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Jorge Amado e José Saramago - Com o Mar por Meio é uma curta mas tocante troca de inconfidências e agrados entre dois dos maiores autores da língua portuguesa do século XX. A reunião e seleção da correspondência será lançada oficialmente na sexta-feira, já madrugada de sábado em Portugal, na Casa José Saramago, em Paraty, cidade sede da FLIP, feira internacional de literatura que começa hoje. Paloma Jorge Amado, filha do escritor brasileiro, e Pilar del Río, mulher do autor português, estão à frente da iniciativa.

 

NOTÍCIA RETIRADA DO DIÁRIO DE NOTÍCIAS

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publicado às 13:28


#2133 - A Europa na Geografia da História

por Carlos Pereira \foleirices, em 18.01.17

VASCO GRAÇA MOURA

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"Antes de mais eu queria agradecer este convite para vir a Santa Maria da Feira e ainda agradecer, pela sua presença aqui, ao José Saramago com quem, desde há muitos anos, tenho uma excelente relação de amizade e de grande admiração pela sua obra. Acontece que no meu curriculum isso está exarado, uma vez que fui Presidente do Júri que,em '86, atribuiu o Prémio D. Dinis a O Ano da Morte de Ricardo Reis, antes, portanto, do Prémio Nobel. E, singularmente, tanto O Ano da Morte de Ricardo Reis como um outro livro que José Saramago publicou mais tarde, e de que eu, devo dizer incidentalmente, gosto menos,Jangada de Pedra, consistem de algum modo em meditações sobre a Europa. A Europa dos anos trinta, no caso de "Ricardo Reis", portanto a Europa das inquiteções que se desenhavam e acumulavam no horizonte europeu a partir de '36; a Europa da adesão de Portugal e Espanha à CEE, no caso da "Jangada". Esta Europa foi objecto de uma meditação sob forma, digamos, de parábola literária por parte de José Saramago. Por sinal na Jangada de Pedra, trata-se de uma parábola extremamente clara da concepção que o José Saramago fazia, e faz ainda hoje, de um papel histórico para Portugal e para Espanha como ponte priveligiada situada no Atlântico, algures entre o Brasil e África; concepção que eu respeito, não correspode à minha, mas que é, sem dúvida, importante e tanto mais 

importante o é quando se trata de obras excelentemente bem escritas e coroadas, no seu conjunto, por um prémio da envergadura do Prémio Nobel.

 

Devo também dizer que comungo de algumas perplexidades, provavelmente não com o mesmo fundamento ideológico, que foram expressas por José Saramago. Sou profundamente céptico, por exemplo, quanto à veleidade federadora da Europa, tal como parece estar a desenhar-se no quadro da Convenção. Sou profundamente céptico quanto à maneira como certas ópticas de Bruxelas encaram uma série de problemas sectoriais e gerais da Europa. E penso, sobretudo, que a Europa existe, que é um continente com um conteúdo e que tem uma série de traços específicos, muitos dos quais, de resto, exportou para fora das suas fronteiras, mas penso também que há uma coisa que falta para que possamos falar de uma verdadeira cidadania europeia. Não é apenas uma maior transparência, uma mais cuidada e completa informação dos cidadãos sobre o que se passa nos centros de decisão das instituições europeias; a questão é que não temos uma relação afectiva com a Europa. Podemos ter uma excelente relação intelectual, podemos problematizar, construir, desenvolver, tecer todas as considerações que quisermos sobre a Europa, a História da Europa, a Geografia da Europa, o papel da Europa no mundo, mas falta-nos aquilo que nos une à nossa terra, que une aos que são daqui a Santa Maria da Feira, aos que são do Porto à cidade do Porto, aos que são portugueses a Portugal, aos que são espanhóis a Espanha, aos que são italianos a Itália, falta essa componente afectiva que faz com que, por exemplo, um americano quando fala em the nation, a nação, ponha a mão no peito e se sinta norteamericano. Nós, nesse sentido, ainda não nos sentimos europeus, e vai certamente faltar bastante tempo para que consigamos (o que não quer dizer que vamos desistir). Posto isto, queria abordar o tema que me foi proposto: "Dante ou Shakespeare, qual o poeta desta hora absurda?". E, de algum modo, temos de considerar que há uma matriz europeia que permite pegar em dois autores tão diferentes como Dante ou Shakespeare e tentar, a partir deles, encontrar uma resposta a esta questão. Eu devo dizer que prefiro transformar este díptico, Dante ou Shakespeare, num tríptico, e acrescentar um terceiro nome que é o de Balzac, porque penso que ele abre algumas pistas importantes para a questão. E, por isso, vou utilizar partes de um ensaio que tenho andado a escrever, de que farei uma síntese, que é mais ambicioso, digamos assim, mas que nalguns aspectos é mais do que um título, prenuncia, de algum modo, quanto a esses autores aquilo que no século XX já veio a chamar-se o teatro do absurdo, ou seja, uma certa consciência do absurdo, na sua forma de espectáculo, ou, pelo menos, de encenação.

 

Penso que Dante, Shakespeare e Balzac são os três maiores autores da literatura ocidental, depois de Homero. O José Saramago ainda não chegou à canonização post mortem, portanto não tem que figurar nesse panteão, e digo isto com muito boas razões: um dos maiores críticos americanos - agora permitam-me um parêntesis - Harold Bloom que, de resto, fez há tempos uma conferência sobre José Saramago, em Lisboa, acaba de publicar um livro chamado Genius (génio), em que procura percorrer a obra de uma série de génios, para ele praticamente todos europeus, e ligados àquilo que ele considera ser o cânone ocidental; ora bem, na introdução ele diz: "Só falo dos mortos e não falo de Saramago porque ele ainda não morreu", o que é, portanto, um bom álibi para mim, por referir Dante, Shakespeare e Balzac como os três maiores autores da literatura ocidental, depois de Homero, e que são, também em minha opinião, os que mais profundamente compreenderam e organizaram na sua obra o espectáculo da condição humana no confronto violento dos seus comportamentos, dos sentimentos e dos conflitos com as normas supostamente aplicáveis e os chamados códigos de comportamento corrente.

