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“Porque nos falta sempre mais do que aquilo que temos e porque as pessoas que não nos convidam são sempre mais que as que o fazem. A nossa percepção do que tem valor será, portanto, radicalmente distorcida se condenarmos sempre como entediante tudo aquilo que não temos, simplesmente porque não o temos” Alain de Botton
Numa iniciativa do Casino Figueira e da BABEL, realizar-se-á no sábado, 27 de Março, na cidade da Figueira da Foz, - cenário do romance “Sinais de Fogo” - uma homenagem a Jorge de Sena, uma das maiores figuras da literatura portuguesa do século XX , nos trinta anos da publicação (póstuma) desta obra-prima da ficção nacional.
"Ler Sinais de Fogo – Homenagem a Jorge de Sena" é como se intitula esta iniciativa que, para além da conferência inaugural de Jorge Vaz de Carvalho, autor da primeira tese de doutoramento sobre a obra “Sinais de Fogo”, reunirá, em dois Debates, seis professores universitários de Portugal e Espanha.
António Manuel Ferreira (Univ. Aveiro) Fernando Cabral Martins (Univ. Nova), Jorge Fazenda Lourenço (Univ. Católica), José Carlos Seabra Pereira (Univ. Coimbra), Margarida Braga Neves (Univ. Lisboa) e José Luís Garcia Martín (Univ. Oviedo – Espanha) participam numa reflexão sobre um romance fundamental para a compreensão da criação poética em Jorge de Sena e da cultura portuguesa no contexto dos conflitos sociais e políticos que fizeram a história dos anos 30, na Península Ibérica, tendo como pano de fundo a Guerra Civil de Espanha.
Haverá também leituras de excertos do romance pelo actor Luís Lucas e será exibido o filme “Sinais de Fogo” realizado por Luís Filipe Rocha em 1995, apresentado por Eugénia Vasques, professora e crítica de teatro, e Jorge Leitão Ramos, crítico de cinema do jornal “Expresso”. Na galeria do Casino, o fotógrafo Alfredo Cunha inaugurará a exposição “Sinais de Fogo na Figueira”.
Este evento conta com o apoio da Fundação José Saramago e do Instituto Cervantes de Lisboa. Chama a atenção dos portugueses, para uma obra essencial da cultura contemporânea recomendada, de resto, para leitura autónoma pelo Plano Nacional de Leitura e integrada como obra de referência no âmbito do Programa de Língua Portuguesa do Ensino Secundário.
Hoje em Lisboa, às 13.30h, em frente ao Parlamento
Clicar no link abaixo para ver o vídeo
http://www.ionline.pt/itv/30116-bloguistas-acusam-socrates-pr-em-causa-liberdade-expressao
in Jornal i
Um Bem-Vindo ao Tiago Barbosa Ribeiro e ao seu Blog "Metapolítica"
a máquina de fazer espanhóis
Autor: valter hugo mãe
Editora: Alfaguara
N.º de páginas: 307
ISBN: 978-989-672-016-2
Ano de publicação: 2010
Em o apocalipse dos trabalhadores (QuidNovi, 2008), o anterior romance de valter hugo mãe, um ucraniano com nome de craque do Dínamo de Kiev (Andriy Shevshenko) explica a dada altura que «para abrir caminho na ferocidade de um país alheio» é preciso alcançar a «felicidade das máquinas». No novo livro do escritor de Vila do Conde, há uma extrapolação desta metáfora, se entendermos a ideia de máquina como uma entidade abstracta, composta por peças muitas vezes à mercê de uma lógica e de uma energia cinética que as ultrapassa.
A primeira máquina com que nos deparamos no livro é um lar de idosos, com o habitual nome eufemístico – Lar da Feliz Idade – e uma espécie de funcionamento para a morte. O número de residentes é fixo (93), as camas só vagam quando alguém morre, e por isso impera uma rotatividade que começa com a entrada para um dos melhores quartos (em frente ao jardim onde passam crianças) e termina na ala esquerda (com vista para o cemitério, em mórbida antecipação do fim).
É a este mundo opressivo que chega, ainda atropelado de dor pela morte da mulher (Laura), o protagonista do romance: António Silva, 84 anos, antigo barbeiro com problemas de consciência que nem o tempo foi capaz de sarar. Ele de início recusa a vida colectiva da casa, mas depois integra-se num grupo de homens palradores, quase todos partilhando o seu apelido, portugueses de gema que passam os dias a discutir justamente o que é isto de ser português, sobretudo quando todos levaram com quase meio século de fascismo em cima. Um fascismo que deixou a raiz podre dentro das cabeças, dentro dos «bons homens» que não mexeram um dedo contra Salazar, que aceitaram uma «cidadania de abstenção», por medo ou apego à família, e ainda hoje são habitados pelo fantasma do que não tiveram coragem de fazer; ou que cobardemente permitiram que se fizesse.
A segunda máquina, a que dá título ao livro, é então Portugal, esse eterno problema que temos connosco mesmos e que valter hugo mãe aborda com raro desassombro. Há ainda uma terceira máquina: a «máquina que tira a metafísica». Sem metafísica, os velhos deixam de ter algo a que se agarrar e resvalam de vez para a morte. Um tal engenho, entrevisto em delírios por alguns dos residentes, pode ser uma mera fantasia senil ou um inesperado objecto real, posto ao serviço de uma rentabilidade económica de contornos criminosos.
No seu projecto de huis clos, valter hugo mãe deparou-se com um problema. A tremenda intensidade dramática com que descreve o sofrimento das personagens (o colapso dos corpos, a solidão, a loucura, as arestas cruéis da memória) depressa se torna insustentável, demasiado violenta, irrespirável. Para escapar a isto, valter criou então pontos de fuga, mudanças de ritmo narrativo, jogos metaliterários (como o de incorporar à história Jaime Ramos e Isaltino de Jesus, agentes da PJ saídos dos livros de Francisco José Viegas, em dois capítulos que quebram a regra de só escrever com minúsculas). Acontece que estas soluções criam por sua vez novos problemas de equilíbrio e consistência narrativa, nalguns casos resolvidos de forma pouco satisfatória. O forte deste autor, diga-se, não é a estrutura. É o estilo. Como perceberá o leitor, ao deparar neste livro com algumas das páginas mais devastadoramente belas da ficção portuguesa recente.
Avaliação: 8/10
[Texto publicado no suplemento Actual, do semanário Expresso]
Este texto foi escrito por José Mário Silva e retirado do seu Blog "O BIBLIOTECÁRIO DE BABEL".
Bem-vindos ao mundo dos blogs: Córtex Frontal e o Albergue Espanhol.
