OBRA BREVE
Eduardo Lourenço, no prefácio a esta edição.
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Fiama Hasse Pais Brandão
CANTO DOS INSECTOS
Podia cantar as aves, mas os insectos
são um misto de aves, de astros e de átomos
que giram em órbita como as imagens de atlas
do Universo ou esquissos de átomos.
As aves são as almas regressadas
ou que vêm da matéria para nós.
Este besouro zumbe junto ao tímpano
a voz com a qual o Amado me bafeja,
afasta-se e aproxima-se entre as tílias
que plantei em nome de Wolfgang Goethe
e hão-de dar a flor fonte do sono.
Por baixo delas o gato semovente
mostra a harmonia da garra que lambeu
para lavar o filho, e reconhece-o
como se fossem gatos num só ser.
Rente ao solo pisam a matéria viva
que é a erva, a terra e os mil milhares
dos ovos que movem a Terra astro.
São esses os insectos que são pó,
que nos roçam os pés e nos transportam
entre o nascimento e a primeira morte.
Quando o besouro passa ou poisa aqui,
o seu contexto move-se, e não pode
deixar mudar sozinho aquele insecto
sem o real concreto que o envolve.
A flosa canta a sua identidade
sem saber que é única neste espaço
em que as aves, os animais e o poeta
enquadram os insectos, em fase larvar.
Canto os que vão procriar na terra
fermentada e os já pairam aqui
desde que me senti tão similar.
O tempo é demarcado pela medida
do olhar que segue o sulco do insecto.
Tudo aquilo que está a ser olhado
aruma-se no verso com a ordem
que coloca os seres em relação recíproca
provável mas de evidência falsa
Ao poente o silêncio é o leito e o fundo
onde vibram os sons dde várias graças,
entre as agora espúrias aves canoras
o zum-zum estelar das moscas da tarde
anuncia a noite em que zumbe o Mundo.
A luz do Amado aconchega a noite,
acolhe o solitário na barca iluminada
e eis que o Rio tão próximo dá a imagem
da barca redentora que nos chama.
Ao cair da noite as tílias ficam
com as suas folhas secas de Outubro
à espera da manhã que as vai reter
presas um pouco mais na luz espalhada.
Sentada no jardim vejo o crepúsculo
juntar o insecto, o gato e a tília,
e o que a Natureza une ante os meus olhos
nada o pode desunir naminha vida.
Canto o bater das asas mínimo no ar
como um sopro de aragem num rebento
ou o escaravelho que dobra o fio da erva
e nele dança na oscilação.
Estou aqui a amar e a contemplar
o esforço e a força de cada ser.
O escaravelho cai na mão do Amado
e à sua direita tem o seu lugar
quando for esmagado pelo algoz
que não esteja possuído de fascínio.
Não desisto de cantar os animais
e as plantas que no berço me embalaram
e me ditaram a voz própria dos poemas.
O coração palpita-me como o abdómen
da borboleta que vem beber o néctar
da tília, que eu esperarei ainda.
Estou a vê-la, ela sacia-se e afasta-se
na fuga que eu atribuo ao seu voar.
Também o ventre do gafanhoto lateja
e o do grilo, suspensos pelos ângulos
das patas que lhes prendo. Tudo
está aqui disperso e ordenado
entre a manhã aberta que inicia
e a outra noite que hora depois de hora
emudece os sons até á morte.
E o pânico e a paz nocturnos
juntam-se como todos os contrários.
Dia e noite os insectos percorrem
em redor de nós a sua elipse.
O moscardo negro veio cintilar
na futura manhã que se repete.
Cada voo entre o poente e o futuro
está imóvel como nós no Tempo.
Subitamente a borboleta defronta
o pequeno gato ágil não onírico.
Move sádico devagar o dorso,
rasteja e salta, ora prendendo-o
ora soltando o breve corpo alado
que facilmente a imagem assemelha
a um ciclâmen que se solta e adeja.
Verei se o fôlego do insecto não sufoca
no duro jogo da cria de felino
a quem o instinto tão cedo movimenta.
Ficarão longo tempo nesta luta
fortuita e repentina em pleno cosmos
como entre si combatem os iões.
A borboleta oscila entontecida
indignamente prostrada sob garras,
ela que é o símbolo visível
da metamorfose galáctica.
