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É muito difícil, senão impossível, explicar a um néscio a importância da cultura, pois ele não tem cultura para peceber a falta dela
Afonso Cruz in «Paralaxe», crónica publicada no Jornal JL, edição n.º 1261, de 30 de Janeiro a 12 de Fevereiro e 2019
COMO USAR O SALTO
No " sagrado uso da verticalidade", expressão utilizada por Herberto Hélder, vemos pecisamente a antítese de algo que podemos designar como Humano uso da verticalidade. Neste uso humano da elevação temos um uso instrumental, um uso bípede e racionalista da verticalidade. Estamos em pé para usar instrumentos, máquinas, para olhar de frente para certas máquinas; até mesmo isto: para olhar de frente para certas fórmulas matemáticas, para as entender. O uso humano da verticalidade construiu as cidades, sim, e também esse edifício de material insólito: a matemática.
Mas há então o outro uso da verticalidade; o uso não humano, mas sagrado. Digamos que a dança, certa forma de dança, usa esse uso. Enquanto dança, o homem é vertical não para entender fórmulas ou mexer em máquinas, mas para outra coisa: para entender, tanto quanto possível, o céu e a ausência e esquecimento do corpo. Esquecer o corpo na dança é usar a verticalidade muscular para esquecer os músculos. Como se a certa altura o homem quisesse ser vertical não para ser mais alto do que os outros animais, mas para ser apenas ligeiramente mais baixo que o céu (e os seus eventuais deuses.)
CRÓNICA DE GONÇALO M. TAVARES NO JL-JORNAL DE LETRAS, ARTES E IDEIAS. N.º 1255, ANO XXXVIII, PÁGINA 32
Fotografia que ilustra uma crónica de Patrícia Portela no JL-Jornal de Letras, página 36, edição n.º 1254, ano XXXVIII
MÁRIO DE CARVALHO
Mário de Carvalho escreveu para o JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, edição n.º 1253, ano XXXVIII, Outubro de 2018, o seguinte texto a propósito das praxes académicas:
- "Se em 1960 ou 70 alguém em Lisboa se atrevesse a sugerir a qualquer jovem estudante de Engenharia, Direito, Letras, ou Medicina que andasse trajado de preto numa fardola de vestes eclesiais e se embrenhasse em rituais uivados mais ou menos coprófilos, seria tratado com altivo desdém.
Capa e batina eram coisa de Coimbra, reminiscência de longe, e de in illo tempore. Seria mesmo desprestigiante usá-la na capital. Não existia de todo praxe em Lisboa. Ninguém pensava vexar alguém. Os jovens que ingressavam nas universidades eram convidados para semanas de recepção, com espectáculos de cinema, teatro, colóquios, poesia e bailes. Os novos alunos (a própria designação de «caloiro» caíra em desuso) eram tratados com urbanidade e apreço, ao nível do que se considerava ser a instituição em que se encontravam e a associação de estudantes que os convocava.
Nesses tempos, a juventude estudantil ansiava por grandes transformações sociais, prezava os ideais de liberdade e batia-se por um País moderno, aberto, democrático. Mas a democracia é uma construção. Nunca está garantida de vez.
Nos refegos escondia-se o velho portugalório, agachadino e mendigo, servil e reles, pingue de misérias morais, coio de fascismos. Temporariamente escorraçado, veio a encontrar numa mocidade diversa, mais alargada, sem hábitos de leitura e reflexão, campo estrumado para as suas desforras e decorrências.
Impõe-se uma política de valorização da arte e da cultura, traçada com firmeza pelas instituições universitárias (no fundo, é o seu bom nome que é posto na lama e achincalhado). Urge a intervenção do Estado, encontrando formas democráticas de «desapimbalhar» a grande comunicação social, porque esta pardalada infantilóide, de penico na cabeça,, não é capaz de ler um jornal, sequer um tablóide."
A MAIS AMBICIOSA DAS ANTOLOGIAS EM PORTUGUÊS REÚNE TEXTOS LITERÁRIOS DE TODO O MUNDO EM SETE VOLUMES
O texto foi escrito por António Carlos Cortez para o JL-Jornal de Letras
1. Se me encontrasse numa escada rolante.
2. Quando nasci (em Praga), não suspeitava que era uma das mais belas cidades do mundo mas sê-lo-ia para mim, bastantes anos mais tarde. Talvez só tivesse tido consciência do triunfo dessa beleza durante a guerra, na profunda ilegalidade em movimento pendular entre o campo e a metrópole, durante a resistência anti-nazi, quando cada poética esquina praguense podia ser trágica para sempre; ou já instalado em Paris, mais tarde, numa aprendizagem da distância. Ou a. nal, o facto de encontrar-me provisoriamente ("provisoire qui dure") em Portugal, provocou em mim o mudo desejo de rever a cidade natal.
Nasci no mês de Novembro; Novembro em língua checa: listopad. Os checos, como raros europeus, embora recebendo os instrumentos de civilização formal e institucional de Roma, romana e depois católica, ficaram residualmente quanto ao nome dos meses, num mundo anterior, de nomenclatura pagã, anímica, rente à sua origem dos elementos naturais. Culto celta? Cada mês em checo, formula a imagem do ano agrícola ou venatória, o seu sintoma, o seu aroma e cor.
