OBRA BREVE
Eduardo Lourenço, no prefácio a esta edição.
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FOZ DO TEJO, UM PAÍS
O rio não dialoga senão pela alma
de quem o olha e embebeu a sua alma
de olhares ribeirinhos no passado
ou à flor do pensamento no futuro.
É um país que fala dentro da fronte,
olhando as naus, navios, barcos pesqueiros
e o trilho das famintas aves pintoras
de riscos negros, que perseguem o odor
das redes cheias, as outrossim poéticas
familiares gaivotas. É uma costa inteira
de imagens de gaivotas dentro dos olhos.
São bocas a pensar razões da vida,
gargantas já caladas pela nascença e morte,
quando entre si se vêem ou juntas olham
o mar dos seus próprios dias. São cabeças
velhas de labutar, entre dentes cerrados,
as palavras mudas de um ofício no mar,
antigas de silêncio, como se no esófago
guardassem há muito a sabedoria de ir
enfrentar o mar, transpor o mar, estar.
Tal como um rio o mar só quer falar
pela dor e alegria de alma com que o chama,
há séculos na orla, um povo mudo,
com as palavras presas, guturais sem fôlego,
dentro de si, tão firmes no palato, artticuladas
na língua interior. E o mar é quieto ou bravo,
e a alma tensa de uma paixão secreta,
escondida atrás da boca, e sempre aberta,
tal como as pálpebras diante desta água.
Só a alma sabe falar com o mar,
depois de chamar a si o Rio, no imo
de cada um, recordações, de todos
os que cumprem na linha da costa o seu destino.
O de crianças, berços nascidos à beira-mar,
aleitadas por água marinha bebida por rebanhos,
alimentadas por frutos regados pela bruma.
Mesmo quando petroleiros, se olharmos o mar,
passam sem son na glotre, para nós mesmos dizermos
que o tempo já findou das caravelas outrora
e dentro do nosso sangue passa o tempo de agora.
Também as varinas, fenícias áfonas no poema
que as canta, sabem as formas, pelo olhar,
de serem mulheres com peixes à cabeça.
E os pregões que eu calo, revendo-as, eram outra
língua do mar, os nomes com que nos chamam
para o seu modo de levar entre as casas e o mar.
Mas as dores não as ecoa o mar, nem mesmo
as de poetas, só as pancadas das palavras
no encéfalo parecem ser voz do mar.
É uma nação única de memórias do mar,
que não responde senão em nós. Glória, misérias,
que guardámos por detrás do olhar lírico
e da língua, a silabar dentro da boca.
Nunca chamámos o mar nem ele nos chama
mas está-nos no palato como estigma.
Dezembro de 1997
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão in "Obra Breve", Edição 0976, Maio 2006, Editora Assírio & Alvim, Págs. 692 e 693.
SEBASTIÃO REI
Não chegou de manto
nem com lenço e pranto
Não entrou a barra
com pendão e amarra
Não veio em ginete
com a sua gente
Não voltou da guerra
com os mortos dela
Não voltou de púrpura
com ferida ou sutura
Não voltou de coroa
nem ceptro a Lisboa
Não veio da batalha
com trajo de gala
Não trouxe burel
nem viseira e elmo
Nem trajou de estopa
nem demandou porto
Não veio doente
nem com mantimentos
Não chegou na frota
ou deu à costa
Nem alçou pendão
nem selo de mão
Nem veio às matinas
com saio de linho
Nem calçou pelica
com fivela e vira
Não voltou ao cais
nem em mês ou ano
Perdeu arraiais
e tendas de pano
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
CANTO MARÍTIMO DA RIA
De manhã o mar estende-se ao rés do Sol,
banhamo-nos para cegar de luz,
nadamos através do halo de calor.
Poder sentir a luz a escorrer junto à boca
dá-nos a humildade e a pacificação.
Um sopro mergulha no fluido da luz
de onde talvez brotou ao ser nascido,
e é a minha alma que flutua
feita de moléculas de água.
Tudo em esplendor cintila, e imagino
que quando a alma de Heitor o abandonou
foi numa manhã ao rés do mar de Tróia.