Um caçador de leões
Autor: Olivier Rolin
Título original: Un chasseur de lions
Tradução: Tiago França
Editora: Sextante
N.º de páginas: 198
ISBN: 978-989-8093-95-0
Ano de publicação: 2009
Na génese deste magnífico romance está um golpe do acaso. Ao visitar o Museu de Arte de São Paulo, Olivier Rolin deparou pela primeira vez com o Retrato do Senhor Pertuiset, Caçador de Leões (1881), no qual Edouard Manet imortaliza um «pacóvio» de olhar inexpressivo e «farto bigode de morsa». Diante do quadro, o escritor lembra-se de já ter visto aquele homem grosseiro e recupera-o de um «obscuro recanto» da memória onde o sepultara, 25 anos antes, depois de ler a história da sua «rocambolesca» expedição à Terra do Fogo, num livrinho (Pequena História Austral) comprado em Punta Arenas, nas margens do Estreito de Magalhães.
À atracção pela invulgar personagem, junta-se uma perplexidade: a de saber como é que o percurso de Pertuiset se cruzou com o do sofisticado Manet (esse artista revolucionário que vivia como um burguês); ou melhor, a de saber como terá acontecido esta amizade entre tipos humanos diametralmente opostos. «É uma das poéticas consequências do tempo que passa: as testemunhas morrem, depois morrem os que ouviram contar as histórias, faz-se silêncio, as vidas desaparecem no esquecimento, o pouco que não se perde torna-se romance.» Eis a ficção a beber na realidade, a literatura como operação de resgate (nada contra).
Rolin começa justamente por resgatar Eugène Pertuiset: mitómano compulsivo, fanfarrão, caçador desastrado, traficante de armas, inventor de «balas explosíveis», mestre em fogos-de-artifício e crente nos poderes da sua própria «força magnética». Ele é o típico arrivista, ansioso por chegar às altas esferas políticas; o aventureiro irresponsável que se intromete nos conflitos militares do Peru e do Chile; o aldrabão aldrabado que acredita na existência de um tesouro inca, por desenterrar, na Terra do Fogo. O escritor segue-lhe os passos, descobrindo histórias picarescas nas bibliotecas da América do Sul e nunca escondendo um fascínio similar ao que Pertuiset decerto provocou em Manet — cujos dilemas artísticos e andanças pelos boulevards também acompanhamos, em paralelo, tendo a História francesa (final do séc. XIX) como pano de fundo. E como são admiráveis, essas páginas em que se evoca o cerco de Paris pelos prussianos (1870), os dias da Comuna e a «semana sangrenta».
Além destas duas linhas narrativas principais (servidas por uma escrita poderosamente visual, descritiva, cheia de cores e contornos, sempre à beira de se tornar pintura), há uma terceira: a do narrador/autor que interrompe (com judiciosos parêntesis curvos e rectos) o fluxo do romance, relatando a sua deambulação pelos lugares onde se deram os triunfos e as tragédias de Pertuiset e Manet, para confirmar o trabalho demolidor que o tempo exerce sobre as coisas, os homens e a sua memória, seja nos confins do mundo (Valparaiso, Porvenir), seja nas ruas parisienses onde os cabarés e outros antros de boémia foram substituídos por sucursais bancárias, armazéns de calçado e lojas de quinquilharia.
Atravessando este cafarnaum, que só por milagre nunca se torna confuso, há um sopro proustiano. Rolin vai atrás do tempo perdido. O do modelo, o do pintor e o seu. Fixa o «adeus a todas as coisas belas» (Villiers), segue o rasto do que se dissipou, sabendo que esta é «a única caça onde se tem a certeza de acabar morto pela fera, a única exploração onde se termina sempre entre os dentes dos antropófagos».
Avaliação: 9/10
[Texto publicado no suplemento Actual, do semanário Expresso]
Uma única vida é pouco. O rosto é demasiado rápido a mudar nas fotografias. As crianças imaginam tantas coisas acerca do mundo e, mais tarde, percebem que não conseguiram imaginar aquilo que era mais importante. Ainda crianças e já quase adultos, ainda levados por miragens e, no entanto, com a certeza absoluta de que não acreditam em nada, surpreendem-se com os braços que cresceram no espelho, com os truques que são capazes de fazer de olhos fechados, com os cigarros que começam a arder-lhes na ponta dos dedos e, arrogantes ingénuos, desejam que o tempo passe mais depressa, desejam que os anos passem mais depressa. Depois, a idade não conta. A idade não conta, mas um dia têm trinta anos, têm quarenta anos, um dia têm cinquenta anos. Os números deixam de ser números. Então, esqueceram tantas coisas e, no entanto, têm a certeza absoluta de que sabem tudo. Ridículos. Entretanto, apaixonaram-se e desapaixonaram-se; saltaram por cima de momentos que foram como abismos; existiu a casa; existiram todos os objectos da casa, divididos e arrumados em caixas de papelão; existiu a mágoa como se fosse o mundo inteiro, não era; existiram as pessoas que morreram mesmo ao lado, que pareciam eternas e que, devagar ou num instante, foram esquecidas, fácil; existiram as pessoas que estavam mesmo ao lado e que receberam telefonemas para comunicar-lhes que a mãe tinha morrido num hospital; e repetiram a vida continua, a vida continua; e o verão e o verão e o outono, a primavera, tão bom, e o verão, o outono, e o inverno e o inverno. Um dia, acordam e o passado não é suficiente sequer para lhes encher a palma de uma mão.
E convencem-se de uma mentira diferente todas as manhãs para obrigarem o corpo a fazer cada movimento e, apesar disso, acreditam nessa mentira exactamente como se fosse verdade, excepto às vezes. E estão cansados da mulher que, cansada, os olha ao serão e que, apesar disso, os enternece quando se debruça sobre o lavatório da casa de banho, com toalhas pelos ombros, para pintar o cabelo. Pode então haver um momento em que o mundo pára. A idade pára. É nesse instante que se pode pensar: nunca quis ser aquilo em que me tornei, quis sempre não ser aquilo em que me tornei. Com o mundo completamente parado, com a idade parada, não é difícil parar também e, rodeados de fragmentos: uma existência inteira feita de vidro estilhaçado e espalhado no chão: o mais natural é baixarmo-nos sobre os calcanhares, pousar os cotovelos sobre os joelhos dobrados e, com cuidado, esticar as mãos para, com a ponta dos dedos, se começar a escolher cada fragmento, distinguir o que se deve abandonar do que se deve manter. Desistir não é sempre mau. Há vezes em que não se pode evitar. Todos nos dizem continua, continua, mas é o mundo que desiste, inteiro, à nossa volta.
Uma única vida é pouco. Para se fazer aquilo que se sabe e se pode e se quer e se deve fazer é preciso deixar muitas outras coisas para trás. Essa é a conclusão a que se chega logo no fim da adolescência. Quando os números deixam de ser números. Trinta, quarenta, cinquenta anos. As gerações sucedem-se. Os degraus de uma escada rolante que desaparecem lá em cima enquanto subimos, subimos, olhamos para trás e ainda vemos o primeiro degrau, quase como quando tínhamos acabado de chegar e, no entanto, continuamos a subir e vemos já o fim. Os nossos avós mortos, os nossos pais mortos, nós, os nossos filhos, os nossos netos. E, se existir um horizonte, podemos olhá-lo e perceber finalmente que estamos parados no tempo e que o tempo, nesse presente definitivo, está parado dentro de nós.
