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#3272 - FOZ DO TEJO, UM PAÍS

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

por Carlos Pereira \foleirices, em 26.01.23

FOZ DO TEJO, UM PAÍS

 

O rio não dialoga senão pela alma

de quem o olha e embebeu a sua alma

de olhares ribeirinhos no passado

ou à flor do pensamento no futuro.

 

É um país que fala dentro da fronte,

olhando as naus, navios, barcos pesqueiros

e o trilho das famintas aves pintoras

de riscos negros, que perseguem o odor

das redes cheias, as outrossim poéticas

familiares gaivotas. É uma costa inteira

de imagens de gaivotas dentro dos olhos.

São bocas a pensar razões da vida,

gargantas já caladas pela nascença e morte,

quando entre si se vêem ou juntas olham

o mar dos seus próprios dias. São cabeças

velhas de labutar, entre dentes cerrados,

as palavras mudas de um ofício no mar,

antigas de silêncio, como se no esófago

guardassem há muito a sabedoria de ir

enfrentar o mar, transpor o mar, estar.

 

Tal como um rio o mar só quer falar

pela dor e alegria de alma com que o chama,

há séculos na orla, um povo mudo,

com as palavras presas, guturais sem fôlego,

dentro de si, tão firmes no palato, artticuladas

na língua interior. E o mar é quieto ou bravo,

e a alma tensa de uma paixão secreta,

escondida atrás da boca, e sempre aberta,

tal como as pálpebras diante desta água.

Só a alma sabe falar com o mar,

depois de chamar a si o Rio, no imo

de cada um, recordações, de todos

os que cumprem na linha da costa o seu destino.

O de crianças, berços nascidos à beira-mar,

aleitadas por água marinha bebida por rebanhos,

alimentadas por frutos regados pela bruma.

Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar,

passam sem son na glotre, para nós mesmos dizermos

que o tempo já findou das caravelas outrora

e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora.

 

Também as varinas, fenícias áfonas no poema

que  as canta, sabem as formas, pelo olhar,

de serem mulheres com peixes à cabeça.

E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra

língua do mar, os nomes com que nos chamam

para o seu modo de levar entre as casas e o mar.

Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo

as de poetas, só as pancadas das palavras

no encéfalo parecem ser voz do mar.

 

É uma nação única de memórias do mar,

que não responde senão em nós. Glória, misérias,

que guardámos por detrás do olhar lírico

e da língua, a silabar dentro da boca.

Nunca chamámos o mar nem ele nos chama

mas está-nos no palato como estigma.

 

Dezembro de 1997

 

Poema de Fiama Hasse Pais Brandão in "Obra Breve", Edição 0976, Maio 2006, Editora Assírio & Alvim, Págs. 692 e 693.

 

 

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publicado às 17:04


#3270 - SEBASTIÃO REI

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

por Carlos Pereira \foleirices, em 25.01.23

SEBASTIÃO REI

 

Não chegou de manto

nem com lenço e pranto

 

Não entrou a barra

com pendão e amarra

 

Não veio em ginete

com a sua gente

 

Não voltou da guerra

com os mortos dela

 

Não voltou de púrpura

com  ferida ou sutura

 

Não voltou de coroa

nem ceptro a Lisboa

 

Não veio da batalha

com trajo de gala

 

Não trouxe burel

nem viseira e elmo

 

Nem trajou de estopa

nem demandou porto

 

Não veio doente

nem com mantimentos

 

Não chegou na frota

ou deu à costa

 

Nem alçou pendão

nem selo de mão

 

Nem veio às matinas

com saio de linho

 

Nem calçou pelica

com fivela e vira

 

Não voltou ao cais

nem em mês ou ano

 

Perdeu arraiais

e tendas de pano

 

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

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publicado às 12:40


#3269 - CANTO MARÍTIMO DA RIA

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

por Carlos Pereira \foleirices, em 25.01.23

CANTO MARÍTIMO DA RIA

 

De manhã o mar estende-se ao rés do Sol, 

banhamo-nos para cegar de luz,

nadamos através do halo de calor.

Poder sentir a luz a escorrer junto à boca

dá-nos a humildade e a pacificação.

Um sopro mergulha no fluido da luz

de onde talvez brotou ao ser nascido,

e é a minha alma que flutua

feita de moléculas de água.

Tudo em esplendor cintila, e imagino

que quando a alma de Heitor o abandonou

foi numa manhã ao  rés do mar de Tróia.

Tal como o Mediterrâneo este é um mar

parado sem o movimento, que é a onda

e o som, cingido entre os anéis de terra.

Tocou-me a água nos olhos extasiados,

seria esse o baptismo que ungiu

o meu dom das visões reais e irreais.

O mar é uma acha em brasa

que lacera uma das minhas faces,

por isso ofereci ao vento

a outra nas manhãs sombrias.

E dei o meu corpo à superfície lisa

que unia os quatro elementos,

ou seja a terra, o mar, o ar, o fogo

tal como quando os Gregos os pensavam.

