri a porta.
«estou aqui para ajudar as pessoas deficientes», disse ela.
«entre, entre», disse eu.
era uma rapariga nova 19, 20, 21,
olhos inocentes como o mapa do Texas
aberto de par em par sobre nuvens,
atravessou a sala e sentou-se
e eu fui à cozinha e tirei a carica
a 2 cervejas. os meus peixes-dourados nadavam como loucos.
entrei com as cervejas e disse
«o amor existirá sempre
porque as pedras alisadas pela inclinação
arrastam navios para o mar
arrastam gatos e cães e
tudo.»
ela riu-se e o dia começou sem
engano.
(1) Trabalhadores originários da Arcansas. (N. da T.)
POEMA DE CHARLES BUKOWSKI IN «OS CÃES LADRAM FACAS», COM SELECÇÃO E PREFÁCIO DE VALÉRIO ROMÃO, EDIÇÃO ALFAGUARA DE NOVEMBRO 2018