 

Cada um à sua maneira, não apenas pela via do teatro, porque só Shakespeare é que no fundo cultivou o teatro, eles dramatizaram, no caso de Dante, o percurso do ser humano pela via da regeneração estra-terrena, o chamado status animarum post mortem, o estado das almas depois da  morte; no caso de Shakespeare, a paixão amorosa e a paixão política e o seu terrível efeito nos protagonistas, no caso de Balzac, o papel do dinheiro, do interesse económico e do individualismo egoísta como mola real das sociedades modernas. São três vias do espectáculo no sentido globalizador. Provavelmente são, para a nossa civilização europeia, no plano da criação literária, as três matrizes principais dela, para além das múltiplas metáforas que o termo espectáculo proporciona.

 

São três vias do espectáculo, mas que também podemos considerar aproximadas de uma noção de absurdo, embora sejam diferentes os termos em que essa noção se põe em cada um dos casos considerados, como também será diferente a nossa própria procura de sentido a empreender na leitura de cada um deles. No caso de Dante, por exemplo, o absurdo, para ele, só poderia estar correlacionado com a transgressão dos códigos de Deus. Não há absurdo gratuito nem as suas descrições do inferno se pretendem absurdas, o inferno dele é uma consequência absolutamente lógica daquela transgressão dos códigos de Deus e, por sua vez, é uma consequência simbolicamente ilustrada em cada um dos horrores e abjecções que nos descreve como correlativos dos vícios e das degradações da vida terrena.

 

Para a mentalidade religiosa medieval, o inferno, enquanto ausência de Deus, tinha de ser uma presença, era um vazio que tinha de ser um "cheio" (cheio de casos exemplares de expiação e lamento). Talvez por isso pudéssemos dizer que, nesse sentido, o absurdo não tem lugar na catedral minuciosamente agenciada que é a Divina Comédia, uma vez que nela o horror, sendo uma forma de castigo, é ainda uma forma de sentido. Mas é claro que hoje, numa sociedade laica que há muito perdeu a força no senti´do escatológico, tal como ele era vivido no tempo de Dante, a maior parte dos casos do labirinto dantesco surge-nos como outras tantas figurações do absurdo que tendemos a aproximar, por exemplo, do impacto visual da pintura de um Jeronimus Bosch, produzida dois séculos mais tarde, em relação à qual perdemos uma chave de leitura coerente, talvez por ser uma chave iniciática que nunca chegou a ser bem explicitada. Há quem sustente que aqueles horrores, aquelas figuras monstruosas do Bosch, eram pintados com vista à contemplação por parte dos iniciados de uma seiat existente nos Países Baixos a que ele pertenceria e, portanto, seria uma meditação que no fundo faria sentido a partir da contemplação do absurdo.

 

Mas para lermos Dante correctamente, não podemos esquecer que nele o verdadeiro espectáculo está ligado ao cenário cósmico supremo e a um Deus feito de luz, espectáculo total e totalizante, em que todo o universo se subsume e que não exclui a inúmera série de espectáculos menores que nos é dado presenciar, muito em especial no Inferno e no Purgatório, e que nesse pulular concreto, nesse fervilhar vivencial, tornam o texto repassado de humanidade e realismo, do vício à regeneração e do castigo à recompensa. À sua maneira, Dante cria a obra de arte total, a que os alemães do fim do século XIX chamavam Gesamtkunstwerk, e convoca todos os saberes, todas as instâncias da criação cultural, todas as tradições cultas, todos os mitos, todos os seres, todas as paisagens, todas as invenções linguísticas e todas as experiências. Parte do labirinto das abjecções para a rarefação etérea da pureza, parte do espectáculo aviltante do pecado para a cena sublime e inatingível de Deus. Mas ele assume tudo isso na sua própria personalidade. Escreve o guião, faz a encenação, faz o ensaio, faz as marcações, puxa a cortina, apupa, aplude, pune, salva, o que torna o espectáculo ainda mais intrinsecamente complicado e, talvez, mais absurdo. Um homem arroga-se o lugar de Deus, de uma espécie de lugar-tenente e de intérprete autorizado de Deus, e fala em nome dele. A sua comédia polariza-se entre o absurdo de Deus e a prerrogativa de quem, assim como quem dele usurpa o lugar, contra todas as ortoxodias, fabrica uma diva, a Beatriz, para, na luz de Deus, só contemplar uma bem-aventurança e, como nas grandes feéries dos espectáculos humanos, conclui sobre os focos das girândolas da luz da metafísica e das gambiarras divinas. E também duplica os jogos dos actores. De algum modo, Dante está para Deus como Beatriz está para a vergine madre, a virgem mãe, filha do seu filho, e como Adão e Eva evocam ser o primeiro homem e a primeira mulher, emblemáticos progenitores de todos os espectáculos e de todos os absurdos, que hão-de reconduzir sempre à vertigem do logos divino e do seu sentido, pelo menos no que deles nos é dado entrever como ultimo fim do ser humano.

 

Muito diferente é Sakespeare. Ele problematiza de outra maneira os conflitos, os vícios e as paixões do mundo. Conhece, imagina e encena a disputa do poder e a violência amorosa, o desastre e a guerra, a verdade e a mentira, a intriga e o crime. Mostra a História e as histórias como espectáculo permanentemente nosso contemporâneo, entrecruza o destino com as molas reais do comportamento dos homens e disso se faz o trágico inevitável e irreversível do seu e do nosso teatro. Diz Harold Bloom, de quem já falei, que Shakespeare é quem conhece melhor a nossa natureza porque foi ele quem os inventou. Será de acrescentar que nos inventou como bodes expiatórios e sem outra saída, ou seja, cada um só lhe interessa como bode expiatório verídico da tragédia. Nele o ser humano só existe à luz insidiosa da traição ou para ser traído. Pode haver fontes conhecidas de muitas das suas peças, nomeadamente das históricas,mas não há precedentes consistentes nem do Hamlet, nem do Rei Lear, nem de Macbeth, nem de Otelo, antes dessas peças serem escritas. E Shakespeare não conhece Deus. Ele cria as suas criaturas, cria a sua medida e desmedida do humano, do humano sacrificado ao altar da fatalidade irreversível, não por uma evolução de razões de predestinação, não por um destino fixado nos astros, uma rejeição do livre arbítrio que, para o mundo religioso da época, era conferido ao homem por Deus, mas porque o crer das suas personagens acaba por ser um crer confinado a si mesmo, à luz de um mal sem alternativa. Todos os homens são maus e reinam na sua maldade, diz-se num dos sonetos, de um mal que é tão natural, como é natural a humana desumanidade nos conflitos a que conduz. Mesmo através das hesitações de Hamlet, em que afinal é meramente ilusório o esboçar das possibilidades de escolha.

