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Pois, senhores, falo-vos hoje da Maria de Lourdes, empregada de tabacaria e poeta. Tem vinte anos, olhos negros e tristes, vive num quarto sem janela e é orfã de pai e mãe. Não me perguntem como foi que adivinhei o segredo escondido: acreditem, apenas.
Há no mundo muita coisa inexplicada: guerras, fortuna, jogo, jeito para o negócio, navios da carreira de África. Matéria-prima para sonhos passados aos direitos. Aventura. Milagre.
A Maria de Lourdes tem vinte anos. (E isso que importa?). A Maria de Lourdes é poeta. (Melhor fora que tivesse voz e cantasse em programas radiofónicos). A Maria de Lourdes é triste. A Maria de Lourdes é feliz. (Será?).
Todos os dias, chega um navio ao porto. (É o teu, Maria?). Todos os dias se embarca para a América.(E tu, Maria, e tu, Maria?). Todos os dias se vendem maços de tabaco, bilhetes de cinema, consciências. (Cautela, Maria; cautela, Maria...):
Bom dia, Maria. Boa noite, Maria. Boa tarde, Maria, triste e feliz, que fazes versos a pedir desculpa. E se o milagre acontecesse? Olha o Menino, a descer pela corda frágil de um raiozinho de lua!
Beija-lhe os pés, Maria. O céu é para todos.
Esta madrugada olhei a estrela-d'alva e lembrei-me de ti, Maria. De ti, rapariguinha triste, poeta, empregada de tabacaria. Há quem diga que a Terra é redonda. Mentira, Maria - ou pelo menos não o é, se não houver sentido para o amor iconsequente.
E o cansaço nos ombros, Maria? E a saudade sem nome? E Paris, cada vez mais distante? E o teu vestido azul, primaveril? E os fantasmas com passaporte para as Ilhas, acções desvalorizadas, compromissos de emprego e de família?
Não há nada a fazer, minha filha. (D. Quixote casou com Dulcineia que era, ao que me dizem, um óptimo partido). Das nove às sete, com intervalo para almoço, escrever poemas na Praça da República: para quê, Maria, para quê?
Adeus, Maria
Crónica de Daniel Filipe in "Discurso sobre a cidade" editado pela Editorial Presença em Setembro de 1977.