Eu olho para esse horizonte, arrependo-me e não me arrependo, tento compreender ou lembrar-me daquilo que quero mesmo. Depois, penso em tudo aquilo que posso fazer para que aconteça: os gestos e as palavras. Depois, hoje é um dia mais forte e, de repente, imenso. Depois, penso em tudo aquilo de que terei de desistir para alcançar o que quero: para ser o que desejo ser. Então, não fico triste. Aceito tudo aquilo que nunca fiz e que acredito que nunca terei vida suficiente para fazer. Num dia, avisado ou sem aviso, morrerei. Estas mãos serão nada. Este rosto será nada. Uma única vida é pouco. Aceito essa certeza sem que ninguém me pergunte se estou disposto a aceitá-la. É então que me convenço finalmente que nunca serei campeão de xadrez, nunca registarei uma patente, nunca conduzirei uma Harley Davidson, nunca invadirei um pequeno país, nunca venderei relógios roubados aos transeuntes da rua Augusta, nunca serei protagonista de um filme de Hollywood, nunca escalarei o monte Evarest, nunca farei uma colcha de renda, nunca apresentarei um concurso de televisão, nunca farei uma neurocirurgia, nunca ganharei a lotaria, nunca casarei com uma princesa, nunca ficarei viúvo de uma princesa, nunca me mudarei para Detroit, nunca farei voto de silêncio, nunca tocarei harpa, nunca serei o empregado do mês, nunca descobrirei a cura para o cancro, nunca beijarei os meus próprios lábios, nunca construirei uma catedral, nunca velejarei sozinho à volta do mundo, nunca decorarei uma enciclopédia, nunca despoletarei uma avalanche, nunca apresentarei cálculos que contradigam Einstein, nunca ganharei um óscar, nunca atravessarei o Canal da Mancha a nado, nunca participarei nos jogos olímpicos, nunca esfaquearei alguém, nunca irei à lua, nunca guardarei um rebanho de ovelhas nos Alpes, nunca conhecerei os meus tetranetos, nunca repararei a avaria de um avião, nunca trocarei de pele, nunca bombardearei uma cidade, nunca serei fluente em finlandês, nunca comporei uma sinfonia, nunca viverei numa ilha deserta, nunca compreenderei Hitler, nunca exibirei um quadro no Louvre, nunca assaltarei um banco, nunca darei um salto mortal no trapézio, nunca atravessarei a Europa de bicicleta, nunca lapidarei um diamante, nunca farei patinagem artística, nunca salvarei o mundo. Ainda assim, além de tudo isto, há o universo inteiro.
Hoje é dia 21 de outubro de 2008. Estou a beber chá.
O meu marido anda lá fora, no quintal. Na paisagem imóvel da janela, uma brisa ligeira nas folhas mais altas, vejo-o às vezes. Furtivo, o meu marido passa com a pá, ou o ancinho, ou a mangueira, ou a tesoura de podar. Na nossa casa, os catálogos de jardinagem terminam sempre como leitura de casa de banho. O meu marido anda de botas e chapéu. Não há sol, mas aquele é o chapéu da jardinagem. Também as calças dobradas na canela e as botas. Agradeço a Deus pela jardinagem. Obrigado, Senhor, pela jardinagem. O meu marido precisa de distracções. Não lhe chega a televisão, adormece. O meu marido é doente cardíaco. O vidro da janela é grosso e eu ouço mal. Ouço bem um apito fininho, constante, branco, uma linha, ouço mal tudo o resto. O vidro da janela, eu ouço mal, mas sei que o meu marido está a assobiar. As pequenas plantas fazem-no feliz.
Actualmente, o meu clitóris não é mais sensível do que qualquer outra parte do meu corpo. É feito de pele, como os meus ombros, cotovelos, joelhos. Creio que endureceu. Ainda é de tarde, são quase cinco horas, mas já se sente o início da noite. Aqui, nos arredores de Reggensburg, há pássaros que só aparecem a esta hora. Não sei porquê, alguém deve saber. São pássaros pequenos que fazem barulho. No passado, o meu clitóris deu-me grandes alegrias. Marcou o meu epicentro. Sou uma mulher, não deixei de ser uma mulher, mas agora tenho outros interesses. Não sei ainda quais são. Talvez a mágoa. Talvez a mágoa seja agora um dos meus interesses. Presto bastante atenção à mágoa, é certo. Neste verão que terminou, parecia-me que a mágoa tinha um cheiro entre os primeiros instantes de cada dia, uma nesga de luz matinal na janela do quarto. O meu marido na cozinha, acordado há horas, as chávenas a chocarem umas nas outras, e eu a decidir se estava acordada, se era outra manhã, se queria outra manhã, acordar, e a parecer-me que a mágoa tinha um cheiro. O meu marido nunca se apercebeu. O meu marido esqueceu-se de tocar-me há talvez quinze, dezasseis anos, nunca mais se lembrou. Em fevereiro, faço setenta anos. Esta parte do ano, outubro, ficou sempre ligada na minha cabeça aos outubros de quando era adolescente e ia para a escola. Na minha imagem mental dos meses, agora parece maio. Há cinco meses, em maio, eu ainda estava chocada. Ontem, ao lavar-me, passei a mão pelo clitóris e, instintivamente, admirei-me. Por instantes, pensei que pudesse ser uma verruga, um sinal, um caroço.
Os arredores de Reggensburg têm asseio, os muros estão sempre acabados de pintar. Temos vizinhos a boa distância. Gosto do vento, mesmo daquele vento frio a meio do inverno. Reggensburg fica a cerca de 225 quilómetros de Amstetten. Nunca fiz essa viagem, nem para um lado e nem para o outro. Quando saímos de Amstetten, fomos viver para Dortmund, ficámos lá dez anos. Depois, fomos para Weimar, ficámos lá dois anos, até o meu marido se reformar. Podíamos ter procurado casa em qualquer lado. O meu marido insistiu na Baviera porque ficava perto da Áustria, acabamos por concordar com Reggensburg. Quando pede alguma coisa, o meu marido gagueja. Às vezes dizia: Amstetetetetetten. Sozinho, planeava fins-de-semana em Amstetten. Dizia: vivemos cinco dos nossos melhores anos naquela cidade, porque não queres voltar? Eu começava por negar que não quisesse voltar. Depois, inventava desculpas sem tentar sequer fazer sentido. Não sei o que ele pensava de mim. Até podemos ficar no teu hotel, dizia o meu marido, sem saber o que dizia. Literatura. Adorava que o meu marido gostasse de ler. Tenho a certeza de que adoraria os russos: Tolstoi, Dostoievski, Gogol. Ah, Gogol. Quando quis trabalhar, o meu marido conseguiu-me uma posição a gerir uma pousada quase no centro de Amstetten. Após uma semana de serviço, meados de setembro, o Josef possuiu-me na cama dupla do quarto 28.