 

Só o maneirismo shakespeareano poderia tornar possíveis todas as violências, todas as dilacerações, todas as interrogações e todas as ferocidades à escala de um palco de instabilidade e de almas estruturadas. Em Shakespeare todo o mundo é um palco, all the world is a stage, não um curso alu.cinado de sombras e de sonhos como em Calderón,  mas sim um entrechocar pungente de seres vivos a culminar na tragédia e na solidão de que os restantes humanos, os que sobreviveram, apanham os restos e os cacos, para deles formarem uma imagem do mundo e de si mesmos. Por isso, o absurdo do Shakespeare nos toca pelo seu teor de crua deumanidade. Por isso, também, surge numa altura em que o individualismo renascentista da confiança do homem já está em decadência, já está em crise. É uma confiança que já está a ser triturada por um feroz mecanicismo do Estado absoluto que se vai impondo cada vez mais. Na obra de Shakespeare, Deus como sentir supremo do universo jã não se encontra aos comandos. O absurdo shakespeareano  tem a ver com a trágica falta de sentido da sociedade humana, prolongando mais violenta e radicalmente os tópicos renascentistas da "nave dos loucos", do "mundo às avessas", dos disparates e do "desconserto do mundo", que também foram tema para o nosso Camões. O homem deixa de compreeder o seu destino e tende a ser apresentado como joguete de forças e de catástrofes que não controla. O nosso poeta nacional também o intuiu e apresentou uma saída que para ele acabaria por corresponder à formulação de uma hipótese de sentido metafisicamente alicerçada. Há um soneto em que o Camões descreve uma série de problemas para os quais não encontra solução e termina dizendo: "Mas  o melhor de tudo é crer em Cristo".

 

Quanto a Balzac, ele escreve numa sociedade aparentemente mais demesticada no tocante à violência física e sangrenta nua e crua, mas compreende todos os mecanismos da paixão, do poder e do funcionamento do dinheiro, da estruturação social em função dele, da sujeição dos comportementos e dos sentimentos à sua força, da violência social e moral que ele pode acrretar.

 

O seu espectáculo, a "comédie humaine", já não "a comédia divina", vive dessa encenação de aristocratas e plebeus, de banqueiros e de políticos, de magistrados e de comerciantes, de aventureiros e de arrivistas, de rurais e citadinos, de herdeiras e de cortesãs, cujos nós seriam urdidos pelo seu conterrâneo Joseph Fouché, o chefe da polícia, a orientar-se friamente por um Nasdaq avant la lettre, tudo reconduzido a uma ordem cujas leis implacáveis relevam o poder económico e os ditames da burguesia instalada. O espectáculo está mais próximo de nós e poe em cena toda a sociedade. Marx valorizava-o nas suas análises, porque Balzac tinha compreendido essa específica actuação entre a ficção e a realidade.

 

À sua maneira, Balzac é ainda shakespeareano, descontados o sangue derramado e a brutalidade dos meios de liquidação das personagens. E domestica o romantismo dos impulsos, a dominar o século XIX, que por alguma razão fez leituras próprias de Dante e Shakespeare, várias vezes no tablado da ópera e no teclado das escalas, no ritmo e na orquestração das emções. A tudo isso, Balzac substitui, no seu universo, as noções de processo judicial, de mecanismos de crédito, de especulação, de ganho e de falência, de crimes de colarinhos brancos e de crime tout court, as ambições e as frustrações, as regras sombrias de uma entidade difusa - o Estado -  e de um demónio omnipresente - o dinheiro - , as manhas e expedientes de  cada um, que funcionam em vez das vias do pecado, da perdição e da expiação de que fala Dante, e em vez dos punhais sub-reptícios e dos venenos isabelinos apresentados em Stratford-on-Avon.

 

Se quisermos referi-lo a Dante, em Balzac o inferno chama-se falência, o purgatório chama-se carreira, o paraíso chama-se sucesso. O espectáculo, com ele, transfere-se definitivamente para a ordem do imanente. Com Dante, somos uma nostalgia do divino; com Shkespeare, somos um arrepio catártico ante a ferocidade do mundo; com Balzac tornamo-nos todos participantes do grande espectáculo da sociedade moderna. Correspondentemente, a noção de sentido foi mudando e a de absurdo também. O século XIX português fez nele uma primeira incursão com o Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, embora orientada para o absurdo da decadência nacional. Mas também o nosso século XIX revisita rapidamente o mundo às avessas, dando-nos a faceta de um Faustino Xavier de Novais; os defuntos a tremer, / com desejo de aquecer, / buscam serviços activos: / vão à caça, pescam, dançam, / e quando lassos descansan, / rezam por alma dos vivos.

 

Para a hora de hoje, para esta hora absurda, e já que não falamos em Kafka, qual dos autores referidos poderá ilustrá-la melhor? Se formos por essa via, tenho para mim que qualquer um deles nos oferece textos que podemos ler como parábolas a tal respeito. Só que provavelmente elas ficam todas aquém da realidade. Assim como George Steiner observa que os horrores de Dante não são nada comparados com os dos  campos de concentração nazis, também podemos dizer que os de Shakespeare, no esbracejar impotente de cada personagem condenada na sua individualidade única, não são nada ao pé das purgas, torturas e genocídios provocados por totalitarismos e fundamentalismos de vária ordem ao longo do século XX, e ainda que os de Balzac não ultrapassam a infância da arte, no confronto com a selva que é hoje a vida financeira internacional e a desmultiplicada hipocrisia do poder.

 

Poderes absurdos, portanto, que não estão quantitativamente à medida dos que conhecemos em tempos muito mais próximos de nós, mas que dão bem a medida da aspiração da alma humana a um sentido da harmonia e da felicidade, nas expressões mais genialmente artísticas que lhe couberam e que, por isso mesmo, comportam, de algum modo, uma hipótese de redenção se neles procurarmos um sentido".

 

Intervenção de Vasco Graça Moura no Simpósio sete sóis sete luas realizado no ano de 2002 em Santa Maria da Feira no Auditório da Biblioteca Municipal e subordinado ao tema "A Europa na Geografia da História". Participaram, além de Vasco Graça Moura, José Saramago,  Antonio di pietro e Carlos Magno como moderador.

 

 

 

 

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publicado às 17:47


#2131 - A Europa na Geografia da História

por Carlos Pereira \foleirices, em 15.01.17

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 JOSÉ SARAMAGO

 

"A minha função aqui é muito simples. Sou o porteiro, sou o homem que abre a porta, e portanto, como um daqueles educados porteiros de outras épocas, abrirei a porta, afastar-me-ei para o lado e deixarei passar, com a vénia devida, os convidados que neste encontro têm efectivamente importância, isto é, o juiz Antonio di Pietro e Vasco Graça Moura, meu velho conhecido.

