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Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-nos!
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre, para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar o corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado às ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ò arquitectos! Mas choraremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ò arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade: vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.
Poema de Mário Cesariny, página 193, do livro "POESIA", edição Assírio & Alvim, Novembro de 2017
ESTADO SEGUNDO
No meio duma vedação circular, esperava a ocasião favorável
a ignominiosos projectos de entrada. E todas as noites, depois
do jantar, a comissão de dança abarrotava de gente.
Examinaram o anel pondo-o de parte, ainda dentro do quarto.
Qualquer coisa ardia ao contrário, com frieza de ânimo e contrariamente à expectativa.
Fixaram, também, com virginal indignação, o grande quadro a óleo que pendia do tecto,
certamente um ex-militar pois no seu casaco farraposo havia fitas de medalhas.
A cancela rangia docemente quando, na mão de alguém, uma ponta de preocupação se tornou de um
cinzento pouco recomendável.
- Não, muito obrigado...
O dia surgiu a partir da fachada. Não havia neles cabelos bancos nem uma só linha que estivesse seca.
POEMA DE MÁRIO CESARINY RETIRADO DO LIVRO "POESIA", PÁGINA 265, EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM (PORTO EDITORA), NOVEMBRO DE 2017
Mário Cesariny
Poesia
Edição, Prefácio e Notas - Perfecto E. Cuadrado
Editora - Assírio & Alvim (Chancela da Porto Editora)
1.ª Edição - Novembro de 2017
Distribuição - Porto Editora
Páginas - 773
no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno
e no país no país e no país
onde as lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só atá à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço
e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora aí está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato
Poema de Mário Cesariny (1923-2006)