Sempre usámos este verbo um pouco antigo, talvez um pouco livresco, século XIX. Quando o Josef começava a rosnar, eu dizia-lhe: possui-me, possui-me. Tenho de falar dos seus olhos azuis. Os olhos azuis do Josef brilhavam, seriam suficientes para iluminar uma sala. Não estou a exagerar. Ou talvez só um pouco. Quando o Josef me sorriu, me tratou por menina, quando me apontou o olhar cheio de entoações, desfiz-me invisivelmente. A partir daí, tratou-se de seguir um sentido. Às vezes, quando deixávamos cair a cabeça sobre as almofadas da cama, eu ficava a fazer-lhe festas no pequeno bigode colado aos lábios. Não era ridículo. Eu sorria, enquanto a nossa respiração abrandava ao mesmo tempo. Depois, ele olhava para mim e sorria também. O Josef sabia sorrir. À noite, o meu marido contava-me todos os pormenores da vida dos seus colegas, mas eu não o ouvia. O Josef gostava de sexo de pé. Eu inclinava-me na direcção da janela e ele ficava por trás, apreciava a paisagem. Em certos assuntos, muitos, eu considerava o Josef um poeta. Amstetten era uma cidade sem sobressaltos, as campainhas das bicicletas, as estações do ano nos dias certos. O Josef tinha umas pernas firmes, que eu gostava de apertar no interior das minhas.
Quando estava bom tempo, aos sábados, o meu marido e eu fazíamos piqueniques. O Josef tinha cinquenta e oito anos, mais quatro do que eu, e bastava que me tocasse com um dedo. Se nos cruzávamos na rua, eu tremia. Ninguém podia suspeitar. Ele sorria sem olhar para mim. Uma vez, estava num restaurante, e o meu marido perguntou-me: estás com frio? Era o Josef. Quando ganhei coragem para olhar melhor, não era o Josef, não era sequer parecido, mas tremi, não consegui controlar-me. Quando o Josef punha a cabeça no meio das minhas pernas, eu fazia-lhe festas no cabelo. Havia semanas em que nos víamos duas vezes, três vezes, havia semanas em que não nos víamos. Dependia de muitos factores. Conheci o Josef quando tive aulas de dança, salsa. Estive em três aulas. Depois de conhecê-lo, desisti. Deixei de ter tempo. Precisava de todos os instantes para pensar nele.
O meu marido estava muito triste na noite em que me contou que tínhamos de partir para Dortmund. Eu disse-lhe algumas frases inacabadas, palavras incompletas. O meu marido disse: pois é. O meu marido nasceu na Saxónia, a meia dúzia de quilómetros de Dresden e, no entanto, já tinha adoptado um sotaque austríaco. Artificial, enjoativo, mas sentido. O meu marido é obediente. O Josef tinha verdadeiro sotaque austríaco, claro. Os seus érres davam-me tesão. Durante anos, eu corava só de lembrar-me dos seus érres. Nessa noite, o meu marido tinha a cabeça entre as mãos, a realidade. Eu não podia fazer outra coisa. Desde esse dia, até à partida, eu e o Josef comemo-nos como animais, como lobos, em todas as camas da pousada. Engolimo-nos. Em Dortmund, eu sonhava com ele. No duche. Em Weimar, comecei a conformar-me. Em Weimar, tivemos uma cadela, Lassie. O meu marido apareceu com ela pequenina, quando chegámos. Morreu uma semana antes de partirmos para Reggensburg, bem-educada. Conformei-me que não voltaria a ver o Josef. Por isso, nunca quis voltar a Amstetten. O Josef era um segredo para sempre. Havia momentos em que me parecia que só tinha existido na minha imaginação, mas isso é algo que me acontece com todo o passado. Há momentos em que me parece claramente que algum detalhe do passado, a minha mãe, sexo oral quando namorava com o meu marido, sopa de abóbora, só existiu na minha imaginação.
Eu não tinha qualquer fotografia do Josef. Mesmo já em Reggensburg, havia vezes em que me sentava no sofá, de braços cruzados, a esforçar-me para recordar o seu rosto. Quando não conseguia, ia à cozinha e fazia panquecas. Era uma espécie de compensação e, ao mesmo tempo, um hábito. Depois, noutros dias, via-o em tudo. Havia um calor. O rosto dele era como uma chama. Tentei aprender a bordar. Via o rosto dele nos novelos de linha, no pano esticado. Foi talvez por isso que, quando apareceu a imagem dele na televisão, não me admirei logo. Acho que não gerei sequer um pensamento, não reagi. Analisando, reconheço agora que a ordem dos meus instintos perante a sua imagem seria não verbalizar. Foi com alguns segundos de atraso que me apercebi que o Josef, o Josef, o meu Josef, estava na televisão. Não sei qual foi o meu aspecto. Perdeu-se para sempre a imagem do meu rosto porque estava sozinha, não estava ao espelho, estava em brasa, a ouvir. Eu não queria acreditar. Foi em abril. Quando acordo a meio da noite com pesadelos, acredito por instantes que posso sentir-me aliviada, que não é real, mas depois, acordada, o pesadelo é ainda mais intenso porque é real. O Josef punha a língua toda dentro da minha boca. Abril, abril, quando desliguei a televisão, cambaleei pela sala. Agarrei-me a móveis para não cair. E pensei: não. Pensei: não. Até cheguei a sorrir. Não pode ser. Em roupão, tirei o carro da garagem e fui comprar revistas e jornais. Nenhum tinha a notícia. Liguei o rádio do carro e não falavam de outra coisa. No dia seguinte, todos os jornais tinham a notícia.
O Josef tinha mantido a filha presa na cave durante vinte e quatro anos. Tinha-a violado repetidamente e tinha tido sete filhos com ela, um dos quais morreu. Na televisão e no rádio, chamavam-lhes filhos-netos. A filha do Josef e alguns dos seus filhos-netos viviam na cave. Um deles, uma rapariga com dezanove anos, nunca tinha visto o sol. Eu era obrigada a ouvir o meu marido comentar esta história e a repetir: em Amstetten, quem diria em Amstetten, e nós lá, quem diria. E perguntava-me se eu conhecia aquela rua. Eu respondia. Já me tinha perdido naquela parte da cidade. Este ano, em abril, choveu muito pouco. Tenho saudades de quando chovia em abril. Eu fixava a imagem do Josef na televisão e acreditava que os seus olhos líquidos me viam. Não tinham envelhecido. Eram os mesmos. Os lábios eram os mesmos. O Josef traiu o nosso segredo com o seu próprio segredo. Mas, agora, o seu segredo já não existe, toda a gente o conhece. Agora, só existe o nosso.
(Este conto foi anteriormente publicado na edição de papel da Bravo! e na antologia portuguesa "O Segredo".)
– André, deixa os brinquedos. Está na hora de ires dormir.
– Porquê, pai?
– Porque já é tarde. Olha, são quase onze horas da noite e já não são horas de os meninos de três anos estarem acordados.
– Porquê, pai?
