Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
... Acuso!
Ai vida sem alegria,
Sem desespero nem nada!...
A gente deita-se..., é noite;
Levanta-se a gente..., é dia;
E a mesma porta fechada
Do lado de cada estrada,
De cada lado de cada!,
Finge de guia.
Assim, que posso eu fazer
Da minha alegria?!
Tinha alegrias profundas,
Só comparáveis
Aos meus desânimos...
... Tenho-as:
Mas esses dons inefáveis
Sobem-me à boca,
Volvem-se em azedume...;
Que eu renho dentes postiços,
Com cárie de verdadeiros.
Protesto...!, e com todo eu.
De que me vale?
Só como
O que me dão a comer
Os carcereiros.
Só bebo
O que me dão a beber.
Só tenho o que não é meu...!
...De que me vale?
("Acima, acima, gajeiro,
Acima, ao tope real!")
Ai tope real quebrado,
E conservado, embrulhado,
No quarto dos quatro muros!...
Eis o meu quarto:
Fechado;
Cortininhas nas janelas;
O tope real a um canto,
Mumificado:
... Como um violino sem cordas.
No chão, passeiam baratas:
Luzidias, bufas, gordas...
Aos cantos, teias de aranha:
... Como frangalhos de rendas
De sonhos empeçonhados,
Com insectos enredados;
Um cemitério de moscas
Pendente
Do tecto recto,
Como um pingente;
E eu..., a passear de alpercatas
E a declamar às paredes
Qualquer velha lengalenga
Com luas e pauis...
(" Vá, ... queres que te conte o conto
Das calças azuis...?")
O cemitério das moscas
Bate-me, às vezes, na testa.
Tropeço em cadeiras toscas
De pé coxinho...
E ao lado, o Senhor Antunes,
Que é meu vizinho,
Escarra tão virilmente
Que faz tremer as paredes...
A bela Dona Praxedes,
Senhora decente
Do quarto da frente,
Rompe vingativamente
Num sarcástico falsete.
E o papagaio da escada
Comente e repete:
"Má-raios de gente!,
"Tudo uma cambada...!
"Má-raios de gente!,
"Tudo uma cambada...!"
São palavras da criada.
Eis o leito em que me deito,
No buraco do meu quarto,
E em que sofro a dor do parto,
Que não acaba,
De Mim Próprio!
(... Clarões, incêndios, sóis, cúmulos,
Asas de anjos sobre cúpulas,
Passagens do Mar Vermelho...)
Eis o meu quarto, que cheira
A cisco, a velho,
E a vida podre e vazia...
Ai vida sem alegria,
Sem desespero nem nada!...
A gente deita-se: É noite.
Levanta-se a gente: É dia...
Boi gasto, sofre o teu jugo!
(... A unha maior, mordi-a:
Sabe-me a boca a sabugo...)
Puxa o teu carro!,
Sofre o teu jugo!,
Arrasta a tua charrua...!
E, se estás gasto de todo,
Podes ficar, alastrado
Na lama da rua...
Num travesseiro de lodo...
E revirando a quem passa
Um olho morto, vidrado,
Redondo, espantado, enxuto,
mas enorme,
Porque atrás dessa vidraça
Deus não dorme!
Poeta
De lábios de infante,
Cabelos de seda,
Sorrisos de luto...,
- Que pairas
Ao canto
Da janela baça?
Que sonho te enreda,
Que tanto
Desvairas?
Retira-te!, enfia
As mangas de alpaca.
E senta-te à mesa, e começa...
Inclina a cabeça,
Co'a língua de fora,
E copia, copia, copia, copia,
Com letra legível e opaca.
Ora agora,
Consegue que goste, e sorria,
Sua Senhoria
O chefe da secretaria.
... Assim, que posso eu fazer
Da minha alegria?
Acuso!, protesto!, acuso!
De que me vale?
... Teus versos,
São sérios, ou mangação?
Não sei o que são!
Tens mesa, e compras toalhas...,
Mas falta-te pão.
São soluços de ironia...
Ninguém tos compreende... E vão
Encher-tos de gralhas
Na tipografia.
... Assim, que posso eu fazer
Da minha alegria?
Que a bola que rebola achei-a pouca,
O tecto baixo e recto me pesou,
Pela frincha da porta o fumo entrou,
Por isso a fonte cantou rouca!
Por isso a fonte cantou rouca,
A fonte que Deus benzeu.
Que o mundo que lá passou
Lá se mirou...
, e bebeu!
Por isso, eu...,
"Por isso grito e gritarei,
"Do fundo da minh'alma até à morte:
"Aqui-d'el-rei! Aqui-d'el-rei!"
Poema de José Régio