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As listas são um instrumento crítico de grande relevância, pois trazem, subjacente, um conceito de literatura — este conceito talvez seja mais importante do que as obras escaladas. Ao escolher apenas dez romances brasileiros eternos, segui alguns critérios: não repetiria livros do mesmo autor; privilegiaria obras que trouxeram alguma inovação formal; e daria preferência a livros que fossem mais do que uma história, que tivessem um valor metonímico, representando um período literário, um painel histórico, um grupo social, uma tendência estética. Podem ser considerados como marcas comuns a todas as narrativas listadas o desejo de construir um retrato do Brasil e o investimento em uma linguagem identitária — cada título, logicamente, à sua maneira. Teríamos aqui então um pequeno mapa do grande romance nacional.
Uma desconstrução do Brasil, por meio da ironia, que escancara a hipocrisia da nossa elite dirigente no século 19. Machado de Assis dá voz a um narrador defunto que, longe da vida social, pode zombar do caráter das pessoas com quem conviveu. O romance também é importante por se valer de novas técnicas narrativas, fazendo-se a obra mais inovadora daquele século.
É o precursor da autoficção, um romance carregadamente autobiográfico, centrado nas desilusões do menino Sérgio em um colégio que era tido como o melhor o país. Ele descobre a falsidade e os comportamentos sórdidos de um mundo onde não há lugar para o amor e a amizade. Escrito com um cuidado de poeta parnasiano, este é o romance brasileiro em que a linguagem literária chegou ao seu ápice.
É a obra que faz a passagem da língua mais formal, de matriz lusitana, para a linguagem quente das ruas, que representa os seres marginais em um Rio de Janeiro que sonha com a modernidade. Aqui, Lima Barreto acompanha o drama de um mulato inteligente, que é violentamente discriminado por sua cor, o que o autor promove é uma naturalização da linguagem para dar espessura humana a atores sociais que nunca haviam sido protagonistas na literatura brasileira.
O mais divertido retrato do Brasil como um país que vive contemporaneamente em todas as idades do continente, no período pré-cabralino, no Brasil dos viajantes estrangeiros, na Colônia, no Império e na modernidade. O grande feito do livro é transformar as características do homem nacional tidas como defeitos em elementos positivos de nossa identidade malandra, ao mesmo tempo em que elege a pilhagem nos documentos como uma forma de invenção selvagem.
Um romance montado com cenas avulsas, a partir de quadros, em que Graciliano Ramos acompanha a rotina desesperadora de nordestinos que vivem de fazenda em fazenda, isolados do mundo. Fabiano e Sinhá Vitória têm que tomar uma decisão crucial, eternizar este ciclo de exploração ou tentar dar aos filhos o estudo que eles nunca tiveram. Mais do que um romance sobre a seca e o nordeste, é uma narrativa sobre o poder da linguagem.
É a obra máxima do Ciclo da Cana de Açúcar, construída com recursos narrativos modernos, longe da memorialística de outros livros do autor. Em “Fogo Morto” ele transforma em mito e em fantasmagoria o fim de um período colonial da história do Brasil, mostrando a falência do modelo social dos engenhos, do qual ele se sente órfão. Aqui, a matéria nordestina ganha uma estrutura narrativa de planos que se sobrepõem, condensando todo um tempo.
Verdadeira enciclopédia do Sertão, este romance avança barrocamente para todos os lados, mostrando um narrador sertanejo que usa filosoficamente a linguagem, modificando-a para tentar dar vazão aos seus questionamentos interiores. Riobaldo narra para nos e para se convencer de sua inocência em relação a três episódios centrais: o pacto que ele teria feito com o diabo, o fato de amar em Diadorim (a guerreira travestida de jagunço) a mulher e não o homem e as mortes que ele comete na jagunçagem.
É o livro mais importante de Clarice Lispector, marcado por uma estrutura solta, que não tem começo nem fim — inicia e termina com reticências. O que o leitor acompanha é parte dos intermináveis questionamentos de uma narradora atormentada pela necessidade de se conhecer, ampliando metaforicamente o eu e o agora até os primórdios da vida no planeta.
Ambientado no litoral carioca, este romance coloca em cena um narrador mentiroso, que gosta de contar vantagem, mas que revela, em cada episódio, a sua ingenuidade de roceiro. O coronel que acreditava em lobisomem é completamente enganado por figuras urbanas, cifrando o fim deste mundo mítico, que não tem mais continuidade no presente. Aqui, a linguagem sertaneja ganha um colorido deslumbrante para cifrar o descompasso deste mundo.
Obra monumental, de incorporação da cultura popular, que se apresenta programaticamente inconclusa, na qual o narrador, preso por seu envolvimento com um episódio trágico do sertão (a degola de animais e pessoas para instaurar o Império da Pedra do Reino) constrói o romance como uma peça de defesa, tentando nos convencer de sua inocência. Farsa e fanatismo dão a tônica ao romance.
Miguel Sanches Neto, doutor em Teoria Literária pela Unicamp, é autor, entre outros, dos romances “Chove Sobre Minha Infância” (Record), “Um Amor Anarquista (Record)” e “A Máquina de Madeira”.
A Alma Encantadora das Ruas, de João do Rio, Edição Companhia das Letras, 1997, Editora Schwarcz, Lda, Brasil
"Acredito no rio Amazonas desde que eu era menino. Meu pai foi quem primeiro me falou dele. Disse que sua largura era tamanha que o lado de lá não se via. Eu, acostumado a pescar lambaris em ribeirões e riachinhos, ouvia ele dizer que o rio maior que tinha visto, o Grande, perto do Amazonas não passava de um mijinho de menino. No Grupo decorei e recitei feito poesia os nomes dos afluentes dele: Juruá, Tefé, Purus, Madeira, Tapajós, Xingu. Aprendi também sobre a pororoca, briga que o rio perde sempre, porque o mar é maior do que ele. Assim é a vida: o mar tem sempre a última palavra... Mas o que me fascinava mais, mesmo, era a notícia de uma planta de folha tão grande que nela se podia deitar uma criança. Tudo era assombroso.