Tal como o Mediterrâneo este é um mar
parado sem o movimento, que é a onda
e o som, cingido entre os anéis de terra.
Tocou-me a água nos olhos extasiados,
seria esse o baptismo que ungiu
o meu dom das visões reais e irreais.
O mar é uma acha em brasa
que lacera uma das minhas faces,
por isso ofereci ao vento
a outra nas manhãs sombrias.
E dei o meu corpo à superfície lisa
que unia os quatro elementos,
ou seja a terra, o mar, o ar, o fogo
tal como quando os Gregos os pensavam.
Vendo as garças a voarem lentas
sobre os pequenos lagos ígneos
sei que se fossem comburentes
não vboltariam ao solo brancas e quedas,
como quando ostentam o colo
entre os juncos das margens similares,
e de súbito intuo que a Natureza
trouxe as garças para os altos juncos
e me levou a mim ao raso mar
onde o meu corpo bóia incandescente
jazendo quando dorme, ou morre, ou nasce.
A minha juventude amou a manhã
sabendo que ambas as idades são iguais,
mas o corpo arde plano na água do fogo
enquanto o Sol se queima entre a terra e o ar,
e somente os filósofos metereologistas
souberam separar os elementos juntos
na Natureza visível e invisível.
Volto a banhar-me na Ria, no silêncio,
no ardor, no sonho, na volúpia
e termino o poema com o mesmo
fogo interior sorvido pela boca
do verso inicial no pleno mar.
Não só nesta praia a saudade de Heitor
me é trazida pelo fulgor do mar
como a de um jovem morto outrora
por Valéry, pelo Sol e por Fauré.
Tantos mil anos-luz da imagem
de Heitor estão depois do seu vulto
quantos do vulto do jovem morto
mais me separa a saudade da imagem.
6/11/93
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO in «CANTOS DO CONTO» QUE INTEGRA "OBRA BREVE - POESIA REUNIDA", EDIÇÃO 0976, MAIO 2006, DA EDITORA ASSÍRIO & ALVIM
EPÍSTOLA PARA UM CISNE
Cisne, que não conheces na água o teu reflexo verde
quando sob o teu corpo é dia e o sol afaga quedo
ou quando do teu porte há a sombra negra igual
e tudo o que está negro, e é noite, e abandono e medo.
Nem concebes o amor, nem Leda, nem sequer eu mesma
que te amo no poema e temo o canto imaginado
que não cantaste agora ou não ouvi, de madrugada
quando a minha mãe morta era somente insone.
Nunca viste a beleza, nem a vida e os lábios
que sopram as primeiras e últimas palavras, ou
o hálito que sai sem voz da dor mais desolada.
Nem a doença, a morte e os olhos sem imagens
do ar e das cores várias viste em que tu vogas branco.
É falso que celebres sozinho a tua morte e o fim,
se não sabes que só o teu outro cisne se perde.
Mas quando vi insone e logo morta a minha mãe
estou certa de que a cega, a muda, falsa ave cantou.
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO IN "OBRA BREVE - POESIA REUNIDA", EDIÇÃO 0976, MAIO 2006, ASSÍRIO & ALVIM
CANTO DAS IMAGENS
Ao princípio era só uma em cada olhar
após a grande divisão das águas
e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem
até ao seu século do real múltiplo
era una, única e própria. Dementes
chamou este cantor aos fotogramas
que roubavam à alma a unicidade
e deram aos olhos frívolos as figuras
plurais, idênticas, dispersivas.
Era somente uma a imagem mística,
dos entes naturais aos transcendentes.
Só uma esta vermelha afelandra
embora as suas irmãs se lhe assemelhem
e desassemelhem, cada uma, sempre.
O concreto pulsava neste ritmo
das coisas parcas, poucas, singulares.
E de repente, nos olhos do poeta
cada coisa reproduziu a imagem
inumeradamente, e a ideia
decaíra no banal prolixo.
Antes, podia hesitar-se entre o modelo
e as sombras de Platão, agora as flores
malignas podem reproduzir-se no mundo
nítidas, iguais, supérfluas.
Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire
e cada coisa vibra no seu mito,
e cada imagem cria o seu espírito,
e cada cópia fotográfica muda
na liminarmente máxima diferença.
Ao crítico e amante da Pintura
as dúbias imagens decerto deram
a cada rosto um só outro rosto,
a cada paisagem uma só tela.
Já os vidros, a água, a prata traziam
a incerteza aos traçoa, como se os olhos
que nos deu a Natureza nos fossem
infiéis. E o poeta pôde resistie
a esta perda das formas consagradas
e consubstanciais das coisas que ainda
ecoam a Criação como o eco cósmico.
30 de Outubro de 1993
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
Fiama Hasse Pais Brandão
CANTO DOS INSECTOS
Podia cantar as aves, mas os insectos
são um misto de aves, de astros e de átomos
que giram em órbita como as imagens de atlas
do Universo ou esquissos de átomos.
As aves são as almas regressadas
ou que vêm da matéria para nós.
Este besouro zumbe junto ao tímpano
a voz com a qual o Amado me bafeja,
afasta-se e aproxima-se entre as tílias
que plantei em nome de Wolfgang Goethe
e hão-de dar a flor fonte do sono.
Por baixo delas o gato semovente
mostra a harmonia da garra que lambeu
para lavar o filho, e reconhece-o
como se fossem gatos num só ser.
Rente ao solo pisam a matéria viva
que é a erva, a terra e os mil milhares
dos ovos que movem a Terra astro.
São esses os insectos que são pó,
que nos roçam os pés e nos transportam
entre o nascimento e a primeira morte.
Quando o besouro passa ou poisa aqui,
o seu contexto move-se, e não pode
deixar mudar sozinho aquele insecto
sem o real concreto que o envolve.
A flosa canta a sua identidade
sem saber que é única neste espaço
em que as aves, os animais e o poeta
enquadram os insectos, em fase larvar.
Canto os que vão procriar na terra
fermentada e os já pairam aqui
desde que me senti tão similar.
O tempo é demarcado pela medida
do olhar que segue o sulco do insecto.
Tudo aquilo que está a ser olhado
aruma-se no verso com a ordem
que coloca os seres em relação recíproca
provável mas de evidência falsa
Ao poente o silêncio é o leito e o fundo
onde vibram os sons dde várias graças,
entre as agora espúrias aves canoras
o zum-zum estelar das moscas da tarde
anuncia a noite em que zumbe o Mundo.
A luz do Amado aconchega a noite,
acolhe o solitário na barca iluminada
e eis que o Rio tão próximo dá a imagem
da barca redentora que nos chama.
Ao cair da noite as tílias ficam
com as suas folhas secas de Outubro
à espera da manhã que as vai reter
presas um pouco mais na luz espalhada.
Sentada no jardim vejo o crepúsculo
juntar o insecto, o gato e a tília,
e o que a Natureza une ante os meus olhos
nada o pode desunir naminha vida.
Canto o bater das asas mínimo no ar
como um sopro de aragem num rebento
ou o escaravelho que dobra o fio da erva
e nele dança na oscilação.
Estou aqui a amar e a contemplar
o esforço e a força de cada ser.
O escaravelho cai na mão do Amado
e à sua direita tem o seu lugar
quando for esmagado pelo algoz
que não esteja possuído de fascínio.
Não desisto de cantar os animais
e as plantas que no berço me embalaram
e me ditaram a voz própria dos poemas.
O coração palpita-me como o abdómen
da borboleta que vem beber o néctar
da tília, que eu esperarei ainda.
Estou a vê-la, ela sacia-se e afasta-se
na fuga que eu atribuo ao seu voar.
Também o ventre do gafanhoto lateja
e o do grilo, suspensos pelos ângulos
das patas que lhes prendo. Tudo
está aqui disperso e ordenado
entre a manhã aberta que inicia
e a outra noite que hora depois de hora
emudece os sons até á morte.
E o pânico e a paz nocturnos
juntam-se como todos os contrários.
