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Voltaire (François Marie Arouet)
Estou caminhando para o fim,
como todos. Uns mais precisos
que outros. Menos desconfiados,
mais abúlicos. O rei Frederico,
o Grande, e eu nesta hora
somos iguais, salvo na estatura.
E os relógios despertam com certa
pressa de tomar a carruagem
e a estrada, tomar os indícios
da vida pela mão e embalar
o tempo que nos falta.
Vivi na corte, como se tivesse
que ser espirituoso, bufão,
irônico, dócil, cortesão
sem deixar de ser lúcido,
um veterano ator de rugas
que não são cortesãs. Estúpidas.
Servi à corte - sapiente, filósofo,
enciclopédico de sonhos
escritor de alegórico engenho,
um humorista do abismo.
E como segurar esta laminar
inteligência, salvo cortando,
cortando, até que fique
a essência, o núcleo divisor
entre a cultura e o homem.
E a burrice infesta
esta nobreza,
que ao mérito inveja
e mais ao gênio.
Com fervor me toco.
Vou-me despedindo
dos despejos, criados,
femenis vaidades.
Decoroso:.
Ouso falar aos pósteros:
meu uso de linguagem -
sóbrio, justo é francês,
cartesiano e de menos,
até o osso. De onde
não ultrapassa a faca.
Escondo o desgosto
de ver-me enfraquecer,
por ter já sido lépido,
ágil, elétrico. Tudo
é de menos
para os que em futuro
apostam.
Olho a manhã por último.
É doce, não sabe em que
caminho se adivinha o fim,
ou o atalho. E nem carece
de saber. Não traio
este destino em mim.
Verney e o pomposo
Castelo não me eximem
de rir. Mostro-me mais
humano, não tão calculista
ou frio, como pensam
conterrâneos. E esses
nem conseguem expor
a ausência de olhos.
Sou um voluptuoso
do infortúnio e eles,
nada. E o talento
de existir não para.
Menino de tanto ver,
bebo o fiim
como um vinho
de fina, casta
e solteira garrafa.
Provo. É estrangeiro,
o corpo. Minha ferocidade
não se apaga.
Mesmo morto.
POEMA DE CARLOS NEJAR, POETA BRASILEIRO, RETIRADO DO LIVRO "OS VIVENTES", PÁGINAS 312, 313, 314, 315, EDITADO POR LEYA BRASIL, DEZEMBRO DE 2010
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BIOGRAFIA
Quinto ocupante da cadeira nº 4, eleito em 24 de novembro de 1988, na sucessão de Vianna Moog, foi recebido em 9 de maio de 1989 pelo Acadêmico Eduardo Portella.
Carlos Nejar, poeta, ficcionista, crítico, nasceu em Porto Alegre (RS), em 11 de janeiro de 1939.
Fez sua formação primária, secundária e o curso clássico no Colégio do Rosário em Porto Alegre.
Iniciou na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul o curso de Letras Clássicas, não o concluindo. Formou-se, pela mesma Universidade, em Ciências Jurídicas e Sociais (Direito) em 1962.
Fez exame de Suficiência na Universidade Federal de Santa Maria (RS), tendo sido aprovado para lecionar Português e Literatura no 2.o ciclo do magistério estadual.
Fez concurso para o Ministério Público do RS. Assumiu a função em 1963, atuando em diversas comarcas do Rio Grande do Sul: Pinheiro Machado, Bagé, Taquari, Uruguaiana, Itaqui, São Jerônimo, Erexim, Caxias do Sul e Porto Alegre, pelo critério do merecimento.
De 1965 a 1973, foi também professor de Português e Literatura nos seguintes estabelecimentos estaduais de ensino: Escola Normal Álvaro Haubert e Colégio Estadual São Patrício, em Taquari; Colégio Estadual Castro Alves, em São Jerônimo; Escola Normal José Bonifácio, em Erexim; Colégio Estadual Cristóvão de Mendonza, em Caxias do Sul.
CARLOS NEJAR
A GENEALOGIA DA PALAVRA
Minha morte começa a amadurecer e depois
vou comê-la como uma pera, largando o caroço
fora e depois vai vir uma semente com o mesmo
nome que vai crescer e amadurecer. Mas já não
é minha morte - é surpresa da terra apenas -
descendência de uma morte futura. Depois as
gerações perdem de vista a própria morte que
aparece como fio de água no meio das pedras,
visível a um e outro profeta. Mas nada abalará a
espécie: a vida também foi vista como um fio de
água no meio das pedras. Só que não se podia
distinguir os fios e as águas que conversavam
entre si, sem preconceito. E até moravam juntos,
vez e outra. Depois minha morte vai amadurecer
de novo, mas não será da mesma natureza. E
aprenderei a falar com o mundo. E o mundo vai
amadurecer como uma pera e depois vai vir uma
semente com o mesmo nome. Porém, já serei
eterno.