– Porque os meninos, e todas as pessoas, têm de descansar. Depois de andarem todo o dia a correr e a brincar e a fazer coisas, têm de descansar. Além disso, amanhã, tens de acordar pronto para mais um dia. Amanhã, vai ser um dia mesmo bom, vais brincar mais, vais passear, vais ver muitas coisas novas.
– Porquê, pai?
– Porque é assim todos os dias. Cada dia traz sempre muitas coisas novas. Agora, neste momento, não sabemos ainda tudo aquilo que vamos ver, mas tenho a certeza de que vai ser assim. Amanhã, vais aprender palavras novas e, quando voltar a ser hora de ir dormir, já vais ser um menino mais crescido, a saber coisas que agora ainda não sabes. Vai ser assim todos os dias, todos os dias.
– Porquê, pai?
– Porque cada dia é sempre diferente dos outros, mesmo quando se faz aquilo que já se fez. Porque nós somos sempre diferentes todos os dias, estamos sempre a crescer e a saber cada vez mais, mesmo quando percebemos que aquilo em que acreditávamos não era certo e nos parece que voltámos atrás. Nunca voltamos atrás. Não se pode voltar atrás, não se pode deixar de crescer sempre, não se pode não aprender. Somos obrigados a isso todos os dias. Mesmo que, às vezes, esqueçamos muito daquilo que aprendemos antes. Mas, ainda assim, quando percebemos que esquecemos, lembramo-nos e, por isso, nunca é exactamente igual.
– Porquê, pai?
– Porque a memória não deixa que seja igual, mesmo que seja uma memória muito vaga, mesmo que seja só assim uma espécie de sensação muito vaga. É que a memória não é sempre aquilo que gostaríamos que fosse. Grande parte dos nossos problemas estão na memória volúvel que possuímos. Aquilo que é hoje uma verdade absoluta, amanhã pode não ter nenhum valor. Porque nos esquecemos, filho. Esquecemos muito daquilo que aprendemos. E cansamo-nos. E quando estamos cansados, deixamos de aprender. Queremos não aprender por vontade. Essa é a nossa maneira de resistir, mais ou menos, àquilo que nos custa entender. E aquilo que nos custa entender pode ter muitas formas, pode chegar de muitos lugares.
– Porquê, pai?
– Porque nos parece que é assim. Mas talvez não seja assim. Aquilo que nos custa entender é sempre uma surpresa que nos contradiz. Então, procuramos convencer-nos das mais diversas maneiras, encontramos as respostas mais elaboradas e incríveis para as perguntas mais simples. E acreditamos mesmo nelas, queremos mesmo acreditar nelas e somos capazes. Somos mesmo capazes. Não imaginas aquilo em que somos capazes de acreditar.
– Porquê, pai?
– Porque temos de sobreviver. Porque, à noite, a esta hora, temos de encontrar força para conseguirmos dormir, descansar, e temos de acreditar que no dia seguinte poderemos acordar na vida que quisemos, que desejámos. Temos de acreditar que poderemos acordar na vida que conseguimos construir e que essa vida tem valor, vale a pena. Muito mais difícil do que esse esforço é considerarmos que fomos incapazes, que não conseguimos melhor, que a culpa foi nossa, toda e exclusiva.
– Porquê, pai?
– Porque tivemos sempre boas intenções, porque tentámos sempre proteger aquilo que nos era mais precioso e aqueles que conhecíamos como importantes e válidos, aqueles que tínhamos visto sempre perto de nós a acharem-nos importantes, válidos e a protegerem-nos também. Mas isto que acontece connosco acontece também com aqueles que não conhecemos. Também esses acreditam que têm boas intenções e que tentam escolher o melhor. E, se escolhem um mal, tentam que seja um mal mínimo. E também eles choram às vezes.
– Porquê, pai?
– Porque somos todos iguais na fragilidade com que percebemos que temos um corpo e ilusões. As ambições que demorámos anos a acreditar que alcançávamos, a pouco e pouco, a pouco e pouco, não são nada quando vistas de uma perspectiva apenas ligeiramente diferente. Daqui, de onde estou, tudo me parece muito diferente da maneira como esse tudo é visto daí, de onde estás. Depois, há os olhos que estão ainda mais longe dos teus e dos meus. Para esses olhos, esse tudo é nada. Ou esse tudo é ainda mais tudo. Ou esse tudo é mil coisas vezes mil coisas que nos são impossíveis de compreender, apreender, porque só temos uma única vida.
– Porquê, pai?
– Não sei. Mas creio que é assim. Só temos uma única vida. E foi-nos dado um corpo sem respostas. E, para nos defendermos dessa indefinição, transformámos as certezas que construímos na nossa própria biologia. Fomos e somos capazes de acreditar que a nossa existência dependia delas e que não seríamos capazes de continuar sem elas. Aquilo em que queremos acreditar corre no nosso sangue, é o nosso sangue. Mas, em consciência absoluta, não podemos ter a certeza de nada. Nem de nada de nada, nem de nada de nada de nada. Assim, repetido até nos sentirmos ridículos. E sentimo-nos ridículos muitas vezes e, em cada uma delas, a única razão desse ridículo é não conseguirmos expulsar da nossa biologia, do nosso sangue, dos nossos órgãos, essas certezas injustificadas, ou justificadas por palavras sempre incompletas. Mas é bom que seja assim. Porque podemos continuar e, enquanto continuamos, continuamos. Estamos vivos. Ou acreditamos que estamos vivos, o que é, talvez, a mesma coisa.
– Porquê, pai?
– Porque o amor, filho.
(Muito trabalho, muitas imagens e palavras e sons na cabeça têm-me impedido de vir aqui dar notícias. Para quebrar o hiato, deixo um aperitivo: mais um poema de Izet Saraljic (Bósnia, 1930-2002) , traduzido por mim a partir das traduções espanhola e italiana.)
O DONO DE UNS SAPATOS NÚMERO 43 CONTEMPLA UMAS SANDÁLIAS DE CRIANÇA EXPOSTAS NO MUSEU DE AUSCHWITZ
Quanto amor pôs, antes da guerra,
um sapateiro dos arredores de Lvov
ao fazer estas sandálias
para que uma criança pudesse,
calçando-as,
atravessar o maio da sua vida.
E agora aqui estão, expostas
no museu de Auschwitz.
E o homem que as olha
sente-se quase culpado.
O homem cujo pé pôde
crescer até ao número 43.
Era ele quem, em 1941,
saltava, calçando estas mesmas sandálias.