 

Não pareceria mal que porteiro tão atento como me prezo de ser perguntasse às pessoas a quem abriu a porta se fizeram boa viagem, se estão bem de saúde, se gostam de estar em Feira, etc.. Se não faço tais perguntas é apenas para encurtar razões, mas quero deixar claro que me sinto muito feliz por ter sido o porteiro deste  acontecimento e que pela porta que abri tenham entrado as duas pessoas a quem estou acompanhando nesta mesa. Propõem-se Antonio di Pietro e Vasco Graça Moura desenvolver um assunto à primeira vista algo intrigante, nada mais nada menos que Europa na Geografia da História. Que Europa, como qualquer outra região do mundo, seja Geografia e seja História, é uma obviedade demonstrável num sem-fim de mapas e livros, mas que possa ser observada e analisada de uma perspectiva que toma a História como coisa "geografável" (com perdão do neologismo), eis uma proposta capaz de excitar a mais renitente falta de curiosidade. Esperemos, portanto, que Antonio di Pietro e Vasco Graça Moura, eurodeputados ambos, bons conhecedores das malhas que Europa tece, nos iluminem os caminhos para um saber cuja falta se vai sentindo cada vez mais: um real conhecimento da Europa. Para esta Europa que nos puseram nas mãos ninguém nos pediu antes que contribuíssemos com a nossa razão e a nossa inteligência de cidadãos. Salvo alguma raríssima excepção, não se realizaram debates públicos nem referendos, não se ponderaram certezas, não se esclareceram dúvidas, Europa saiu da cabeça dos seus criadores com Atena da cabeça de Zeus: armada e equipada. Ou, talvez com maior rigor, como um fato pronto-a-vestir onde se esperava que se sentissem igualmente cómodos tanto os  altos como os baixos, tanto os gordos como os magros, tanto os pernaltas como os de perna curta. Pensava-se que era tudo uma questão de capacidade de aguante nosso e que, com o tempo e a rotina, nos acabaríamos por acostumar. Ora, sucede que são eles precisamente quem se está a aguentar mal. Algumas das ideias e dos projectos que fervem nos meios dirigentes da Europa dão francamente que pensar, como dariam que pensar acções de um aprendiz de feiticeiro incapaz de disciplinar e manter no bom caminho as forças que imprudentemente acaba de pôr em movimento. Não vou discutir o alargamento da Europa, não vou discutir a constituição em projecto, em parte porque me falta a necessária competência, em parte porque não devo esquecer que neste acto sou apenas o porteiro. O  que não me impede de pensar que Europa simplesmente não existe, ou não existe ainda. Há um lugar geográfico que recebeu o nome Europa, há  uma história a que chamamos europeia, e esse lugar e essa história foram, no passado, desgraçadamente, palco de ambições nacionais destrutivas e cenário de conflitos terríveis. O século XX propôs-se unir a Europa, mas o século XXI não veio encontrar unidos os europeus. Estou disposto a acreditar que a União Europeia não é uma mera associação de interesses preocupados em manter e prolongar um determinado sistema económico, mas preocupa-me a escassa atenção que se vem dando aos factores sociais, culturais e políticos, que, a persistir, poderá levar a que um dia vejamos países com regimes pré-fascistas, se não fascistas mesmo, numa União que faz gala em reger-se por princípios e valores democráticos. Visão pessimista, sem dúvida, mas não inteiramente destituída de razão de ser. Fico-me por aqui, eu sou apenas aquele que abriu a porta e agora vai apresentar os oradores do colóqui.

 

O juiz Antonio Di Pietro é conhecido por haver metido ombros ao décimo terceiro trabalho de Hércules, esse que teve o feliz nome de mani pulite, e digo feliz porque entre todas as coisas que necessitamos deveriam ocupar lugar principal as mãos limpas, um detergente ético que as lave, uma honradez que as mantenham imaculadas. Antonio Di Pietro, que é agora um político, não esqueceu, não pode ter esquecido o que foi essa admirável odisseia nem por que acabou por sair dela vencido. O sistema, aparentemente derrotado, contra-atacou e expulsou-o do campo de batalha. A Itália de hoje não é um espelho em que um italiano honesto tenha prazer em contemplar-se. Será preciso voltar outra vez à luta pela igualdade, pela justiça, pela limpeza moral, essa santíssima trindade que guiou Antonio di Pietro quando juiz.

 

Quanto a Vasco Graça Moura, embora seja legítimo considerar que esta minha observação vem fora de propósito, não resisito a dizer que existem entre nós conflitos resultantes de diferenças e oposições, e mesmo uma certa impaciência mútua, que é quando cada um pergunta como e porquê o outro continua a pensar o que pensa. Fechado este parêntesis, creio que a Vasco Graça e Moura assenta bem o qualificativo de homem dos sete ofícios, expressão que certamente não se usava em Itália na época do Renascimento, mas que, pensando bem, se podia aplicar a artistas que eram, muitas vezes, ao memo tempo, arquitectos, escultores, pintores e poetas. Digamos então que a Vasco Graça Moura, pela diversidade e qualidade de ofícios que pratica, o  anima o espírito renascentista. É poeta, ensaísta, romancista, tradutor, e se até este momento só estou contando quatro ofícios, não duvido que ele poderá, se quiser, acrescentar os três ofícios que faltam e talvez  alguns mais.

 

Foi para mim uma grande satisfação ter-me sido proporcionada a ocasião de apresentar os nossos convidados, mas não é menor a satisfação de me encontrar em Feira, no coração do que no passado se chamou Terra de Santa Maria, nesta cidade de dez mil habitantes onde há uma orquestra sinfónica juvenil com 120 músicos que actuam com regularidade, onde há uma biblioteca que tem treze mil inscritos, o que faria pensar que o autor do milagre da multiplicação dos pães e dos peixes não foi quem julgávamos, ou então que nesta cidade de Feira as pessoas são inscritas como leitores mesmo antes de terem nascido... A verdadeira explicação é outra, claro está, são pessoas da região que, vivendo fora da cidade, utilizam os serviços da biblioteca. Tudo isto nos dá uma impressão de refrescante vitalidade cultural que, infelizmente, não é regra no nosso país.