Em listopad, encontras "as folhas caídas". Será que daí se anuncia o meu afecto especial para com Almeida Garrett, autor do livro de poesia do mesmo nome? Nasci, pois, em casa na época em que as parturientes davam à luz nas próprias casas, prédio que ainda existe tal e qual, cinzento, angular, onde morámos num rés-do-chão inteiro, um tanto alevantado e onde o meu pai tinha, em espaços separados, o seu consultório de dentista, um laboratório técnico adjacente e a sala de espera.
Trémula vizinhança dos meus primeiros anos. Os sons da broca à antiga. Depois da morte de minha mãe, e mediante o segundo casamento do pai com uma estomatologista-cirurgiã, toda a casa foi restaurada e adaptada para clínica dentária.
A nova família, nós mudámos, a alguns passos dali, em frente, para uma casa mais elegante, da burguesia instalada. Deus levou, Deus deu, Deus ama, dizia o pai. Não por muito tempo.
Durante e depois da guerra, na qual o meu pai morreu na prisão alemã, exemplo patriota checo, o lugar onde nasci tornou-se, por sua vez e sucessivamente, uma Associação de Amigos de Animais, uma organização local do PC, uma sucursal da Caixa Geral de Depósitos checa, uma agência da Caixa de Previdência. Numa das recentes viagens a Praga quis ir até ao fundo, é maneira de dizer, e descobri o caminho, através da janela entreaberta do velho pátio abandonado, para o quarto onde provavelmente estaria instalada a cama da mãe naquele dia 26 de Novembro, onde também nasceu, dois anos mais tarde, Pavel, que morreu bebé de poucos meses, e a irmã, irmãzinha Alena, cinco anos mais nova; talvez neste momento, enquanto escrevo, ela jogue ténis nos courts cobertos, onde se chega com os eléctricos 3 ou 17. Não paga bilhete: tem mais de 70 anos, radiosos; sempre assim, con. ante até no sofrimento. Pois, não a vi durante a guerra (cinco anos) para nos encontrarmos numa rua de Praga, não sabendo se ainda estávamos vivos. É verdade, depois também não trarmos a vi desde o ano 49 até 89 do século passado. O nosso mundo era pouco razoável.
3. Estava onde não deveria estar? O bairro no qual vivi chama-se Letná. Nome airoso e é efectivamente uma colina com dois grandes parques, um no alto de Praga com vista ímpar dos terraços naturais e outros já saídos das mãos dos arquitectos e jardineiros; não longe, os estádios do Sparta e dos clubes concorrentes, nós, rapazes, imitávamos a peladinha. O meu pai foi dentista-mecenato dos profissionais do Sparta, eu admirava-os silenciosamente. O outro parque era um verdadeiro bosque, cheirava a rosas, a rápidos riachos, a cavalos e ao não distante Jardim Zoológico, quando o vento se levantava. Orgulhosamente aqui crescia a única magnólia de Praga, a noiva vestida de branco tépido. Em volta, os braços do Vltava como que feitos para os nossos saltos-mergulho na água.
A partir da nossa Igreja de Santo António, as ruas de Letná subiam. A Academia de Belas Artes, meia dúzia de cinemas, um piolho a projectar de modo inseguro os filmes de terror, westerns a sério e curiosamente, visto de hoje, as preciosas fitas soviéticas da primeira época; o cinema mais elegante do bairro cultivava a programação musical americana. Aí ouvi jazz.
Alexandre Ragtime Band contra a solidão da puberdade. Bairro de bonitas jovens. Uma era minha paixão e meu amor. Chamava-se Helena, morta com 17 anos, em trânsito para o campo de concentração, ano 1940. Reabro o silêncio que conservo tantos anos, séculos. Estremecimento longínquo, diria Clarice Lispector que era da sua família, da família de Helena.
4. Quando compreendi que todas as viagens eram possíveis, chorei, não dormi e cheguei a Paris, aliás via Londres, intermitente, oficiosamente. Não foi tão simples: mas um texto destes não tem, espero, a responsabilidade de causalidade, da disciplina dos factos ou o cuidado com o rumo dos caminhos. Em Paris fiz tudo. Porém, no princípio tive a oportunidade de conhecer a high-society da esquerda da Maison de la Pensée, visto que trabalhei como Chefe de Redacção do Semanário Parallèle 50 onde, entre outros, colaboravam Roger lèle Vailland, Claude Roy, Charles Morgan, Julien Benda, Edgar Morin companheiro de minha geração -, e cujo director era Gérard, isto é, Artur London, que me assustava ma non troppo.