Dia e noite os insectos percorrem
em redor de nós a sua elipse.
O moscardo negro veio cintilar
na futura manhã que se repete.
Cada voo entre o poente e o futuro
está imóvel como nós no Tempo.
Subitamente a borboleta defronta
o pequeno gato ágil não onírico.
Move sádico devagar o dorso,
rasteja e salta, ora prendendo-o
ora soltando o breve corpo alado
que facilmente a imagem assemelha
a um ciclâmen que se solta e adeja.
Verei se o fôlego do insecto não sufoca
no duro jogo da cria de felino
a quem o instinto tão cedo movimenta.
Ficarão longo tempo nesta luta
fortuita e repentina em pleno cosmos
como entre si combatem os iões.
A borboleta oscila entontecida
indignamente prostrada sob garras,
ela que é o símbolo visível
da metamorfose galáctica.
Também o gato é belo, mas fatal
no destino circular da borboleta,
inato caçador de sons alados
néscio e voraz ele desconhece
o ciclo em que se gera a sua vítima.
E mesmo sem metamorfoses, o real
muda, repete e imagina sempre,
e cada estádio não é um só estádio.
O Amado volta cada noite inteiro
assinalando o espírito e a carne.
Na manhã que decorre, o seu sinal
é a perene borboleta que resiste
e só há-de morrer na morte absoluta
em que a matéria se perderá.
Está viva sobre a relva, embora as asas
pareçam pétalas pisadas. Não voa,
e estremece a recordar o voo.
E a Mão direita que nos abençoa
marca no seu corpo a sombra do Sol.
29 de Outubro de 1993
POEMA DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - In "Cantos do Canto", retirado do Livro "Obra Breve", edição 0976, de Maio de 2006, editado pela editora Assírio & Alvim
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BIOGRAFIA DA RESPONSABILIDADE DA EDITORA "ASSÍRIO & ALVIM"
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
CATÁLOGO BOTÂNICO DA PRIMAVERA
Principia a estação, com o seu ruído
feito de sons de pássaros, que eu decifro.
Mais difícil sinal são as cores várias,
que despontam cada dia e eu vejo,
ano após ano, iguais e singulares.
Primeiro, um pouco além, o lírio roxo,
que me traz consigo a criança viva
que o colheu e, tal como a um barco
o fez singrar, só, roxo, macerado,
na água que descia por um rego.
Um lírio com a mão que o cortara
já decepada e presa ao passado,
sem o seu corpo. Vejo as três pétalas
assim a confundir-se com os três dedos,
como se as nossas mãos por vezes vivessem
mais do que os passados corpos.
Depois, foi esta a manhã das camélias
brancas, cravadas com dureza em rostos,
que, ainda de olhos fechados, tocam
as corolas em busca do seu cheiro.
São camélias mortais, e ainda atraem
a face dos mortos, que algum dia
as bafejaram com o seu hálito próximo.
Manchas brancas de círculos informes,
cada círculo contendo outro círculo.
E, no centro de cada rosto, apenas,
em cada Primavera, duram os olhos.
Já caem as glicínias, de alto, sobre
o esplendor do crânio ou do cabelo.
São cachos também roxos, em manhãs
de assombro, por cada dia mais
trazer um diverso cacho pendente.
Misturam-se com a cabeleira antiga
estes cachos de glicínias de hoje.
Mas são absolutos, novos, singulares
os momentos com a sua luz e cor,
os seus insectos e as suas sombras.
Alguém, que os colhera os fez prender
entre cabelos fecundos, de orelhas,
adornos para os filhos da Terra.
Estão, depois dos lírios e das camélias,
para salvar, em cada dia novo,
o viço dos cabelos, mais eternos
do que a já sepultada carne. Carne
de alguém que tinha um nome seu e que
se oferecia, com deleite, ao Tempo.
Só pode ter sido a de parentes, dúbios
cohabitantes do ser que relata
esta actual Primavera, com saudade.
A Primavera, que me surpreende
somente por estar a ser olhada.
Se aquela rosa rubra, na manhã
em que surgiu, logo fosse ignorada,
eu não estaria aqui neste papel,
dando-me inteira à nova Primavera.