 

E agora termino. Durante muitos anos andaram a querer convencer-nos de que a palavra é de prata e o silêncio é de ouro, o que, se repararmos bem, era uma maneira de nos dizer que estivéssemos calados. Pois eu dir-vos-eis que a palavra é que é de ouro,e que o silêncio, muitas vezes, nem a prata chega. Portanto, quando chegar a hora de falar, e estou a dirigir-me particularmente aos jovens, façam-nos o favor de perguntar, de duvidar, de interpelar. Perguntem o que é isso da História e para que serve, se é apenas um conto que nos contam para que o vamos repetindo, ou se é algo vivo

que devemos questionar? E a Geografia? Nos últimos anos as fronteiras da Europa levaram um sopro que varreu tudo. Talvez seja preciso repor algumas coisas nos seus lugares, enfrentando o problema de que perdemos o sentido do lugar das coisas. Essa é a grande questão europeia, não saber onde estão os lugares das coisas.

 

Muito obrigado. Passo a palavra a Antonio Di Pietro e a Vasco Graça Moura.

 

Eles que falem."

 

INTERVENÇÃO DE JOSÉ SARAMAGO NO SIMPÓSIO SETE SÓIS SETE LUAS SOB O TEMA "A EUROPA NA GEOGRAFIA DA HISTÓRIA" QUE TEVE LUGAR NO ANO DE 2002 NO AUDITÓRIO DA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SANTA MARIA DA FEIRA E COMO CONFERENCISTAS JOSÉ SARAMAGO, ANTONIO DI PIETRO E VASCO GRAÇA MOURA E COMO MODERADOR CARLOS MAGNO.

 

 

 

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publicado às 18:58


#1419 - Cinzas de José Saramago já foram depositadas em Lisboa

por Carlos Pereira \foleirices, em 19.06.11

 

As cinzas de José Saramago foram depositadas, ontem,  pouco depois das 11h30, junto a uma oliveira que veio da Azinhaga e a um banco de jardim feito de mármore no Campo das Cebolas, em frente à Casa dos Bicos, em Lisboa.

 

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publicado às 19:55


#112 - Saramago lança livro onde “se mete com toda a gente"

por Carlos Pereira \foleirices, em 19.02.10


 

Saramago lança livro onde “se mete com toda a gente” (COM VÍDEO)

O Nobel da Literatura José Saramago acaba de lançar um novo livro: ‘Caderno 2’, que resulta da compilação das suas crónicas escritas no blogue com o mesmo nome.

Depois do primeiro volume, esta continuação editada pela Caminho, com prefácio do escritor Umberto Eco, aglutina os escritos produzidos entre Setembro de 2008 e Novembro do ano passado.

No seu prefácio, Umberto Eco descreve Saramago como sendo alguém que “tem 87 anos e (diz eles) alguns achaques, ganhou o Nobel, distinção que lhe permitiria nunca mais produzir nada porque seja como for já tem no Panteão o seu lugar garantido”. Já sobre a base do blogue, o escritor de ‘O Nome da Rosa’ realça que no espaço online Saramago “se mete um pouco com toda a gente, atraindo sobre a sua pessoa polémicas e excomunhões vindas de muito lado”.

“Então volta à cena o Saramago filósofo-narrador, já não zangado mas meditativo e incerto. Contudo não nos desagrada mesmo quando se enfurece. É simpático”, acrescenta Eco. [In Correio da Manhã]

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publicado às 21:57



José Saramago e António Lobo Antunes - O Fla-Flu dos Romancistas

Rivais, os escritores portugueses José Saramago e António Lobo Antunes mobilizam partidários apaixonados e protagonizam uma disputa que envolve vida pessoal e literatura

Por Anna Carolina Mello


A rivalidade não é tão agressiva quanto a que se deu quando o escritor peruano Mario Vargas Llosa descobriu que sua mulher se envolvera com o ex-amigo Gabriel García Márquez; nem tão ressentida quanto aquela que o britânico Martin Amis provocou ao passar para trás a mulher do colega Julian Barnes, contratando outro agente literário. A rixa entre os portugueses José Saramago e António Lobo Antunes não teve vexame ou dissolução de amizade. Mas há algo que a torna especialmente divertida: mesmo sem um motivo aparente para existir, ela mobiliza partidários apaixonados dos dois lados. Comparam-se as obras, medem-se os prêmios e até as vidas pessoais de ambos entram no escrutínio dessa disputa. Nesse embate, sobram palavras e apreciações pouco agradáveis.

 

 

Recentemente, ambos despertaram os ânimos de suas respectivas torcidas com lançamentos quase simultâneos: Saramago, com Caim; Lobo Antunes, com Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar?. Eles não se evitam na vida civil, como os citados acima, mas também não fazem questão de disfarçar a hostilidade. Em 1998, Lobo Antunes e seus partidários receberam o mais duro dos golpes: o Nobel de Literatura concedido a Saramago - o primeiro e provavelmente durante muito tempo único entre escritores de língua portuguesa. Na ocasião, um jornalista do The New York Times ligou para Lobo Antunes atrás, naturalmente, de declarações ácidas. Informado do ocorrido, Lobo Antunes silenciou por alguns segundos do outro lado da linha. Depois, fez-se de desentendido e, dizendo que a ligação estava ruim e que mal podia ouvir, desligou.

 

 

Nessa época, Saramago já era bastante festejado no Brasil, com romances como Memorial do Convento (1982) e Ensaio Sobre a Cegueira (1995). Lobo Antunes, ao contrário, era praticamente um desconhecido, com poucos e mal-vendidos livros, entre eles Os Cus de Judas (1979) e Manual dos Inquisidores (1996). Em 2000, durante a feira de livros de Frankfurt - em que são fechados os principais contratos de publicação do mundo - Lobo Antunes rejeitou um pedido de entrevista feita pelo jornal Folha de S.Paulo. "Deixem o Brasil para o Saramago. É o único lugar que ele tem", disparou. No ano passado, durante a Festa Literária Internacional de Paraty, voltou ao tema de forma mais bem-humorada. "Vocês gostam mais do outro", brincou com o público.

 

Saramago, por seu turno, já disse que não conhece "esse sujeito" e que "não se interessa por ele". Em 1998, presenteado com um livro do oponente por um jornalista do tabloide português Tal & Qual, o escritor fechou a cara e devolveu o livro, porque acreditava ser uma provocação. A versão fantasiosa do fato, contudo, atiçou os ânimos: dizia-se que o autor havia jogado o exemplar no chão, por conta do título da reportagem - Atirado ao Chão -, que brincava com o nome do romance de Saramago, Levantado do Chão (1980).

