
FOLHAS TRAÍDAS [1]
Eis o Teatro da Casa.
Choro diante da topografia dos sentidos,
o coração da Mãe cresce na cabeça.
As cenas mais cruéis quase flutuam,
não tenho posição,
não posso preservar mais tempo
as águas do instinto.
Destroem-me o umbigo as vozes invocadas
em torno da rosácea, matriz,
metamorfose.
Este palco, este corpo.
Se corro para o mundo afogam-me as palavras.
Ajoelho a alma até sentir na boca
os teus lábios em sangue,
esse surdo rumor cuja fome
não cabe nos recitativos.
Ó tu, mãe teatral, simulacro do berço
em que pariste este inferno de folhas já traídas,
minha coroa de glória, mãos que mexem no sexo,
em que parte da casa habitas estas noites?
Cada sentido meu - disseste - será
um dos teus filhos.
Choram na minha boca as mínimas crianças
que puseste no mundo..
Mãe infeliz que caminhas nas lágrimas
e vestes devagar o medo e o sepulcro.
Ao olhar o meu corpo crescem-me os teus seios,
os meus ouvidos são o som da tua voz
e a minha língua treme nos teus dentes cerrados.
Posso mudar de sexo em cada instante
porque gritas sem dó e sem idade
dentro dos meus sonhos.
Hoje posso louvar-te, amar-te
ou devorar-te:
a memória é um espelho
que a morte arrastta atrás de si
pela garganta.
POEMA DE ARMANDO SILVA CARVALHO RETIRADO DO LIVRO "OBRA POÉTICA (1965 - 1995) - EDIÇÕES AFRONTAMENTO - JULHO DE 1998. PREFÁCIO DE JOSÉ MANUEL DE VASCONCELOS
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BIOGRAFIA
Armando Silva Carvalho nasceu em Olho Marinho, Óbidos, em 1938. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, exerceu advocacia por pouco tempo, optando pelo jornalismo, pelo ensino, pela publicidade e pela tradução.
A sua obra tem vindo a ser reconhecida pela crítica e distinguida com diversos prémios, como o Grande Prémio de Poesia APE, o Prémio PEN Clube, o Prémio Fernando Namora, o Grande Prémio DST Literatura e o Prémio Casino da Póvoa / Correntes d’Escritas, para citar apenas alguns.