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Depois de atravessar o oceano e ver o que existe do lado de lá, depois de traçar linhas irregulares no mapa da Europa, faço a pé o caminho entre a minha casa e o supermercado. Sou um privilegiado enquanto avanço com um saco dobrado na mão, a carteira no bolso interior do casaco, a conhecer todos os passos deste caminho. Posso descer pela escadinha do jardim, por baixo da oliveira que, no Outono, dá azeitonas que ninguém aproveita, ou posso seguir pela rua principal, passar em frente à paragem de autocarros e atravessar a passadeira. Penso em muitas coisas enquanto faço esse caminho: tenho de ir aos correios, às finanças, à segurança social. Encontro sempre alguém para olhar: as pessoas que fumam à porta do supermercado ou a cigana romena, com uma criança a dormir-lhe no colo, que me estende a mão e o olhar. Enquanto avanço entre a minha casa e o supermercado, posso pensar neste texto que estou agora a escrever ou posso pensar nas compras que preciso. Isto, claro, se não tiver feito uma lista num quadrado de papel. Às vezes, deixo um pedaço de papel preso nesses imãs do frigorífico de Londres ou Ibiza e escrevo lá aquilo de que preciso. Detergente da loiça, por exemplo. É também assim que faço com as ideias para textos como este. Não as afixo no frigorífico, mas anoto-as em papéis que perco e encontro nos lugares mais inesperados da casa, muitas vezes após anos, ou em blocos que começo e que nunca acabo.
Posso estar enganado, mas, conhecendo-me, creio que, se tudo o resto falhar, poderei sempre contar com este caminho entre a minha casa e o supermercado. Bem sei que tudo muda: a casa pode deixar de ser minha, o supermercado pode desaparecer, a casa e o supermercado podem facilmente ser submersos por uma tristeza sem nome. Sei que o mundo pode ainda ser mais terrível do que isso, mas, com optimismo, gosto de pensar que este caminho está garantido. Não é pouco. Ao fazê-lo, carrego vagamente a memória daquelas ocasiões em que a minha mãe tirava um saco de plástico do armário e me pedia que fosse fazer um mandado à mercearia da Ti Ana Dezoito (quadrados de toucinho em cima do balcão de mármore, grãos de sal grosso em cima das folhas de papel pardo), ou quando o meu pai me dava uma garrafa e me mandava ir à do Ti Lourenço (o som e o cheiro do vinho tinto a escorrer do barril para dentro da garrafa, o funil de lata), ou quando a minha mãe me dava a bolsa de renda e me mandava à padaria de Ti Luísa do Peças (a farinha, queres mais bem cozidinho?) Enquanto caminho, eu sou essas memórias. Sou um corpo com pernas, braços e cabeça que é a representação física dessas memórias.
Quando chego ao supermercado, sei o lugar das coisas. A meio da manhã ou da tarde, cruzo-me com homens e mulheres que têm mais de setenta anos e que fazem compras ainda mais insignificantes do que eu: um pacote de leite, duas maçãs, pão. Vejo-me a ser um deles. Não daqui a muitos anos, não sou confiante a ponto de acreditar que passarei dos sessenta, mas já hoje, sou já um deles. Como eles, aproximo-me dos homens que estão a jogar às cartas no jardim, e fico a tentar perceber o jogo por cima dos seus ombros. Como eles, leio todas as notícias do jornal, vejo com pormenor todos os papéis que me são deixados por rapazes brasileiros na caixa do correio. Como eles, escolho bem cada peça de fruta que disponho nesses sacos de plástico fino, que custam a abrir, e, como eles, tomo-lhes o peso com a balança do braço antes de os atar com um nó cego.
É também como eles que encontro as palavras para este texto. Se tudo o resto falhar, como tantas coisas que já falharam efectivamente, posso sempre contar com este texto ou, pelo menos, com textos como este. Não tem de existir sempre a mais alta ambição em cada gesto. Ninguém aguenta viver assim e, para os vivos, viver é muito importante. Eu estou vivo. Respiro quando faço o caminho entre a minha casa e o supermercado, como respiro agora ao escrever esta palavra, e esta, e esta. Estão vivas também as pessoas com mais de setenta anos que cheiram melões no supermercado e que se balançam na aventura de comprar um (será que já estão maduros?) Será, será? Oh, dilema.
Aquilo que digo a mim próprio, digo também aos outros: tenham calma.
Agora, em especial para ti: do lugar de onde estás, tu próprio és o assunto que melhor vês, tu és a pessoa que está mais perto de ti. Por esse motivo, é normal que te pareça que cada detalhe é fundamental, essencial, que não podes viver sem ele. Mas podes. Os outros, esses que te amedrontam, que te telefonam todos os dias, que te escrevem emails e te perguntam: já está?, onde é que está?, porque é que não está? Esses parecem gigantes, têm os olhos muito abertos, mas, sabes, quando adormecem, são meninos indefesos. Como tu, também eles. Como tu, também eles recebem os mesmos telefonemas, os mesmos emails e, como tu, também eles, se encolhem ante gigantes, olhos muitos abertos, que, por sua vez, fazem a mesma coisa com outros e outros e outros, espelhos a reflectirem-se infinitamente. Se eles te perguntarem: já está? Podes responder: não, não está. E tudo continua. Se não tiveres o caminho entre a tua casa e o supermercado, terás outra coisa, qualquer coisa. Se não tiveres um texto como este para escrever, terás outra coisa que desconheço, mas que sei que existe. Por isso, respira, respira, respira.
Já estou em Boston. Cheguei ontem.
Está frio, céu cinzento e, às vezes, chovem gotas geladas.
Já comi clam chowder e já gastei uma quantia exorbitante (que tenho pudor de referir) numa livraria.
Deixo-vos o texto que escrevi para a Visão após a minha passagem por aqui em Setembro passado. Para aqueles que gostam mais de ver o filme do que de ler o livro, sigam o link no final.
ABRE A PORTA, ZÉ LUÍS
Urina. O som familiar da urina a cair na água não perturba a embriagues gasosa do meu sono. Não interessa onde estou, mas sei que estou em Boston, mas não interessa onde estou porque estou num quarto de hotel e há pouca diferença entre quartos de hotel. Mudam os canais na televisão e o cheiro do detergente na alcatifa. De manhã, haverá sempre o som de aspiradores. É de tarde. Deixei a televisão ligada no canal Discovery Health, onde adormeci a ver um programa sobre obesidade mórbida. A voz do narrador entrou-me no sono, as vozes ocasionais dos obesos, deitados em sofás, deitados em camas, gruas, macas, entraram-me no sono. Agora, essas mesmas vozes falam sozinhas para a colcha desfeita sobre a cama vazia, são como electricidade. Não lhes presto atenção, têm a mesma existência vaga de, por exemplo, a cidade de Boston. São uma realidade teórica, abafada pela porta fechada da casa de banho e pelo som familiar, grosso, da urina a cair na água da sanita: o alívio de uma comichão entornada para fora do meu corpo.
Lavo as mãos.
