Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



#2591 - Crónica de uma rua com gente

por Carlos Pereira \foleirices, em 16.09.17

A rua inclina-se até ao rio manso, frágil, e às vezes - muito poucas, é verdade - um nadinha violento. Uma questão de humores que têm a ver com as conversas fiadas que ele escuta dos salgueiros que têm a raiz nas suas margens, ou das tropelias de rapazotes inconscientes, que ele não suporta, que lhe provocam azia e problemas de barriga. O único ser vivo que ele tolera, porque não tem outro remédio,  é um pequeno peixe de escamas alaranjadas que também tem as suas azias quando a qualidade da água lhe merece desconfiança. Então pequenas escaramuças acontecem - entre o peixe e a água do rio - e pequenas ondas de  protesto atiram com a água para fora das bordas. É o único momento de bulício e de desassossego que acontece naquela rua.

 

A rua, com pouco comprimento, tem seis casas de cada lado, pintadas de branco com uma lista amarela ou azul na parte inferior da parede, com um pequeno jardim na frente e, nas traseiras uma pequena horta, começa numa pequena praça ajardinada que tem no  centro um belo coreto em ferro forjado e acaba na margem direita do rio. À mansidão dos dias, mansos dias se sucedem até que, um  dia, alguém teve a ousadia de plantar nos postes de iluminação pública cartazes a reclamar a atenção dos habitantes habilitados ao voto para promessas que eles não necessitavam e não compreendiam. Sentiam-se tratados como tolos. Alto aí! Disseram todos.

 

O dono da botica que era, ao mesmo tempo, farmacêutico, merceeiro, barbeiro, conselheiro, homem com poderes estabelecidos e de confiança - por ser o mais rico dos pobres - e que toda a gente ouvia sem reservas, por ser prudente e com bom senso, incomodado com o assunto e dando corpo às vozes de protesto, assumiu o seu papel de líder e representante da população e decidiu que haveriam descer a rua em forma de procissão. E assim aconteceu. À medida que desciam a rua,  os cartazes eram retirados e lançados no estrado do carro de bois. Tudo era feito em silêncio, de forma ordeira, sem sobressaltos. Quando chegaram à margem do rio, o líder cumprimentou o rio, teve uma breve conversa com o peixe, e foi acesa uma fogueira onde foi queimada a mentira e a promessa nunca cumprida, a falta de respeito, o insulto à inteligência. E os candidatos que prometiam promessas nunca mais foram vistos.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 18:09


Mais sobre mim

foto do autor


Pesquisar

  Pesquisar no Blog



Castelo Santa Maria da Feira (Pormenor)


Arquivo



Links

Outras Foleirices

Comunicação Social

Lugares de culto e cultura

Dicionários

Mapas

Editoras

FUNDAÇÕES

Revistas