Recebo-a, olho-a como um visitante,
aliás porque, na sua latada,
ela está perto do meu sólio. Rosa
de repente vista, primeira rosa
na natural frescura. E, também,
o vento lhe tocou, e já a abrem
aquelas mãos que haviam sabido
lançar barcos de pétalas aqui.
Junto da rosa só cabe esta boca,
pronta a beijar com amor as suas línguas
ou a beber a linfa que é da abelha.
Havia uma boca assim, sem a face,
a respirar ao ritmo dessa rosa,
que hoje nasceu fadada para ser
a sempre minha, única, igual.
A cor da rosa mostra-me o lugar
daquela boca, e eu quero sentir-me
aqui e ali. Pois vejo-te, rosa,
e vejo a outra, a que foi beijada.
Assim, não posso mais do que olhar.
Rosas terás em redor, solitária.
- Eis os melros, rasteiros, que insistem
em tornar-se evidentes, saltitando
sobre cômoros de terra. Mas hoje
perante o mistério das flores súbitas,
são como eu, embora não como eu,
com a negra plumagem que os cobre.
Sobre a lage do poço correm dois,
negros contendores no mesmo sprint,
músicos de assobio que eu bem entendo.
E, próximos da rosa, mas alheios,
estão a nascer os narcisos, de amarelas
frisadas campânulas e de sépalas
perto do solo, e que se elevam
na luz de cor. Também uma figura
de mulher genuflectida as colhia,
e uma criança, oscilando no riso,
quer ter para si uma flor solar.
Junto aos eternos matizes das pedras,
a cor dos narcisos, nítida, clara,
evoca esses desejos saciados
em tempo ido: o da mulher, prendendo-os
no seu seio, e os da criança, seguindo
o movimento que pertence ao tempo.
Hoje, como hei-de separar os corpos
da haste e da corola dos narcisos,
pois a mancha amarela tem a forma
humana contida em si, curva, erecta.
Salva-me o vermelho vivo da rosa,
que atrai a cor intensa dos narcisos
para contraste, outra tensão,
que eu revivo, amando o beijo da rosa
e a prece ao sol destes narcisos.
Mas outra prece, hesitante, desponta
ao raso dos terrenos, dispersa, ágil.
Flores que vibram esguias e tácteis,
de um vermelho ardente, submissas
como pálpebras, ao cair da noite.
Abrem-se na aurora, comovidas
pela unção da luz, porque se chamam
páscoas. E são amadas, benditas.
Anunciam a passagem eterna
da luz sagrada entre noite e aurora.
A aragem devagar as sacode,
finas folhas e hastes a dançar,
em pleno dia de êxtase, no sono
das corolas exaustas pela noite.
Noutra manhã, eu vejo, deslumbrada,
a poalha da brancura florida
que envolve os troncos velhos da ameixoeira,
flores que o ar conhece e o vento leva,
há muito, para lugares e tempos.
Poalha em que não estão vultos humanos.
Apenas um nó de sombra, atrás
de cada flor, mostra a imagem de antes
ou a espessura de um fruto futuro.
São as flores do jardim que guardam o enigma,
pois cada espécie vista tem em si
um sinal visível de outra estação.
Flores solitárias que, uma a uma, vêm
ligar-se a fragmentos de vida antiga.
- Repetem-se os melros p'lo empedrado,
a debicar sempre nas pedras húmidas,
sob o fascínio do cálido dia.
Tão nítidos, tão certos, a presença deles
não cabe ao lado de uma flora rara,
a desta Primavera em narração.
Também os loureiros em flor, visíveis
ao longe como nuvens, são visões
completas, com a floração e as folhas
na mesma cor de sempre, indecifrável.
Alguém pega no ramo do loureiro,
num verso clássico, e o dá a toda
a humanidade, pois a memória
da poesia passa de poeta a poeta,
para o mundo. Se o meu relato é vivo
é porque olho c'os outros a Primavera,
e nesta Primavera eu vi melhor,
presa do assombro do que é novo e antigo.
