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Gonçalo M. Tavares
(...)
1
Embora a humanidade demore tempo a chegar
a um sítio, devido a imprevistos espantosos
e a obras no caminho, a natureza, essa,
nunca se atrasa.
Sempre com a luz certa, a natureza prossegue.
Era já, então, fim de tarde, quando Maria E abriu a porta
e disse: Oh, caro Thom C, que bom ver-te,
trouxeste um amigo?
2
No jornal as notícias podem, em dias de chuva,
ser dobradas para caberem no bolso, permanecendo secas.
Qualquer notícia grandiosa, um terramoto mortífero
ou um palácio recém-inaugurado, quando bem dobrada,
cabe num espaço de 8 por 6 centímetros,
o que não deixa de surpreender. Esta imagem é ainda relevante
para quem não quer perceber a importância e o espaço
ocupados pelo universo ou pelos países adjacentes
na vida de um pequeno cidadão.
3
E mesmo um indivíduo de estatura mediana
poderá esquecer, durante meses,
o mapa da mundo no bolso de trás das calças.
Tal facto, parecendo paralelo à nossa história,
não deixa de se cruzar com ela, mostrando que nas ideias
o infinito é coisa para o início da manhã
do dia seguinte.
4
Maria E convidou, então, delicadamente, Thom C
e o seu amigo Bloom a entrarem, oferecendo-lhes de imediato
poltronas cómodas, whisky perfeito, aperitivos,
uma vista deslumbrante sobre as chaminés de uma fábrica
de grande importância na região,
e, pormenor não irrelevante, mostrando ainda, nos movimentos que fazia,
aquilo que de longe eram os melhores indícios do apartamento: seios felizes,
pernas de fazer parar o pensamento e
nádegas espantosas, imprescindíveis, duplas e fortes.
Esta é a melhor região de Londres, disse Bloom,
enquanto da janela admirava o belo e espesso fumo negro
que da fábrica saía.
5
Porém, Bloom não se sentou logo nas poltronas
que lhe pareciam ter um conforto excessivo.
Com prudência e curiosidade perguntou
se poderia passear um pouco por tão delicioso apartamento
que, apesar de pequeno, era prometedor,
sendo que todos sabem
que um homem pode demorar mais tempo
a percorrer a minúscula casa da mulher que deseja
do que a atravessar o mundo, de uma ponta à outra,
com mochila às costas.
(...)
Canto II (Excerto) - Uma Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares, págs. 73 e 74 - Edição Editorial Caminho, Agosto de 2011