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#2001 - O DESAPARECIMENTO DA MINHA MULHER

por Carlos Pereira \foleirices, em 19.05.16

 António Lobo Antunes

O meu filho nunca fala da mãe, o cão nunca fala da dona. Sou eu quem o passeia agora, às vezes fico séculos à espera segurando na ponta da trela que ele se decida entre dois pneus, cheira o primeiro, cheira o segundo, hesita, reflecte. Nota-se a indecisão no seu focinho

Ilustração de Susa Monteiro

Ilustração de Susa Monteiro

 

Faz domingo à tarde quinze dias que a minha mulher saiu para passear o cão e não voltou mais. Ia com a roupa normal, sem bagagem, claro, sem dinheiro

(ainda há umas moedas em cima da mesa da cozinha)

nem sequer maquilhada, nem sequer muito bem penteada, exactamente conforme costuma andar em casa, de cabelo preso às três pancadas com um gancho, era só uma volta ao quarteirão para o bicho se aliviar contra um pneu, e até hoje. Telefonaram duas ou três vezes do emprego a perguntar se ela estava doente, respondi que não e se calhar fiz mal porque não telefonaram mais, provavelmente já a substituíram porque o que não falta por aí é gente à procura de trabalho, a mãe dela não sabe de nada, o irmão dela não sabe de nada, a Dália, que é a melhor amiga, não sabe de nada, eu e o meu filho claro que não sabemos de nada, não tomou café no café, o sujeito que mora dois prédios a seguir ao nosso e estava a limpar o carro dos pombos e das folhas das árvores viu-a passar com o bicho pela trela, ainda se cumprimentaram, ainda sorriram um ao outro, a minha mulher pareceu-lhe completamente normal

– Educada como sempre, amigo

a senhora do rés do chão mais à frente, que costuma estar sempre à janela, trocou um

– Boa tarde

com um

– Finalmente já cá temos a primavera

a minha mulher voltou na rua que conduz à praceta com o busto do matemático num canteiro e, que eu saiba, mais ninguém recorda nada conforme me explicaram na esquadra da polícia

– Tirando o vizinho e a velhota não temos informações

a fotografia que saiu no jornal com a descrição dela não trouxe novidade alguma, não apareceu nenhum cadáver no rio, os hospitais népia, a morgue népia, evaporou-se por aqui onde nem sequer há um buraco aberto no alcatrão por causa de um cano ou assim, portanto sumiu-se para cima mas que eu saiba não voa, mesmo que subisse e baixasse os braços o peso dos sapatos mantinha-a na calçada, não tem grandes amizades no quarteirão porque não é pessoa de conversas compridas, aliás mesmo em casa pouco falava, herdou isso do pai que não soltava um pio, sentado no sofá a fumar sem se abrir com ninguém, o cão, esse, regressou sozinho, com a trela de rojo, porque na manhã seguinte estava a porta de casa a gemer. O meu filho trouxe-o para a cozinha e não larga o cesto, enrolado lá dentro a olhar-nos, porém esse não fala, experimentei passeá-lo eu, depois de lhe dar a cheirar um vestido da minha mulher que tirei do armário, procurando entusiasmá-lo

– Busca, busca

mas urinou num pneu e foi tudo, a seguir ao pneu começou logo a puxar-me na direção do prédio, saudoso do cesto, sou eu quem cozinha agora para o miúdo e para mim, quem vai às compras ao fim de semana, quem dá uma espécie de limpeza nas três assoalhadas, não tão bem como ela mas pronto e quanto à minha mulher continuamos na mesma, não está, não telefona, não escreve, não mete a chave à porta, claro, vou dizendo ao rapaz que a mãe foi de férias e ele um soslaio calado, só lhe falta o cigarro para ser igual ao avô, acho que a pouco e pouco me vou habituando à sua falta, guardei-lhe os chinelos no armário dado que não precisa deles, não tarda muito deito-lhe a escova de dentes no lixo, enfio as três ou quatro joias que tem na gaveta, ofereço os trapos dela ao prior e acabará por ser como se nunca houvesse morado aqui. É possível que surja outra mulher, é possível que não, não tenho tido tempo para pensar nisso porque andamos lá no emprego a preparar o balanço e por conseguinte o patrão e eu trabalho que não acaba, se calhar devia sentir saudades porém que me dê conta não me atacaram ainda, às vezes falta-me um corpo ao lado a meio da noite, não posso dizer que muito mas falta-me e depois esqueço, torno a adormecer e pronto. Isto de há quinze dias para cá, quando a minha mulher saiu para passear o cão e não voltou mais. Parece-me aliás que o meu filho e eu já começámos a esquecê-la. Pelas minhas contas dentro de um mês já não existirá nem rastro dela neste andar, cada vez lhe recordo as feições de forma mais vaga e quem diz as feições diz a maneira de falar, os gestos, o que ela gostava de comer, essas coisas que dentro de nós compõem uma pessoa e tudo isto acontece sem dor, sem lágrimas, claro, sem tristeza até. Sem espanto igualmente como se ela não tivesse existido e cada vez mais não existiu de facto. E se não existiu de facto para quê ralar-me? O meu filho nunca fala da mãe, o cão nunca fala da dona. Sou eu quem o passeia agora, às vezes fico séculos à espera segurando na ponta da trela que ele se decida entre dois pneus, cheira o primeiro, cheira o segundo, hesita, reflecte. Nota-se a indecisão no seu focinho, ergue a pata para um, ergue a pata para o segundo, olha um terceiro, acaba por se decidir por um tronco, não inteiramente satisfeito

(compreende-se pela expressão que não inteiramente satisfeito mas enfim)

até se aproximar de mim numa resignação mole, e tornamos devagar para casa um ao lado do outro como dois amigos de há muitos anos que já esgotaram as conversas. No meio disto só um pormenor me preocupa: é que eu possa, como a minha mulher, sumir-me também e o miúdo tenha dificuldade em se amanhar sozinho, mas julgo não existirem razões para me inquietar: ao fim e ao cabo a gente habitua-se a tudo não é? E ele graças a Deus é uma pessoa como as outras, isto para além de haver imensas bolachas no armário da cozinha.

 

TEXTO DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES publicado na Revista  VISÃO online de 19 de Maio de 2016

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