Os meus olhos, o espírito e as mãos
pegam em cada imagem de uma flor,
em cada dia de visão e ganho.
Mas a perda, enfim, virá somar tudo
igual a si mesmo, uno, passado.
E, de repente, uma flor de palavras
muito branca chega até mim, e é
esta estação, nesse florir de goivos.
Uma carta traz-me inscrita as palavras
de Eugénio, goivos, e o seu eflúvio.
Esta transcreve-a ele de Pessanha,
diante de tão nítidos canteiros.
Grata, prendo-me a esses elos vivos
da corrente de vozes, que se oferecem
aos ouvintes, depois de recolherem
o real, o findo, o que foi amado.
Aqui, depois do loureiro, floriu
a acácia, também sem qualquer vulto
escondido no seu florir imenso.
São árvores solitárias, constantes
na pura relação com a luz solar.
E, talvez por fim, neste infinito,
uma inflorescência de gladíolo
rosada, erecta, se tenha aberto.
Vem de um único bolbo, soterrado,
está só, entre a verdura vária.
Junto de si viveram outras hastes
também de gladíolos, há muito tempo.
Braços levaram-nas juntas, consigo,
em braçadas de amor e de alegrias.
Os braços são as linhas de matizes,
unidas em redor da cor suavíssima
das flores de hoje, a florir aqui.
Cada manhã me põe diante dos olhos
nova forma de cor e luz e, às vezes
figuras esbatidas de outra estação
igual, porém perdida já, inane.
- Melro audaz, que te aproximas mais
de mim, ou do que eu fui e agora sou,
não vejas que eu represento o Tempo.
A tua colheita de grãos e de larvas
seja o teu mais subtil pensamento.
- E, afinal, entraste no meu espaço,
num intervalo entre o concreto e o abstracto.
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão
Carcavelos, Março, 1997
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FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
CANTO DAS IMAGENS
Ao princípio era só uma em cada olhar
após a grande divisão das águas
e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem
até ao seu século do real múltiplo
era una, única e própria. Dementes
chamou este cantor aos fotogramas
que roubavam à alma a unicidade
e deram aos olhos frívolos as figuras
plurais, idênticas, dispersivas.
Era somente uma a imagem mística,
dos entes naturais aos transcendentes.
Só uma esta vermelha afelandra
embora as suas irmãs se lhe assemelhem
e desassemelhem, cada uma, sempre.
O concreto pulsava neste ritmo
das coisas parcas, poucas, singulares.
E de repente, nos olhos do poeta
cada coisa reproduziu a imagem
inumeradamente, e a ideia
decaíra no banal prolixo.
Antes, podia hesitar-se entre o modelo
e as sombras de Platão, agora as flores
malignas, podem reproduzir-se no mundo
nítidas, iguais, supérfluas.
Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire
e cada coisa vibra no seu mito,
e cada imagem cria o seu espírito,
e cada cópia fotográfica muda
na liminarmente máxima diferença.
Ao crítico e amante da Pintura
as dúbias imagens decerto deram
a cada rosto um só outro rosto,
a cada paisagem uma só tela.
