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CANÇÃO
Queria que estivesses aqui comigo, querida,
Queria que estivesses aqui comigo.
Queria que te sentasses no sofá
e eu sentava-me ao teu lado contigo.
O lenço, o teu podia ser,
e minha era a lágrima, até ao queixo.
Mas, claro, podíamos inverter
os respectivos papéis.
Queria que estivesses aqui xomigo, querida,
Queria que estivesses aqui comigo.
Queria que estivéssemos no meu carro,
meter as mudanças era contigo.
Quando parássemos, daríamos
por nós algures, numa costa ignorada.
Ou então regressaríamos
à nossa antiga morada.
Queria que estivesses aqui comigo, querida,
Queria que estivesses aqui comigo.
Queria não saber nada de astronomia
quando as estrelas aparecem e as sigo,
quando a lua a água coa
que a dormir se mexe e suspira sem parar.
Queria ainda que a lua fosse uma moe
da para te telefonar.
Queria que estivesses aqui comigo, querida,
aqui neste hemisfério,
agora que estou na varanda sentado,
a beber uma cerveja.
Cai a tarde, o sol está a pôr-se;
ouvem-se rapazes aos berros e gaivotas a gritar.
Que interesse tem esquecer,
se se lhe segue morrer?
1989
Poema de Iosif Brodskii
CANÇÃO DE BOAS-VINDAS
Esta é a tua mamã, este é o teu papá.
Bem-vindo sejas, carne e sangue da mamã e do papá.
Porque estás tão triste, pá?
Esta é a tua comida, esta é a tua bebida.
E também uns pensamentos, se a filosofia te é querida.
Bem-vindo sejas a tudo o que há na vida.
Esta é, praticamente limpa, a folha da tua vida.
Embora a modos que tarde, a ela sejas bem-vindo.
Sê, em todo o caso, bem-vindo.
*
Este ó teu cheque do mês, pagas tanto de alojamento.
Da natureza, o dinheiro é o quinto elemento.
Bem-vindo sejas a cada cêntimo.
Este é o teu enxame e o teu formidável cortiço.
Bem-vindo sejas ao lugar onde além de ti
vivem quase cinco biliões de castiços.
Bem-vindo sejas à lista telefónica onde o teu nome é protagonista.
Os dígitos são o desígnio oculto da democracia.
Bem-vindo sejas ao teu direito a seres notícia.
*
Este é o teu casamento, este é o divórcio.
Bom, a ordem é que não podes alterar.
Bem-vindo sejas ao casório; e mete-o onde não aleijar.
Esta é a tua lâmina da barba, esta é a veia do pulso.
Bem-vindo sejas ao terrorismo para teu próprio uso;
chama à peça "O Meu Médio Oriente Avulso".
Este é o teu espelho, a tua brancura dental.
No teu sonho há um polvo abissal.
Porquê esse grito animal?
*
Esta é a tua malga das pipocas, a tua televisão está ali ao lado.
O teu candidato está a passar um mau bocado.
Bem-vindo sejas ao seu arrazoado.
Esta é a tua varanda para veres os carros passar.
O teu cão olha-te contrito por tudo de merda sujar.
Bem-vindo sejas ao que diga para se justificar.
Estas são as tuas cigarras, além um passarinho,
a lágrima ao canto do olho cai dentro do chazinho.
Bem-vindo sejas a um infinito maninho.
*
Estes são os teus comprimidos no tabuleiro ambulante,
a tua desenganada radiografia arrepiante.
És bem-vindo a rezar daqui em diante.
Este é o teu cemitério, num vale que tratam bem.
Bem-vindo sejas à voz que diz "Ámen".
É o fim da linha, meu bem.
Este é o teu testamento e estes são uns quantos
beneficiários. Na igreja estão vazios os bancos.
Esta é a vida depois de ti, ou nem tanto.
*
E estas são as tuas estrelas que continuam a gostar muito
de brilhar como se nunca tivesses existido.
Lá terão as suas razões, meu menino.
Este é o teu post-mortem, sem sequer um rasto
de ti, especialmente do teu rosto.
Sê bem-vindo, e chama-lhe espaço.
Sê bem-vindo a onde não há ar para respirar. Mais,
dessa forma, o espaço assemelha-se ao que está por baixo,
e Saturno segura a coroa e a faixa.
Poema de Iosif Brodskii escrito em 1992 e retirado do livro "Paisagem com Inundação" edição Edições Cotovia 2001