 

À parte as fofocas, existe a divisão literária. Nas páginas a seguir, os jornalistas e críticos José Castello e Paulo Polzonoff Jr., que no Brasil ocupam lados opostos nesse ringue, defendem cada um a obra de sua preferência. Apaixonada mas civilizadamente - sem vexame nem dissolução de amizade.

 

 

O ENSAÍSTA ENVERGONHADO
Ao romper com as regras clássicas da gramática e optar por uma linguagem flutuante, Saramago questiona o dogma contemporâneo da clareza por José Castello

 

José Saramago disse certa vez: "Talvez eu não seja um romancista, mas um ensaísta que escreve romances". Em vez de diminuir a potência de sua ficção, a ideia do ensaísta envergonhado a alarga. Para o escritor português, a literatura deixa de ser só uma experiência estética, ou um jogo de linguagem. Ela se alça ao posto de saber e ombreia com a verdade. Ao desestabilizar as certezas históricas com o sal da ficção, Saramago não só relativiza verdades consagradas, mas destaca seu aspecto imaginário. Ele amplia, ainda, o terreno da própria ficção, que deixa de ser apenas invenção e sonho, para se tornar algo bem mais potente: um elemento crucial na constituição do mundo.

 

Personagens como o revisor Raimundo Silva, de História do Cerco de Lisboa - que, ao introduzir uma palavra inexistente em um ensaio histórico, revira a verdade - ou o escriturário sr. José, de Todos os Nomes - que completa com a imaginação as informações do Registro Civil -, ampliam a potência da verdade, em vez de danificá-la. Alargam, assim, as fronteiras da literatura, que deixa de ser uma ilusão a nos distrair da vida, para se tornar uma pergunta com que a perfuramos.

 

Ao romper com as regras clássicas da gramática e optar por uma linguagem flutuante, Saramago questiona um dos mais sagrados dogmas contemporâneos: a clareza. Nem sempre a objetividade e a transparência são garantias de acesso à realidade. Ao contrário: retendo as coisas em sua moldura de luz, a clareza é, com frequência, falsificação. Para ele, só uma linguagem dançante, que acompanhe os deslizes e imperfeições do pensamento, nos aproxima, de fato, do mundo.

 

Em uma era pragmática, Saramago se preocupa mais em seduzir e hipnotizar o leitor do que em convencê-lo. As dificuldades propostas por seus livros - como o sósia que perturba a vida do professor Tertuliano Máximo Afonso, em O Homem Duplicado - não são questões a desvendar, ou solucionar. São, ao contrário, desafios. Saramago sabe que a escrita nada mais pode que sondar o enigma humano. É a partir desse limite de desamparo (e sabedoria) que ele escreve.

 

A tragédia relatada no Ensaio Sobre a Cegueira não atinge só os personagens do romance, mas o próprio leitor, que é obrigado, também, a "cegar-se" para lidar com o filtro opaco e limitado da língua. Os personagens de Saramago carregam em seus ombros o duplo sentido da palavra sujeito: se eles fazem e acontecem (afinal, a imaginação manda), estão também submetidos (sujeitos) às apertadas amarras que delimitam a realidade.

 

Muitas vezes reduzida, injustamente, a um exercício de estilo, a literatura de Saramago é não só vital, mas convulsiona os fundamentos de nossas vidas. "Vivemos para dizer o que somos", o escritor insiste em afirmar. A literatura, para José Saramago, é a busca interminável (e fracassada) do outro. Por isso, não conseguimos abandonar seus livros.

 

 

José Castello é jornalista e escritor, autor de Fantasma e A Literatura na Poltrona, entre outros.

 

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O CARPINTEIRO DA FRASE
Uma das maiores virtudes de Lobo Antunes é o desprezo por esta entidade cada vez mais homogênea chamada leitor Por Paulo Polzonoff Jr.

 

António Lobo Antunes chamou minha atenção em 1998, em uma entrevista encontrada na internet. Lembro-me de ficar entusiasmado com frases como "Os leitores são umas putas. Amam-nos e depois nos deixam". Mas o que mais me atraiu naquele autor desconhecido foi a visão da literatura como uma obra de carpintaria - para tomar emprestada uma ideia do escritor mineiro Autran Dourado. O primeiro contato com um livro do escritor foi, entretanto, frustrante. Deliciosamente frustrante. Ao contrário de autores de vanguarda, como o irlandês James Joyce, havia mais do que um simples desejo de revolucionar a escrita na falta de linearidade daquela prosa. Havia um propósito.

 

Mas mergulhar nos desvãos da mente humana é complicado. E Lobo Antunes sabe transpor para o papel esta complicação toda. É possível que o leitor se sinta atordoado. Aí é que encontramos mais uma (se não a maior) virtude do escritor: o desprezo para esta entidade cada vez mais homogênea chamada leitor. Não se deixe enganar: este desprezo é uma expressão de respeito pela individualidade do leitor. Na obra do escritor, nenhum grupo merece destaque. É como se não houvesse multidões. Os personagens são seres muito particulares, idiossincráticos, indefiníveis. O coletivo inexiste. As pessoas não andam nem agem em bando. Mais importante: não sentem em bando. Até mesmo a guerra não é vista como uma ação organizada de um grupo militar. Lobo Antunes olha para cada personagem com atenção individualizada.

 

Esta atenção ao ser humano como unidade é a responsável tanto pela fama quanto pela rejeição à sua obra. Nos romances do português, não há grandes ilhas, e sim um gigantesco arquipélago formado por ilhotas individuais, cada qual com seus rios, vales, montanhas, praias e até vulcões. Mas seria um erro dizer que Lobo Antunes é um escritor para poucos. Sim, o estilo de seus romances pode afastar o leitor mais desprevenido. Os Cus de Judas, por exemplo, é um livro atordoante. Mas só até que o momento em que se estabelece um diálogo muito natural entre aqueles parágrafos interrompidos por digressões diversas.

 

Lobo Antunes tem ainda um lado bastante acessível: o de cronista. Infelizmente, seus livros de crônicas não foram publicados no país. Nos textos curtos, ele exibe seu talento para o mundo pequeno de personagens menores ainda. Dramazinhos cotidianos alçados à condição de arte: o pompom da cortina emoldurado e pendurado no Louvre, ou o diálogo na padaria expresso com tanta beleza que pode levar (sem exagero) às lágrimas.