Seguro a maçaneta da porta da casa de banho e, quando tento rodá-la, não roda. Mexo no botão que tranca a porta e não acontece nada. Normalmente, quando adormeço à tarde, privilégio de domingos, acordo de duas formas possíveis: devagar, com uma ligeira dor de cabeça; ou devagar, com um prazer morno espalhado pelos músculos. Agora, acordei de repente. Uma tomada de consciência que é como a efervescência súbita da coca-cola, a subir pela garrafa até transbordar. Uma espécie de anti-qualquer-coisa, uma implosão, sim, uma implosão. A casa de banho não tem janelas. A luz é amarela. Deixo de saber qual é a posição correcta do botão que tranca a porta. Tento abri-la das duas maneiras possíveis e não acontece nada. Bato com as duas mãos. Espero para distinguir alguma reacção e ouço apenas um silêncio feito das vozes dos obesos, sozinhos na televisão do quarto. Dou pontapés na porta. O mesmo silêncio. Bato na parede com as mãos abertas. Grito, tento chamar alguém. Estou no oitavo andar, como se estivesse enterrado vivo.
Lavo as mãos.
Lavo a cara. No espelho, sou amarelo. Tenho a cor da luz. O espelho é como uma janela para o interior fechado desta casa de banho. Sento-me no bidé. Encho os pulmões de ar. Quando era pequeno e fazia alguma coisa de mal, fechava-me na casa de banho antes que o meu pai chegasse a casa. Essa era a única divisão que tinha chave. Após dez minutos de espera, começava a imaginar que iria passar o resto da minha vida na casa de banho. Em instantes, acreditava nisso. Poderia dormir na banheira, tapar-me com toalhas, não faltaria a água potável e, numa primeira fase, poderia alimentar-me de pasta de dentes. Depois, a longo prazo, teria de atrair insectos comestíveis ou cultivar vegetais no intervalo dos azulejos. Quando o meu pai chegava, havia uma negociação que terminava com a porta a ser aberta devagar. Nem sempre foi assim. Houve uma vez em que, com o meu primo, roubei um cartucho da caçadeira do meu pai e fizemos uma bomba. Abrimos o cartucho com uma navalha, separámos a pólvora dos chumbos, fizemos um enxerto de arames e colocámos-lhe um rastilho. Guardámos a bomba numa gaveta e planeámos explodi-la no campo da bola. Essa hora deserta nunca chegou. A minha mãe descobriu a bomba e contou ao meu pai. Fechei-me na casa de banho. Ao fim da tarde, o meu pai chegou a casa. Abre a porta, Zé Luís. E eu dizia para ele se acalmar. Abre a porta. Zé Luís. Eu punha as culpas no meu primo, dizia que tinha sido ideia dele, e tinha mesmo. Abre a porta, Zé Luís. A voz do meu pai era sólida. Eu tinha oito ou nove anos e pedia perdão. Abre a porta, Zé Luís. Eu chorava e dizia que não queria. E, de repente, um estrondo ampliado pelo eco. Outro estrondo. A porta inteira a ceder na fechadura e nas dobradiças. O meu pai estava a arrombar a porta e a minha voz tremia. Espere. Não faça isso. Eu tremia.
Agora, 1938-2008, faltam poucas semanas para o dia em que o meu pai faria setenta anos. Há quase treze anos, 1938-1996, que sinto falta dele. Estou fechado na casa de banho de um hotel em Boston e penso no que farei para sobreviver se ficar aqui para sempre. Volto a gritar, tento chamar alguém, mas paro. Lembro-me que, antes de adormecer, pendurei na porta do quarto o pequeno letreiro que diz “não incomode”.
ACTUALIZAÇÕES
Durante este viagem entre a Croácia e a República Checa, tentei por diversas vezes actualizar o blog e dar, na hora, notícias sobre aquilo que ia vendo nos diversos lugares por onde passei. Infelizmente, o meu computador e/ou a internet não deixaram. Muito frustrante. Não sei explicar exactamente o que se passou. Sei que nas tentativas que fiz, apenas o título ficava online. Todo o texto era ignorado. Já nem falo de colocar fotos ou vídeos. Nem alimento essa ambição.
Quanto às razões disso, percebo zero. Não sei se é o sinal wireless dos hotéis que não tem capacidade, não sei se são as definições do meu macintosh ou do servidor do blog (a propósito, será que vai haver arquivo para 2009?)
É pena que tenha sido assim porque se perde o entusiasmo do momento. Perdem-se os pormenores que gostava de vos ter contado na hora e que, parte dos quais, possivelmente, já esqueci.
Ainda assim, vou tentar fazer o meu melhor. Aqui ficam notícias destas duas últimas semanas.
CROÁCIA
Cheguei a Zagreb num domingo, dia 10. Para mim, regressar a Zagreb é chegar a um dos meus lugares. Tenho muitas recordações da Ilica, da Praça das Flores, de tantos e tantos lugares dessa cidade, de tantos detalhes que me constituem, que fazem parte daquilo que sou. Chegar a Zagreb num domingo, pousar as malas no hotel e ir comer Cevapi é algo que só consigo fazer com um sorriso permanente.
Depois, encontrar os amigos, que existem por baixo da pele e que, também eles fazem parte de mim. São como o nome de uma das minhas amigas croatas: Vida.
Depois, começam a regressar à minha memória todas as palavras em croata que sei e que, no dia-a-dia, quase esqueço que sei: putovanje, zivot, ljubav.
Muito bom.
Terminei essa noite no festival Queer Zagreb, a assistir a uma peça de teatro de um grupo de São Paulo, em que cerca de uma dúzia de homens e mulheres meio despidos e meio vestidos com túnicas romanas falavam das virtudes da homossexualidade. A maioria dos actores eram croatas e falavam em croata, com um painel electrónico a passar o texto em português.
Na segunda-feira, foi dia de apresentação. Quando foi marcada, estava prevista para a Universidade de Zagreb. No entanto, a Universidade está ocupada pelos alunos há cerca de um mês. Estão em protesto contra as propinas. Estão espalhados pela cidade, junto aos semáforos, com cartazes que dizem “Buzine pela educação”. Na Universidade, quando passei por lá, jogava-se às cartas e havia altifalantes que passavam o “the eye of the tiger”. Assim, a apresentação passou para o Centro de Língua do Instituto Camões em Zagreb. Falei apenas em português porque a audiência era composta exclusivamente por alunos de português (e portugueses em Zagreb). Correu muito bem. O Centro de Língua Portuguesa é novo. Na última vez que estive em Zagreb ainda não existia. É fruto de um trabalho que, estou certo, encheria de orgulho todos os portugueses que o conhecessem.
Outra coisa que, de certeza, surpreenderia muitos portugueses seria saberem que, na Croácia, há mais de 400 alunos de português. Com óptimo domínio da língua, acrescente-se. Quantos alunos de croata existirão em Portugal? E quantos existirão no Brasil?
Para ir ao encontro de mais alguns desses alunos, fui para Zadar, na costa do Adriático. O centro de Zadar fica numa península. Com o tempo muito bom, sol, calor, havia bastante gente a nadar mesmo no centro da cidade (eu inclusive). Não creio que existam muitas universidades no mundo que fiquem a pouco mais de dez metros do mar. Esse é o caso da Universidade de Zadar. A vista das janelas é um mar muito azul e, lá ao fundo, ilhas. Na universidade, os alunos em greve, dividiam-se entre as esplanadas e os mergulhos no Adriático. Foi aí que participei nas jornadas ibéricas onde, além de mim, participaram um autor galego, um asturiano, um catalão e uma autora das Ilhas Canárias que escrevia em castelhano. Em conjunto, fizemos uma leitura num lugar impressionante chamado Arsenal. Li em português o conto “Eu e as poetisas”, cuja tradução croata (feita por alunos da Universidade de Zadar) ia sendo projectada numa tela atrás de mim. Transcrevo o texto abaixo para que o conheçam. Além disso, entreguei prémios aos alunos que se distinguiram pelas melhores traduções de português e, no final, dei uma entrevista para o jornal cultural Zarez.