Também o gato é belo, mas fatal
no destino circular da borboleta,
inato caçador de sons alados
néscio e voraz ele desconhece
o ciclo em que se gera a sua vítima.
E mesmo sem metamorfoses, o real
muda, repete e imagina sempre,
e cada estádio não é um só estádio.
O Amado volta cada noite inteiro
assinalando o espírito e a carne.
Na manhã que decorre, o seu sinal
é a perene borboleta que resiste
e só há-de morrer na morte absoluta
em que a matéria se perderá.
Está viva sobre a relva, embora as asas
pareçam pétalas pisadas. Não voa,
e estremece a recordar o voo.
E a Mão direita que nos abençoa
marca no seu corpo a sombra do Sol.
29 de Outubro de 1993
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - In "Cantos do Canto", retirado do Livro "Obra Breve", edição 0976, de Maio de 2006, editado pela editora Assírio & Alvim
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BIOGRAFIA DA RESPONSABILIDADE DA EDITORA "ASSÍRIO & ALVIM"
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
CANTO DAS IMAGENS
Ao princípio era só uma em cada olhar
após a grande divisão das águas
e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem
até ao seu século do real múltiplo
era una, única e própria. Dementes
chamou este cantor aos fotogramas
que roubavam à alma a unicidade
e deram aos olhos frívolos as figuras
plurais, idênticas, dispersivas.
Era somente uma a imagem mística,
dos entes naturais aos transcendentes.
Só uma esta vermelha afelandra
embora as suas irmãs se lhe assemelhem
e desassemelhem, cada uma, sempre.
O concreto pulsava neste ritmo
das coisas parcas, poucas, singulares.
E de repente, nos olhos do poeta
cada coisa reproduziu a imagem
inumeradamente, e a ideia
decaíra no banal prolixo.
Antes, podia hesitar-se entre o modelo
e as sombras de Platão, agora as flores
malignas, podem reproduzir-se no mundo
nítidas, iguais, supérfluas.
Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire
e cada coisa vibra no seu mito,
e cada imagem cria o seu espírito,
e cada cópia fotográfica muda
na liminarmente máxima diferença.
Ao crítico e amante da Pintura
as dúbias imagens decerto deram
a cada rosto um só outro rosto,
a cada paisagem uma só tela.
Já os vidros, a água, a prata traziam
a incerteza aos traços, como se os olhos
que nos deu a Natureza nos fossem
infiéis. E o poeta pôde resistir
a esta perda das formas consagradas
e consubstanciais das coisas que ainda
ecoam a Criação como o eco cósmico
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão escrito em 30 de Outubro de 1993 retirado do livro "Obra Breve - Poesia Reunida", páginas 558 e 559, com prefácio de Eduardo Lourenço, e edição da Assírio & Alvim n.º 0976, Maio de 2006
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Dramaturga, tradutora e poeta, formada em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa, exerceu actividade de investigação na área da literatura e da linguística. Revelou-se com "Morfismos", no âmbito da iniciativa Poesia 61, colectânea que reflectia uma tendência poética atenta à palavra, à linguagem na sua opacidade, na busca de uma expressão depurada e não discursiva. A criação poética de Fiama Hasse Pais Brandão impõe-se pela busca de uma expressão original, onde as palavras tentam evocar uma essência perdida, anterior à erosão do tempo e do uso corrente. A desconstrução das articulações do discurso e a sua metaforização provocam um estranhamento que conduz o leitor a despir a linguagem da sua convencionalidade e a entrever o acesso pela palavra pura a um tempo primordial. O critério de "amor pela leitura" que presidiu à versão de Cântico Maior pode, por extensão, ser aplicado à obra da autora que apresenta como fontes de emoção poética "o texto que cabe na pupila: o simultâneo, a grande cena das metáforas e das comparações, a Visão multiforme do Conhecimento (pus no coração a Sabedoria de Ezra), que é parcelar nas palavras e nas imagens e que só por acumulação diurna e através da absorção pupilar (como a do ar) tende para o Todo." ("Do prefácio de Cântico Maior", reproduzido em "Apêndice" a Obra Breve, 1991). Sob o Olhar de Medeia, a obra que marca a primeira incursão no romance por parte desta autora, foi publicado em 1998. Faleceu em Lisboa no dia 20 de Janeiro de 2006.