Já os vidros, a água, a prata traziam
a incerteza aos traços, como se os olhos
que nos deu a Natureza nos fossem
infiéis. E o poeta pôde resistir
a esta perda das formas consagradas
e consubstanciais das coisas que ainda
ecoam a Criação como o eco cósmico
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão escrito em 30 de Outubro de 1993 retirado do livro "Obra Breve - Poesia Reunida", páginas 558 e 559, com prefácio de Eduardo Lourenço, e edição da Assírio & Alvim n.º 0976, Maio de 2006
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Dramaturga, tradutora e poeta, formada em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa, exerceu actividade de investigação na área da literatura e da linguística. Revelou-se com "Morfismos", no âmbito da iniciativa Poesia 61, colectânea que reflectia uma tendência poética atenta à palavra, à linguagem na sua opacidade, na busca de uma expressão depurada e não discursiva. A criação poética de Fiama Hasse Pais Brandão impõe-se pela busca de uma expressão original, onde as palavras tentam evocar uma essência perdida, anterior à erosão do tempo e do uso corrente. A desconstrução das articulações do discurso e a sua metaforização provocam um estranhamento que conduz o leitor a despir a linguagem da sua convencionalidade e a entrever o acesso pela palavra pura a um tempo primordial. O critério de "amor pela leitura" que presidiu à versão de Cântico Maior pode, por extensão, ser aplicado à obra da autora que apresenta como fontes de emoção poética "o texto que cabe na pupila: o simultâneo, a grande cena das metáforas e das comparações, a Visão multiforme do Conhecimento (pus no coração a Sabedoria de Ezra), que é parcelar nas palavras e nas imagens e que só por acumulação diurna e através da absorção pupilar (como a do ar) tende para o Todo." ("Do prefácio de Cântico Maior", reproduzido em "Apêndice" a Obra Breve, 1991). Sob o Olhar de Medeia, a obra que marca a primeira incursão no romance por parte desta autora, foi publicado em 1998. Faleceu em Lisboa no dia 20 de Janeiro de 2006.
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
GRAFIA 1
Água significa ave
se
a sílaba é uma pedra álgida
sobre o equilíbrio dos olhos
se
as palavras são densas de sangue
e despem objectos
se
o tamanho deste vento é um triângulo na água
o tamanho da ave é um rio demorado
onde
as mãos derrubam arestas
a palavra principia
(MORFISMOS, 1961)
Ao princípio era só uma em cada olhar
após a grande divisão das águas
e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem
até ao seu século do real múltiplo
era una, única e própria. Dementes
chamou este cantor aos fotogramas
que roubavam à alma a unicidade
e deram aos olhos frívolos as figuras
plurais, idênticas, dispersivas.
Era somente uma a imagem mística,
dos entes naturais aos transcendentes.
Só uma esta vermelha afelandra
embora as suas irmãs se lhe assemelhem
e desassemelhem, cada uma, sempre.
O concreto pulsava neste ritmo
das coisas parcas, poucas, singulares.
E de repente, mnos olhos do poeta
cada coisa reproduziu a imagem
inumeradamente, e a ideia
decaíra no banal prolixo.
Antes, podia hesitar-se entre o modelo
e as sombras de Platão, agora as flores
malignas podem reproduzir-se no mundo
nítidas, iguais, supérfluas.
Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire
e cada coisa vibra no seu mito,
e cada imagem cria o seu espírito,
e cada cópia fotográfica muda
na liminarmente máxima diferença.
Ao crítico e amante da Pintura
as dúbias imagens decerto deram
a cada rosto um só outro rosto,
a cada paisagem uma só tela.
Já os vidros, a água, a prata traziam
a incerteza aos traços, como se os olhos
que nos deu a Natureza nos fossem
infiéis. E o poeta pôde resistir
a esta perda das formas consagradas
e consubstanciais das coisas que ainda
ecoam a Criação como o eco cósmico
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão, OBRA BREVE [Poesia Reunida], Assírio & Alvim, edição 0976, Maio de 2006
ANJO MORTO
O corpo passa entre fendas na madeira.
Graficamente a representação é igual
aos veios claros e escuros. Podes
ser um corpo e no entanto também uma
linha cor de sépia. Tu foste
asfixiado pela Poética. A liberdade que
Te era possível na estrutura do Poe-
ma levou-te até à agonia. Mas a voz
em estertor é minha. E as linhas frágeis
no papel comovem-me. Tu és o Único
nesta gravura baça a água-forte.
És um resíduo incandescente. Quan-
do Te invoco recupero-Te poe-
ticamente. Nada de Ti me falta. Apenas
não Te conheço mais completo do que
ver-Te entre fendas. Ou sem lucidez.
A possibilidade que tens de me seres
alheio torna-Te incisivo como o corte
da goiva. A tua presença morta é a úl-
tima confirmação da natureza íntima
da imagem. Sulco morto na matéria.
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão extraído do livro "Obra Breve - Poesia Reunida", edição Assírio & Alvim n.º 0976, Maio de 2006