POEMA DO POETA BRASILEIRO CARLOS NEJAR, RETIRADO DO LIVRO «OS VIVENTES» - EDIÇAO DA TEXTO EDITORES LTDA - BRASIL PARA A LEYA BRASIL, 2011
Carlos Nejar
Não quero que me encontrem
ou molestem. Isolo-me no quarto
de um país, onde posso
entretecer o génio.
Não usei como tantos,
bota rude na perna
cortando o lodaçal,
nem apanhei batatas
no dorso do quintal.
Não quero que me encontrem.
Talvez por desperdício
no sonho, ou por vício
de esquecer-me nos livros.
E a filosofia me convence
de exatidão. Com a erva
úmida a física fermenta
e incha a metafísica
aos ombros, nos torrões.
Não quero que me encontrem.
Evito o endereço nos postais.
E por pensar com o vento,
vou conciso. E um método
é preciso dos objetos
simples aos complexos.
E com a mecânica converso,
e da mente e a celeste.
Se a fantasia engana,
o mundo é a mesma corda
segurada no balde,
ou a gota pelo escuro
da paineira ou das moitas.
Renovar é volver
ao ponto de partida.
Olhar por dentro quando
é num relance a vista.
E o que aprendi a nada
me serviu. E quanto
me custou para adiante
servir-me. As novas ciências
eram noivas que possuí
sem casar com nenhuma.
Matemática, ordem
do universo, espuma
com voo em remos certos.
Mas uma filha tive.
Não, não era a ciência,
se aplaquei o desejo.
E de pensá-la ou percebê-la
existo. Quando nascer
é ato de vertigem.
Pulsando o coração,
como se um grito.
Ou barulho de riacho.
E eu, René Descartes, nada faço
sem antes refutar o preconceito,
a partir dos outros e de mim,
quando a razão que esposo
não demarca seu fim.
Nas coisas: beatitude
sem vestes, canavial
das horas. Nada se urde
no terror. Tais os anais
que longas ondas seguem
e um batel singra. Normas,
regras, tatos na constelar
matéria. E a verdade, martelo
na tensa natureza. Com a água,
movimento do impossível.
E os sentidos sem reparo
nos traem e há que abstrair
até a infância. Como este véu
que a vasta noite arranca.
Não quero que me encontrem,
mais que civilizado, francês,
viajor inveterado, por mim
avança a ideia infinita. Deus.
E a ciência que não
me deixou viver.
Poema de Carlos Nejar in "Os Viventes", edição Texto Editores, Ltda,2010, Brasil
´
1.
Aqui tudo é julgamento.
Todos os atos vividos
tamborilam neste eito
e sou de mim saltimbanco.
E do que vem. Os viventes
se apresemtem. São tão reais
quanto sois. Não me desmentem.
2.
Sabei que esta forma humana
nem se compra nem vende.
Tampouco a força que jaz
sob a alma, renitente.
Ou a renitência
de ver, se desvendo
nas águas do poema
ou no seu olhar latente.
É vosso o que nele vedes.
3.
Viventes, o que sabeis
- que mundo o poema!-?
Em sua terra
nada se queima.
Viventes, o que sabeis
da morte e o resto
se nem sabemos de nós
no anel do vento?
Se nem sabemos de nós
ou donde o ingresso
na condição de estar só
com a alma ao menos
na alma de quem vos ama
dentro do poema.
Viventes, o que sabeis
da morte? O excesso
vinga com sua lei.
Tempo vivente
com estes que somos nós
e os que descendem.
Viventes, o que sabeis
deste poema?
Aqui está vivo quem
vivendo teima.
E cria a sua própria vez.
4.
Vos ponho nomes
- nomes não tendes -,
sois meus parentes
intransponíveis.
Ou apenas tendes
aqueles nomes
que vos pressentem:
sinete ou risca.
Aqueles nomes
de manjedoura
ou julgamento.
Nomes avulsos
e indossolúveis
a quem procura
desnomeá-los.
São criaturas
os nomes, naves.
E se designam
ao navegarem.
5.
Nós, os viventes
e conviventes
de um mundo antigo.
A rima é cântaro
perto da fonte.
Cântaro à noite
cântaro, cântaro
o ritmo um jorro
que se levanta.
6.
Vos ponho nomes
ou nome pondes
em quem vos põe.
Como se o lanço
dalguma escada
fosse alcançado
antes dos pés
ou a digital
de um ser viesse
antes do mal.
Ou nome tendes
antes de mim.
7.
Povo submisso
junto ao meu peito,
contigo fico.
O mais esqueço.
Contigo fico
quando for pátria
o nosso corpo,
esta fuligem.
Povo submisso
junto ao meu peito,
contigo fico.
O mais esqueço.
Contigo fico
quando for pátria
o nosso corpo,
esta fuligem
de sofrimento.
O mais nos foge.
8.
Vientes, jazemos
dsavindos.
Em força obstinada
mundo sempre domingo.
O galo não cantou.
Acordou um juízo.
A aurora sabe dosar
as coisas.
Que outros frequentam
a criação?
Tempos de um só,
sopesados e vivos.
Pode a moléstia mortal
ser entretida?