Vendo as garças a voarem lentas

sobre os pequenos lagos ígneos

sei que se fossem comburentes

não vboltariam ao solo brancas e quedas,

como quando ostentam o colo

entre os juncos das margens similares,

e de súbito intuo que a Natureza

trouxe as garças para os altos juncos

e me levou a mim ao raso mar

onde o meu corpo bóia incandescente

jazendo quando dorme, ou morre, ou nasce.

A minha juventude amou a manhã

sabendo que ambas as idades são iguais,

mas o corpo arde plano na água do fogo

enquanto o Sol se queima entre a terra e o ar,

e somente os filósofos metereologistas

souberam separar os elementos juntos

na Natureza visível e invisível.

Volto a banhar-me na Ria, no silêncio,

no ardor, no sonho, na volúpia

e termino o poema com o mesmo

fogo interior sorvido pela boca

do verso inicial no pleno mar.

Não só nesta praia a saudade de Heitor

me é trazida pelo fulgor do mar

como a de um jovem morto outrora

por Valéry, pelo Sol e por Fauré.

Tantos mil anos-luz da imagem

de Heitor estão depois do seu vulto

quantos do vulto do jovem morto

mais me separa a saudade da imagem.

 

6/11/93

 

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO in «CANTOS DO CONTO» QUE INTEGRA "OBRA BREVE - POESIA REUNIDA", EDIÇÃO 0976, MAIO 2006, DA EDITORA ASSÍRIO & ALVIM

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publicado às 11:46


#2877 - CANTO DOS INSECTOS

por Carlos Pereira \foleirices, em 06.10.18

 Fiama Hasse Pais Brandão

 

CANTO DOS INSECTOS

 

Podia cantar as aves, mas os insectos

são um misto de aves, de astros e de átomos

que giram em órbita como as imagens de atlas

do Universo ou esquissos de átomos.

As aves são as almas regressadas

ou que vêm da matéria para nós.

Este besouro zumbe junto ao tímpano

a voz com a qual o Amado me bafeja,

afasta-se e aproxima-se entre as tílias

que plantei em nome de Wolfgang Goethe

e hão-de dar a flor fonte do sono.

Por baixo delas o gato semovente

mostra a harmonia da garra que lambeu

para lavar o filho, e reconhece-o

como se fossem gatos num só ser.

Rente ao solo pisam a matéria viva

que é a erva, a terra e os mil milhares

dos ovos que movem a Terra astro.

São esses os insectos que são pó,

que nos roçam os pés e nos transportam

entre o nascimento e a primeira morte.

 

Quando o besouro passa ou poisa aqui,

o seu contexto move-se, e não pode

deixar mudar sozinho aquele insecto

sem o real concreto que o envolve.

A flosa canta a sua identidade

sem saber que é única neste espaço

em que as aves, os animais e o poeta

enquadram os insectos, em fase larvar.

Canto os que vão procriar na terra

fermentada e os já pairam aqui

desde que me  senti tão similar.

O tempo é demarcado pela medida

do olhar que segue o sulco do insecto.

Tudo aquilo que está a ser olhado

aruma-se no verso com a ordem

que coloca os seres em relação recíproca

provável mas de evidência falsa

Ao poente o silêncio é o leito e o fundo

onde vibram os sons dde várias graças,

entre as agora espúrias aves canoras

o zum-zum estelar das moscas da tarde

anuncia a noite em que zumbe o Mundo.

A luz do Amado aconchega a noite,

acolhe o solitário na barca iluminada

e eis que o Rio tão próximo dá a imagem

da barca redentora que nos chama.

 

Ao cair da noite as tílias ficam

com as suas folhas secas de Outubro

à espera da manhã que as vai reter 

presas um pouco mais na luz espalhada.

Sentada no jardim vejo o crepúsculo

juntar o insecto, o gato e a tília,

e o que a Natureza une ante os meus olhos

nada o pode desunir naminha vida.

Canto o bater das asas mínimo no ar

como um sopro de aragem num rebento

ou o escaravelho que dobra o fio da erva

e nele dança na oscilação.

Estou aqui a amar e a contemplar

o esforço e a força de cada ser.

O escaravelho cai na mão do Amado

e à sua direita tem o seu lugar

quando for esmagado pelo algoz

que não esteja possuído de fascínio.

Não desisto de cantar os animais

e as plantas que no berço me embalaram

e me ditaram a voz própria dos poemas.

O coração palpita-me como o abdómen

da borboleta que vem beber o néctar

da tília, que eu esperarei ainda.

Estou a vê-la, ela sacia-se e afasta-se

na fuga que eu atribuo ao seu voar.

Também o ventre do gafanhoto lateja

e o do grilo, suspensos pelos ângulos

das patas que lhes prendo. Tudo

está aqui disperso e ordenado

entre a manhã aberta que inicia

e a outra noite que hora depois de hora

emudece os sons até á morte.

E o pânico e a paz nocturnos

juntam-se como todos os contrários.

 

Dia e noite os insectos percorrem

em redor de nós a sua elipse.

O moscardo negro veio cintilar

na futura manhã que se repete.

Cada voo entre o poente e o futuro

está imóvel como nós no Tempo.

Subitamente a borboleta defronta

o pequeno gato ágil não onírico.