O escritor é dono ainda de algumas das frases mais belas da língua portuguesa. Às vezes - ainda que isso possa parecer, na melhor das hipóteses, uma excentricidade -, gosto de abrir um calhamaço como Boa Tarde às Coisas Aqui Em Baixo e ler apenas uma página, a esmo, em voz alta, saboreando o fraseado.

 

Paulo Polzonoff Jr. é jornalista e tradutor. É autor de A Face Oculta De Nova York.

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publicado às 23:39


#986 - Richard Zimler escreve sobre os comentários de Saramago

por Carlos Pereira \foleirices, em 27.10.09

Saramago e a insustentável leveza da ignorância

 

Os comentários de Saramago não são nem chocantes nem novos, defende neste texto o escritor Richard Zimler. E apenas representam um obstáculo à fé para quem não tenha a menor ideia do que é e do que pretendia ser o Antigo Testamento. As críticas são unicamente banalidades superficiais

Quando José Saramago decidiu espevitar o interesse pelo seu último livro afirmando que "a Bíblia é um manual de maus costumes", a minha primeira reacção - como escritor e como alguém de há muito tempo dedicado aos estudos de religião comparada - foi rir-me para comigo e murmurar "e depois?".

São várias e de ordem vária as razões por que desvalorizei os comentários de Saramago. O Antigo Testamento, praticamente na sua totalidade, nunca teve como propósito constituir qualquer coisa de parecido com um manual de boas ou más maneiras. Ao ler a Bíblia, pouco que seja, ninguém pretende encontrar um modelo para o seu comportamento nos actos do Rei David, de Betsabé, de Noé, de Adão, de Eva ou de quaisquer outras pessoas referidas nas histórias bíblicas. Na tradição judaica, tal atitude pura e simplesmente nunca existiu. Nem o mais ortodoxo dos rabinos obedece hoje à maioria das regras de conduta doDeuteronómio, mais que não fosse por estarem de tal modo datadas que seriam irrelevantes para a vida dos nossos dias. Assim como ninguém no mundo judeu modela o seu comportamento pelo de Deus. Fazê-lo seria considerado ingénuo na melhor das hipóteses ou herético na pior. O Antigo Testamento é formado em grande parte por uma compilação de histórias, muito à semelhança de um romance. E o seu tema principal é a difícil e por vezes tumultuosa relação entre Deus e Israel, entre o criador transcendente de um universo e o seu povo escolhido. É uma história de sobrevivência, de como os israelitas usaram de todos os meios à sua disposição - incluindo a guerra - para defender aquilo que consideravam a sua particular aliança com o Senhor. Como qualquer romance ou outra forma de narrativa que intente descrever todos os cambiantes da conduta humana, dela fazem parte tanto a opressão intolerável, os crimes de guerra e os assassinatos, como também o amor, a dedicação e o heroísmo. Trata de seres humanos tal como eles são, e não como eles deveriam ser. Pegar no Antigo Testamento para criticar a brutalidade dos hebreus ou de outros povos da antiguidade é o mesmo que criticar Dostoievsky por escrever sobre um assassinato premeditado emCrime e Castigo ou criticar Anne Frank por descrever como a crueldade nazi afectou a sua família.

Inclinava-me a pensar que qualquer escritor haveria de olhar como vital, tanto para ficcionistas como para ensaístas, a exploração de toda a gama das emoções e acções humanas, mas ao que parece enganava-me, pelo menos no caso particular de Saramago.

Confesso que as palavras de Saramago me deixaram perplexo de um modo muito pessoal ao implicarem que não deveríamos escrever sobre os horrendos crimes cometidos por seres humanos, pois uma boa parte do que faço nos meus romances é explorar as vidas de pessoas cujas vozes têm sido sistematicamente silenciadas por ditadores, generais e inquisidores religiosos. Penso que escrever sobre a repressão violenta e sobre os tratamentos cruéis é essencial, sobretudo quando se busca a criação de um mundo de mais justiça e humanidade. E uma das coisas que mais respeito e valorizo no Antigo Testamento - apesar de não crer num Deus pessoal e de não praticar nenhuma forma de fé, nem sequer a religião dos meus pais, o judaísmo - é o facto de aí nada ser escamoteado ou escondido. Quem quer que deseje conhecer até onde pode chegar a abominação e a crueldade humanas e até que ponto Deus - ou o Destino - pode ser impiedoso bastar-lhe-á abrir o Antigo Testamento. Para quem nunca o fez, sugeriria que lessem o tratamento dado pelo Rei David a Urias, narrado noSegundo Livro de Samuel. Será difícil encontrar descrição mais poderosa da traição e da brutalidade humanas.

Por outro lado, considerei que no fundo não valia a pena dar importância aos comentários de Saramago, pela ingenuidade e infantilidade da interpretação literal que ele (juntamente com os fundamentalistas religiosos) faz das histórias do Antigo Testamento. Uma das mais importantes lições que retirei do estudo da história das religiões e da mitologia é que as narrativas mitológicas são - na sua maior parte - poesia e não prosa. A história de Adão e Eva é poesia. Ou será que haverá alguém que acredite que Eva foi feita de uma costela de Adão? O autor desta narrativa do Antigo Testamento está a recorrer a uma linguagem simbólica - tal como poetas muito posteriores, como Shakespeare ou Camões, recorreram à linguagem simbólica para criarem as suas obras-primas. Ou será que algum leitor de Os Lusíadas pensa que os navegadores portugueses depararam com um temível gigante chamado Adamastor nas suas viagens da época das Descobertas? Ou, quando a narrativa bíblica conta que Moisés separou as águas do Mar Vermelho no Livro do Êxodo para que o seu povo pudesse fugir do Egipto, será que alguém com mais de dez anos acredita que ele possa ter murmurado algum abracadabra hebraico e produzido tal milagre? Espero bem que não. O Antigo Testamento pode ter como referência um acontecimento histórico - a libertação do povo hebraico -, mas a linguagem utilizada é poética e simbólica. Por assim ser, está aberto a diferentes interpretações. Pode acontecer que o que aqui se pretende é falar da viagem espiritual que cada um de nós pode fazer ao longo das nossas vidas, da escravidão para a liberdade. Nesse caso, a história de Moisés será sobre a nossa aspiração - como indivíduos e como povo - à segurança, a uma vida realizada e com sentido.

Tomar à letra estas histórias é simplesmente não entender o Antigo Testamento e ignorar por completo dois mil anos da tradição poética ocidental.

