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Manuel de Freitas
GRANDE HOTEL DE PARIS, QUARTO 312
Um amigo meu disse-me para nunca
meter gaivotas num poema.
O que seria fácil noutra cidade qualquer,
onde o ruído do seu voo não acompanhasse
tão de perto a minha insónia, a vaga
inquietação do teu corpo adormecido.
Alastra da Sé aos Clérigos, um alarme branco
que a janela deste quarto aceita há mais de
duzentos anos. Serão outras as gaivotas
e as cabeças que, depois de muito ou nenhum
sexo, se rendem ao limbo brasonado dos lençóis.
Mas eu vim para a casa de banho escrever
este poema simples, cheio de versos inúteis,
que me exige as horas que não tenho.
Sem ele, teria sido um dia grácil e ligeiro
como a morte, duro e inaceitável
como a vida. Pois consegui, antes destes
adjectivos todos, comprar o belo e o sublime
por menos de oito euros. E o livro que Jorge
de Sena dedica sem gaivotas, «à cidade do Porto».
Deveria ser fácil como um beijo, este poema.
Mas não. Chegamos à janela e só vemos
lixo, prédios devolutos, uma coroa
de terra a esboroar-se.
E invejamos,
das gaivotas, a pungente desrazão do voo,
essa alegria de não ter palavras
sob o céu limpo que nos mata.
Poema de Manuel de Freitas dedicado à memória de Jorge de Sena - in Terra Sem Coroa
Às vezes, por breves instantes,
a beleza habita sobre a terra,
tão urgente e impronunciável
como o rosto em trompe l’oeil
na abóbada da igreja de São Roque.
Com isto, estarei talvez a fazer
a mesma triste figura da rapariga espanhola
que ao meu lado rabiscava poemas
dialécticos – «Argumentos» e Contra-
Argumentos» velozmente incinerados
pela fundamentação física do génio.
Nós, poetas, só escrevemos disparates.
A beleza, dizia eu. Mas os meus pés,
o seu indiscutível peso sobre a terra,
coincidiam com o mármore da sepultura
número 44 (dois terços de paixão, outro de pó).
E aquele homem ajudava-nos a morrer
melhor.
LEONARD COHEN, 1979
Era bem claro, nessa noite,
o quanto a sua música
se afastava de «other forms
of boredom advertised as poetry»,
denúncia que se mantém válida.
Não serão bússolas duradouras
– tudo, enfim, falece –,
mas são palavras que nos protegem
da avalanche dos dias e dos meses,
destas poucas horas a que chamamos nossas.
Uma maneira de voltar a morrer?
Talvez,
quando até nas cinzas encontramos lume.
PINA BAUSCH, 2008
Müller,
Café Müller.
A morte sabe onde fica.
[in Jukebox 2, de Manuel de Freitas, Colecção Poesia Portuguesa Contemporânea, Teatro de Vila Real, 2008]