Move sádico devagar o dorso,

rasteja e salta, ora prendendo-o

ora soltando o breve corpo alado

que facilmente a imagem assemelha

a um ciclâmen que se solta e adeja.

Verei se o fôlego do insecto não sufoca

no duro jogo da cria de felino

a quem o instinto tão cedo movimenta.

Ficarão longo tempo nesta luta

fortuita e repentina em pleno cosmos

como entre si combatem os iões.

A borboleta oscila entontecida

indignamente prostrada sob garras,

ela que é o símbolo visível

da metamorfose galáctica.

Também o gato é belo, mas fatal

no destino circular da borboleta,

inato caçador de sons alados

néscio e voraz ele desconhece

o ciclo em que se gera a sua vítima.

E mesmo sem metamorfoses, o real

muda, repete e imagina sempre,

e cada estádio não é um só estádio.

 

O Amado volta cada noite inteiro

assinalando o espírito e a carne.

Na manhã que decorre, o seu sinal

é a perene borboleta que resiste

e só há-de morrer na morte absoluta

em que a matéria se perderá.

Está viva sobre a relva, embora as asas

pareçam pétalas pisadas. Não voa,

e estremece a recordar o voo.

E a Mão direita que nos abençoa

marca no seu corpo a sombra do Sol.

 

29 de Outubro de 1993

 

POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - In "Cantos do Canto", retirado do Livro "Obra Breve", edição 0976, de Maio de 2006, editado pela editora Assírio & Alvim

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BIOGRAFIA DA RESPONSABILIDADE DA EDITORA "ASSÍRIO & ALVIM"

 

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publicado às 09:39


#2442 - CANTO DAS IMAGENS

por Carlos Pereira \foleirices, em 12.06.17

 FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

CANTO DAS IMAGENS

 

Ao princípio era só uma em cada olhar

após a grande divisão das águas

e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem

até ao seu século do real múltiplo

era una, única e própria. Dementes

chamou este cantor aos fotogramas

que roubavam à alma a unicidade

e deram aos olhos frívolos as figuras

plurais, idênticas, dispersivas.

Era somente uma a imagem mística,

dos entes naturais aos transcendentes.

Só uma esta vermelha afelandra

embora as suas irmãs se lhe assemelhem

e desassemelhem, cada uma, sempre.

O concreto pulsava neste ritmo

das coisas parcas, poucas, singulares.

E de repente, nos olhos do poeta

cada coisa reproduziu a imagem

inumeradamente, e a ideia

decaíra no  banal prolixo.

Antes, podia hesitar-se entre o modelo

e as sombras de Platão, agora as flores

malignas, podem reproduzir-se no mundo

nítidas, iguais, supérfluas.

Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire

e cada coisa vibra no seu mito,

e cada imagem cria o seu espírito,

e cada cópia fotográfica muda

na liminarmente máxima diferença.

Ao crítico e amante da Pintura

as dúbias imagens decerto deram

a cada rosto um só outro rosto,

a cada paisagem uma só tela.

Já os vidros, a água, a prata traziam

a incerteza aos traços, como se os olhos

que nos deu a Natureza nos fossem

infiéis. E o poeta pôde resistir

a esta perda das formas consagradas

e consubstanciais das coisas que ainda

ecoam a Criação como o eco cósmico

 

Poema de Fiama Hasse Pais Brandão escrito em 30 de Outubro de 1993 retirado do livro "Obra Breve - Poesia Reunida", páginas 558 e 559, com prefácio de Eduardo Lourenço, e edição da Assírio & Alvim n.º 0976, Maio de 2006

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Dramaturga, tradutora e poeta, formada em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa, exerceu actividade de investigação na área da literatura e da linguística. Revelou-se com "Morfismos", no âmbito da iniciativa Poesia 61, colectânea que reflectia uma tendência poética atenta à palavra, à linguagem na sua opacidade, na busca de uma expressão depurada e não discursiva. A criação poética de Fiama Hasse Pais Brandão impõe-se pela busca de uma expressão original, onde as palavras tentam evocar uma essência perdida, anterior à erosão do tempo e do uso corrente. A desconstrução das articulações do discurso e a sua metaforização provocam um estranhamento que conduz o leitor a despir a linguagem da sua convencionalidade e a entrever o acesso pela palavra pura a um tempo primordial. O critério de "amor pela leitura" que presidiu à versão de Cântico Maior pode, por extensão, ser aplicado à obra da autora que apresenta como fontes de emoção poética "o texto que cabe na pupila: o simultâneo, a grande cena das metáforas e das comparações, a Visão multiforme do Conhecimento (pus no coração a Sabedoria de Ezra), que é parcelar nas palavras e nas imagens e que só por acumulação diurna e através da absorção pupilar (como a do ar) tende para o Todo." ("Do prefácio de Cântico Maior", reproduzido em "Apêndice" a Obra Breve, 1991). Sob o Olhar de Medeia, a obra que marca a primeira incursão no romance por parte desta autora, foi publicado em 1998. Faleceu em Lisboa no dia 20 de Janeiro de 2006.

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publicado às 17:14


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