Da guerra civil de Espanha, ao grande agente no Ocidente e numa depuração condenado à morte, em Praga, pelos seus antigos camaradas moscovitas, como é conhecido, salvo in extremis (lembre-se ou veja o filme de Costa-Gravas, ou leia o livro autobiográfico com o mesmo nome, "Confissão"). Era, pois, meu superior. Mais uma aprendizagem. Prefiro lembrar um almoço de domingo, preparado pela La Passionaria, ao gosto espanhol, novo para mim, na moradia suburbana de London e de sua mulher Lisa (que mais tarde o salvou, filha de um deputado do PCF), mais ainda preferi conhecer Camus, a paginar o seu jornal, e depois na rua Ciseau, ou pagar um café filtre, no Café Bonaparte a Tristan Tzara, pai do dadaísmo, ele sempre de casaco comprido de inverno mas sem camisa por dentro. Maçame falar assim de Paris onde vivi dez anos de estadia plena, não é justo, nem hoje adivinho as minhas sucessivas perturbações, assimilações, aculturações, no início do Paris oficial, mais tarde sem cidadania e sem dinheiro. Aqui escrevi o meu Tristão, em condições ásperas e extáticas em francês e em checo, sem saber exactamente como. E era bom. Foi bom? Aprendi televisão.
Tornei-me secretário do Rose Rouge, o cabaré da moda na Rue de Rennes, de Anouk Aimée.
Liguei-me a Marcel Marceau jovem, frequentei Roger Caillois na UNESCO, Renée dançava na Companhia de Jean Veidt, coreógrafo dito Vermelho, Mouloudjí corrigia o meu francês escrito, etcetera, etcetera e onde estais? Onde estais? tal como pergunta António Nobre exactamente em "Lusitânia no Bairro Latino" onde estava eu ainda sem saber da Lusitânia.
5. Só os pormenores podem estar certos e metafisicamente assumidos. Sou amigo de detalhes, de microcosmos, gosto dos pequenos países, há muito mais para ver. Portugal, por exemplo.
Porto, quero dizer. Não recusei a primeira chávena de lúcia-lima, na rua da Vilarinha.
6. Volto atrás. Um avô era da aldeia (Sudomìøice) que felizmente continua a ser aldeia. Com 14 anos . zeram-lhe a trouxa e despacharam-no para Viena, teve de marchar a pé até à capital do Império de então, a algumas centenas de quilómetros de distância, para casa de um tio que nunca vira antes. Tornou-se aprendiz de tipógrafo, enamorou-se de uma cozinheirinha húngara: suponho que jantaram em segredo na cozinha do patrão. Meu pai então nasceu em Viena. Com um ano, voltaram a Praga. Meu avô tornou-se conhecido editor que descobriu e criou "O Valente soldado Chveik" de Hasek, primeiro em forma de cadernos semanais.
O outro avô, de Kolin, retroseiro, com lojeca fixa que eu adorava, transportava-se, sempre cansado e sempre alegre, pelas feiras da região.
Não sei como morreu era o tempo confuso dos primeiros anos de ocupação alemã, mas encontrei-o, tantos anos depois da sua morte, na rua de São José. Parou. Parei. Revi-o depois numa rua do Fundão.
Tive ainda mais uma família de avós, evangélicos rigorosos. Todos os domingos, com um par de cavalos e . acre alugados, a hora certa, foram à missa, à cidade mais próxima. Antes de se reformar, esse avô tolstoiano, meu jardineiro-mor, era o prosaico Chefe-Caixa da Estação Central de Praga, porém, uma alta função financeira e moral.
7. Não foi boa ideia aceitar a proposta para redigir a biografia. As minhas coisas não estão nem nunca foram no seu sítio. Não tenho verdadeira autobiogra. a para além daquela parsemeada pelo que escrevo, enceno e até ensino. Seja como for, a autobiografia em forma desta prosa dedico-a com afecto aos leitores, alguns sei regulares, outros ocasionais. E aos filhos: Clara, Manuela, Joana, Bruno, Cláudia e Francisca, todos portugueses de olhos azuis, E aos afilhados não? Gil e Inês.
Subitamente cismo: não terei aceitado a encomenda para poder momentaneamente voltar à última página que durante tantos anos foi minha (se alguma coisa fosse minha) no J.L? Voltar a casa. Mas tudo o que está de um ou outro modo vivo, muda, murcha, ressuscita, transforma-se, desloca o objectivo, escreve na penúltima página e se fosse preciso para a paz da sua alma, tentaria compor a epopeia da sua vida na folha de um guardanapo. Agora passo a palavra.
Post retirado do JL-Jornal de Letras online
Luís de Camões, Fernando Pessoa, Mia Couto, Maria Teresa Horta, José Eduardo Agualusa, Machado de Assis, Herberto Helder, Paulina Chiziane, Nelson Rodrigues, Eça de Queirós, Clarice Lispector, José Luandino Vieira, Germano Almeida e Sophia de Mello Breyner Andresen são apenas alguns dos mais de cem escritores representados na primeira parte da antologia Literatura-Mundo Comparada: Perspectivas em Português.
Estes dois primeiros volumes, que constituem a parte «Mundos em Português», fazem uma leitura ampla de grande parte da literatura escrita originalmente em português. Os volumes seguintes incluem uma parte dedicada à literatura europeia e outra com a literatura do resto do mundo.