Acreditei sem nunca ter visto, só de ouvir dizer. Acreditei tanto que cheguei mesmo a viajar para lá para ver o rio. Quem vai é porque acreditou. E vi com estes olhos, e quando o quero rever releio o poema de Heládio Brito:
Eu vim de ver o rio
o frouxo ir das águas,
pesadas delas mesmas,
grossas das lonjuras vindas
no irem sendo rio.
Líquido boi cansado
carregado de peixes,
trabalha o rio
para os homens da margem,
que ao suado lombo lhe fustigam
com seus anzóis e redes...
Cheguei mesmo a navegar nas suas águas, se atravessar de balsa é navegar. Não, não é não. Quem navega com a cabeça fora d'água nada sabe. É preciso mergulhar, penetrar fundo nas águas. Mas, para isso, serai preciso que fôssemos como os peixes. O Guimarães Rosa amava tanto os rios que desejava, numa outra encarnação, nascer crocodilo. Nós, humanos, só conhecemos os rios na superfície. Os crocodilos os conhecem nas funduras. Nas funduras os rios são escuros e tranquilos como os sofrimentos dos homens. Essa eu não sabia, que os sofrimentos são escuros e tranquilos.
Aí ele diz uma coisa inusitada: que o rio é palavra mágica para conjugar eternidade. Eu havia aprendido o contrário, que o rio é palavra para conjugar tempo. Pelo menos foi assim que ouvi de Heráclito, o filósofo: "tudo flui, nada permanece, tudo é rio..."
Mas lendo as Escrituras Sagradas percebi que certo estava o João: "a eternidade mora no fundo das águas, no fundo do tempo". Quando Deus quis fazer artes mágicas com Jonas, jogou-o no mar, onde um peixe o aguardava de boca aberta, e por três dias ficou na fundura das águas, como feto na barriga da mãe, até que se transformasse em profeta. O que não é muito diferente das metamorfoses que fazem um poeta - portanto confirmado pela Cecília Meireles e pelo T.S. Eliot que afirmam que, para fazer poesia, é preciso ter olhos de peixe. Não é por acaso, portanto, que o ritual mágico para transformação do velho em criança, a que se dá o nome de "batismo", siga a metáfora do afogamento e do nascimento: o adulto é mergulhado, de corpo inteiro, nas águas de um rio: o velho que mergulha morre; a criatura que sai das águas é menino.
Não é por acaso, portanto, que o peixe seja, a um tempo, símbolo poético e símbolo profético: é que ele nada nas funduras do tempo, onde a eternidade gera os seus milagres.
Na superfície do rio é o tempo que flui, sem parar. Assim estava escrito nos carrilhões antigos, aqueles relojões enormes de pêndulos sem pressa: tempus fugit - o tempo passa, a vida vai se perdendo nas águas do nunca mais. Resta então a saudade sem remédio, caso tenha havido amor e alegria. A festança ao fim do tempo só se justifica se amor não houve, nem alegria. A perda da coisa amada não pode ser festejada. Só pode ser lamentada.
Mas pensando no que dizem os poetas e profetas, eu me descubro transformando o choro em riso: os que semeiam com lágrimas com alegria ceifarão, pois Deus é o rio mostrando as suas entranhas. No fundo, na eternidade, as águas correm ao contrário, disso sabem os peixes, que nadam contra a correnteza - a alma também; na superfície a gente nasce nenezinho, tempus fugit e a gente fica adulto, tempus fugit e a gente fica velho, tempus fugit e a gente morre. Nas funduras, onde mora a eternidade, é ao contrário. Primeiro é a velhice. Aí tempus fugit , a gente vira menino.
Deus começa sempre pelo fim. Nas Escrituras Sagradas o dia começa com a tarde e termina com a manhã. Está escrito no poema da Criação: "E foi a tarde e a manhã do primeiro dia..." O sol se põe, mais um dia se inicia. O fim é o lugar do começo.
Ao recitar as estações do ano a gente, automaticamente, diz: primavera, verão, outono, inverno. Mas lendo D. Miguel Unamuno percebi que isso não está certo. O tempo é uma roda. Se nas Escrituras o dia começa com a tarde, no ano as estações podem muito bem se iniciar com o inverno. Inverno, primavera, verão, outono... O inverno é a infância do ano. No seu silêncio profundo a primavera está em gestação... No silêncio do fim moram os começos. No silêncio da velhice mora a infância...
Tem gente que acredita em Deus com firmeza, do jeito mesmo como eu acreditava no rio Amazonas, por ouvir dizer - chegando a discorrer com autoridade, invocando teologia e dogma, feito o meu pai, que ensinava sem nunca ter ido ou visto. Não mergulha, por medo de se afogar. Agora eu acredito em Deus como crocodilo ou peixe, para me des-afogar... Eu preciso dele para o tempo andar ao contrário. E é assim que eu o imagino, como um pescador que vai lançando nas águas do tempo as redes da eternidade, para pescar tudo aquilo que foi amado e que se perdeu. Para nos devolver. É o "eterno retorno". É a "ressurreição dos mortos". É a primavera nascendo do inverno. É a criança nascendo do velho.
Isso eu desejo do ano novo, criança nascida do velho; que eu seja mais criança do que fui."
CRÓNICA DE RUBEM ALVES PUBLICADA NO LIVRO "SOBRE O TEMPO E A TERNIDADE", EDIÇÃO DA PAPIRUS, SPECULUM, 1995, BRASIL.