Apodrece a aurora.
Não nos conformamos
com o que não é luz.
Nossa pobre glória
sujeita ao vento,
à intempérie
da solidão.
9.
Não há pátria
a quem ama.
Porque não posso
separar o amor
do amante
que se faz a pátria dele.
E ser da solidão
é se perder.
10.
Ainda voltarei a estes campos,
a este chão, ao zumbido
das abelhas pelo tempo
querendo voejar e nelas preso.
Ainda voltarei aos meus viventes
para vê-los andar comigo
às faldas da montanha.
Ainda voltarei: os mortos sabem
soluções piedosas
e as mormuram de ouvido.
Poema de Carlos Nejar, do livro Os Viventes, edição Leya Brasil 2011
DECRETO-LEI
Desterrem o poeta.
Seu lugar não é aqui.
Nem onde, viventes,
pensais que seja.
Nem a imortalidade
dá-lhe pão ou água,
ou ar onde respira
a usura de existir.
Nômade, rebelde,
intruso, destemido,
talvez nemhum lugar
traga-lhe pouso.
E nem espera tanto,
estando velho, enfermo,
o desterro que concedeis
há muito se apura em viver
convosco a solidão
indestrutível. Desterrem
o insurrecto e que a vós,
viventes, poupem.
E o que firma o Decreto
tem o vosso semblante
e ao vos poupar, há
de poupar-se antes.
A república é um gato
que não entende o outro,
salvo o dono. E o poeta
é afrontoso, visionário,
obstinado em conjurar
as sombras que se agarram
ao dia. Subverte a razão
do Estado, por não ter
razão alguma. Contamina
a benevolência dos civis.
É animal desocupado,
o poeta. A alguns, inofensivo
como uma barata que olha
outra barata e acaba vendo
a glória, mais excelsa.
Ou néscia. Sua palavra
explode e mata, quando
a lágrima faz chover orvalho
sobre as ruas da infância.
E não há mais infância
nemhuma a defender.
E só ela pode convencê-lo
a calar e não se cala,
não renuncia à pólvora
da língua. Não renuncia
a nada, nem à luz da agonia.
Desterrem o poeta. Já se ouve
o bramido da tábua do mar,
já se ouvem os bárbaros cercando
a democracia de ganidos.
Os bárbaros, os bárbaros
não poupam nem os mortos.
Só os viventes resistem;
a república não sabe expiar
as suas culpas, cenários
que prende no viveiro.
E até os cães perseguem
o poeta com seus dentes
de léguas. E a palavra
ao cão persegue e o cão
a outro. E não carece
o poeta de vossa caridade
desatenta. Carece da praça
de uma palavra apenas:
a praça de um soluço.
Desterrem o poeta.
E ficará vossa consciência
em paz, junto aos vindouros.
Desterrem o poeta.
Desterrem o futuro.
Poema de Carlos Nejar in "Os viventes"
ULISSES
Vaguei dez anos
desde Troia.
Não sou herói,
mas homem
marcado pela pátria.
Fui povo.
E por amar o tempo
combatendo,
eu vim do Inferno.
Andante
de praias e mulheres,
nenhuma aurora
comigo velejava,
embora velejasse
mais tarde
com meus ossos.
Circe era um corpo
apenas e na alma
o limite saturava.
Nem Calipso, a ninfa,
conteve o meu exílio.
Amarrado ao mastro,
tapados os ouvidos,
apaziguei a morte
e seu coro celeste.
Ninguém eu sou.
No inferno vi Tirésias.
Consultei na sombra dele
a sombra da minha mãe
e a sombra deste barco
que me leva.
Ninguém eu sou
sem pátria
e a ela escrevo
a eternidade
em mim.
Na espuma escrevi
Penélope e meu filho.
Povo escrevi. Destino.
Regressei. Pedinte fui,
revi Argos - meu cão -
e aos pretendentes
com mão certeira
revelei a morte.
E uma cicatriz
me desvendou.
Ninguém
é Ulisses por acaso.
Poema retirado do livro "Os viventes" de Carlos Nejar.
Os viventes é obra única, orginalmente lançada em 1979 e definida pelo crítico literário português Eugénio Lisboa como um livro que reune "algo de austeramente bíblico" e uma "poesia fraternal, que julga, mas conforta, e nos dá fórmulas simples de vida e entre-ajuda".
Nestes poemas, Carlos Nejar não expressa apenas sua profunda afeição pelos seres reais e imaginários, mas procura resgatar de cada um a sua anima, aquela essência tantas vezes esquecida ou menosprezada. Para o poeta, todas as criaturas - do torturado Jó ao exploradoe Roald Amundsen, de um inseto ao filósofo Friedrich Nietzsche - estão de alguma forma unidas, pois "não há pátria / a quem ama".
A esta edição foram acrescentados 300 novos poemas.
Edição brasileira editada pela Leya em 2011.
Carlos Nejar
Luis Vaz de Camões
Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi resposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente cega,
como eu, num dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerónimos o túmulo,
quando não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.
(Os viventes)