As palavras de Saramago pareceram-me ainda como o "much ado about nothing", o muito barulho para nada, com que soa qualquer coisa que nem remotamente é novidade. Há cerca de dois mil anos que os filósofos judeus vêm debatendo a brutalidade de Deus e da humanidade no Antigo Testamento, em tons bastante mais emocionados do que os usados no debate em causa. Talvez a história mais criticada do Antigo Testamento seja narrada no livro deJob. Depois de um Satanás céptico dizer a Deus que a piedade de Job se deve apenas à prosperidade de que goza, Deus põe à prova a fé e a dedicação de Job arruinando-lhe a vida da forma mais horrível. Podemos encontrar comentários sobre a interpretação a dar a esta história - assim como de qualquer outra história bíblica - em centenas de livros escritos por filósofos judeus - e também alguns cristãos - ao longo dos últimos dois mil anos. Como é possível que alguém que se considera instruído não tenha consciência desta herança cultural?

As primeiras obras escritas analisando a natureza de Deus, tal como é descrita no Antigo Testamento, são o Talmude, um compêndio dos textos rabínicos sobre ética e cultura compilados entre os anos 200 e 500 da era cristã. Mais tarde, na época medieval, o tema da natureza de Deus foi explorado por dezenas de talentosos filósofos medievais, incluindo pensadores magníficos como Maimónides e Moisés de Leão, autor do século XIII, que escreveu o livro mais influente do misticismo judaico, oZohar. Mais recentemente, estudiosos como Walter Benjamin e Martin Buber acrescentaram facetas modernas ao debate. A natureza da relação de Deus com o homem - a Sua crueldade e, em particular, a Sua "surdez" face ao sofrimento humano - tornou-se num dos mais importantes tópicos de discussão no mundo judaico desde o Holocausto, pelo mais óbvio e terrível dos motivos. Simultaneamente, este debate filosófico foi sendo reflectido na literatura judaica desde os meados do século XIX, na obra de muitos escritores, de Sholem Aleichem e Shmuel Yosef Agnon - que recebeu o Prémio Nobel em 1966 - a Philip Roth.

Concluindo, custa-me compreender como é que alguém, ainda que vagamente familiarizado com a filosofia e a literatura ocidentais, pode acreditar que erguer-se em 2009 contra a crueldade contida no Antigo Testamento tem alguma coisa de novo ou de chocante. Ou sequer interessante.

O que é interessante é perguntarmo-nos por que razão exige Deus uma tão absoluta fidelidade aos israelitas e os castiga tão brutalmente por Lhe desobedecerem. Por que são outros povos, como os cananitas, olhados com tanto desprezo. O que diz tudo isto sobre as condições políticas e sociais em Israel em 500 a.C. E o que diz a relação de Deus com Israel sobre a "natureza tribal" das religiões da antiguidade.

Estes, sim, são temas importantes a merecer respostas sérias dos estudiosos.

Mas, naturalmente, nada disto mereceu a atenção de Saramago nem dos que reagiram às suas críticas ao Antigo Testamento. O que me traz ao aspecto mais perturbador e alarmante de toda esta tola controvérsia. Os jornalistas e os responsáveis religiosos portugueses de um modo geral trataram os comentários de Saramago como importantes! Graças a eles, os meios de comunicação deram-lhe mais tempo na televisão e mais espaço nos jornais do que a outras questões muito mais importantes. E alguns representantes da Igreja Católica atacaram-no com uma ferocidade emocional que revela bem que consideram tais opiniões sobre o Antigo Testamento como um obstáculo à fé. Mais uma vez, tal como salientei mais atrás, os comentários de Saramago não são nem chocantes nem novos. E apenas representam um obstáculo à fé para quem não tenha a menor ideia do que é e do que pretendia ser o Antigo Testamento. As críticas de Saramago são unicamente banalidades superficiais, que revelam uma profunda ignorância da filosofia e da religião ocidentais e uma total incompreensão da linguagem poética e narrativa de desde há mais de três mil anos. Só quem ignora tal herança, jornalistas e responsáveis religiosos incluídos, poderia tornar o patético desabafo do romancista numa tal polémica. E, para mim, essa foi a parte mais desanimadora e mais perturbante de toda esta "inventada" notícia: descobrir que na sociedade onde vivemos, entre os seus membros mais ilustres e cultivados, possa prolongar-se tão lastimosa ignorância de uma parte importantíssima do legado civilizacional da filosofia e da cultura ocidentais.

Tradução de José Lima

Artigo escrito por Richard Zimler e publicado no Jornal "Público"

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publicado às 23:46


Saramago e Dario Fo hoje premiados por Caja Granada

por Carlos Pereira \foleirices, em 16.04.09


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Galardão, no valor de 50 mil euros, será oferecido para a construção de um Centro Cultural Sete Sóis Sete Luas na ilha cabo-verdiana de Santo Antão, integrado numa rede de oito locais.

Os escritores José Saramago e Dario Fo, ambos já distinguidos com o Prémio Nobel da Literatura, são hoje agraciados, em Espanha, com o XI Prémio Caja Granada de Cooperação Internacional, no valor de 50 mil euros, em "reconhecimento pelo esforço e dedicação de ambos na procura de uma maior justiça social no mundo".

 

Ler resto notícia aqu

 

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publicado às 17:54


José Saramago e o capitalismo neoliberal

por Carlos Pereira \foleirices, em 06.11.08

O escritor José Saramago criticou as "situações completamente absurdas" criadas pela crise do capitalismo neoliberal, cujas "fantasias, apresentadas quase como verdades científicas, se desfizeram em pó", e lamentou a inexistência de uma alternativa política.

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publicado às 16:38


Novo livro de José Saramago

por Carlos Pereira \foleirices, em 05.11.08

A viagem do elefante, o novo livro de José Saramago

Símbolo dos republicanos, o elefante está hoje na mó de baixo. Amanhã, porém, volta a animar-se, quando a capa amarela e roxa do novo romance de José Saramago (A Viagem do Elefante) começar a invadir as livrarias portuguesas. O escritor dá hoje uma entrevista ao Diário de Notícias em que explica como é que os gravíssimos problemas de saúde sofridos no último ano não o impediram de escrever «um livro feliz e irónico» (ver aqui, aqui e aqui).
Tal como eu já intuira ao ler o livro, Saramago confessa ter sublimado a experiência de estar à beira da morte numa sequência em que uma personagem se perde da caravana, fica perdida no nevoeiro e só regressa ao ouvir os bramidos do elefante, que mais ninguém ouve

 

Post retirado do blog "Bibliotecário de Babel"

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publicado às 15:14


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