De todas as vezes em que estive na Croácia, nunca tinha tido a oportunidade de visitar Zadar, apesar de já ter ouvido falar bastante. É, sem dúvida, um daqueles lugares inesquecível (como toda a costa e ilhas da Croácia, aliás). Eu, pelo menos, não irei esquecer Zadar.
VIENA
A viagem de avião entre Zagreb e Praga tinha uma escala em Viena. Era pouco o tempo para mudar de avião, por isso, saí a correr à procura da entrada para o voo entre Viena e Praga. Cheguei ofegante e a senhora da Austrian Airlines disse-me que o meu lugar não estava confirmado. Fiquei perplexo. Tratava-se de um overbooking... Após uma espera, confirmou-se que não estava confirmado. Era de noite e, por isso, levaram-me para um hotel no centro de Viena, onde fiquei a esperar o próximo voo para Praga (sete da manhã). Acabou por não ser mau de todo porque me deu a oportunidade de passear um pouco por Viena e ir beber um copo (dois) com o meu amigo Michael. Mas, ainda assim, confesso que não percebo qual a lógica do overbooking. Alguém me consegue explicar por que motivo as companhias aéreas vendem mais bilhetes do que o número de lugares que têm no avião?
REPÚBLICA CHECA
Assim, cheguei a Praga pouco antes da hora em que tinha de ir para a Feira do Livro. No início da tarde, apresentava a edição checa de “A Criança em Ruínas”, traduzido por Vlastimil Váne e publicado pela editora Dauphin (www.dauphin.cz), com o título “Díte V Troskách”. Vi pela primeira vez essa edição no tram (eléctrico, troley?) já a caminho da feira do livro. Quando puder, hei-de tentar afixar aqui a capa dessa edição, é de um azul-céu e tem uma imagem de Jan Horacek, onde surge um monte de fotografias a preto e branco. A apresentação foi muito simpática. Falei sobre o livro, li “Arte Poética” e li este poema, que talvez já conheçam e que transcrevo aqui em checo (sem acentos checos):
kdyz se prostíral stul, byvalo nás pet:
muj otec, má matka, mé sestry
a já. pak se má starsi sestra
vdala. pak se má mladsi sestra
vdala. pak muj otec zemrel. dnes,
kdyz se prostírá stul, je nás pet,
krome mé starsi sestry, která je
u sebe doma, krome mé mlasdsi
sestry, která je u sebe doma, krome mého
otce, krome mé ovdovelé matky. kazdy
z nich je prázdné místo u tohoto stolu, kde
jídám sám. ale vzdycky budou zde.
kdyz se bude prostírat stul, bude nás vzdycky pet.
dokut jeden z nás zustane nazivu, bude nás
vzdycky pet.
Tradução de Vlastimil Váne.
Após o lançamento, houve autógrafos. Além da edição checa de “A Criança em Ruínas”, autografei também o Nikdo se Nedívá, que é como se chama o “Nenhum Olhar” em checo e que foi traduzido em 2004 pela Desislava Dimitrovová.
Logo a seguir, fui participar num debate com uma escritora belga e um escritor grego, moderado por uma jornalista checa, sobre “Literature across the media”. Aquilo que se pretendia era que se falasse sobre projectos com meios para lá do livro. A belga trabalhava com vídeo, o grego fez um livro com um fotógrafo, eu falei do “Antídoto” e dos Moonspell, das letras para cantores, do Intermezzo, do trabalho com coreógrafos, fotógrafos, etc. No dia seguinte, saiu um artigo a resumir o que foi dito no jornal da Feira do Livro de Praga.
No fim de semana, tive oportunidade de passear um pouco pela maravilhosa cidade de Praga.
Na segunda-feira, apanhei o comboio das 13 horas para Brno. Na vez anterior em que estive em Praga, tinham-me falado bastante de Brno, mas não tinha tido oportunidade de me deslocar até lá. Tinha expectativas e foram todas cumpridas. Apesar de ter ficado pouco tempo (o suficiente para almoçar, apresentar o livro e voltar para Praga), gostei muito de Brno. O livro foi apresentado na sala subterrânea de um bar perante algumas dezenas de pessoas. Voltei a fazer leituras, mas falei bastante mais do que em Praga. O público colocou mais questões e ainda nos rimos todos um pouco. Além disso, venderam-se todos os livros que havia e autografei uma boa parte deles, assim como mais alguns romances em checo.
Em princípio, o meu próximo romance a ser traduzido para checo será “Uma Casa na Escuridão”. Seja como for, espero reencontrar os amigos checos antes disso. Quando cheguei a casa, já tinha vários “pedidos de amizade” vindo da República Checa (e da Croácia) no facebook e no myspace. Assim, é mais fácil dizer “até breve”.
AGRADECIMENTOS
Acho que não é necessário escrever aqui os nomes das pessoas que me convidaram, traduziram e acompanharam nesta viagem pela Croácia e pela República Checa. Sinto uma gratidão imensa, comparável apenas à amizade que lhes guardo.
IMAGENS DOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS
Na próxima semana, regresso aos Estados Unidos, onde vou participar de conversas sobre “The Implacable Order of Things” (“Nenhum Olhar”) em Boston e Nova Iorque. Estou muito curioso acerca da Universidade de Harvard e das pessoas que encontrarei por lá. Acredito que será memorável.
Este conto foi publicado originalmente no Jornal de Letras. Depois, revisto e publicado no volume "Hoje Não", que foi oferecido com a revista Sábado.
EU E AS POETISAS
Ninguém entendia a melhor poetisa do Quirguistão. Não porque ela não fosse fluente em várias línguas, mas porque falava demasiado baixo. Na fila do almoço, com um prato e talheres, enquanto esperava para servir-se de salmão fumado, uma tradutora finlandesa dobrava-se toda sobre a melhor poetisa do Quirguistão para tentar ouvi-la e, talvez, entendê-la. Cheguei a falar com o romancista mais promissor da Estónia sobre isto. Estávamos no alpendre da casa de madeira onde existia um bar. Eu cheguei para fumar um cigarro e o romancista mais promissor da Estónia já lá estava. Era um vulto semi-iluminado com mais de um metro e noventa. Tínhamos falado antes, mas não estávamos completamente à-vontade. O silêncio e a noite trouxeram-nos uma intimidade que não estávamos preparados para suportar. Foi ele que começou a falar de qualquer assunto sem importância. Talvez tenha falado de algo que o historiador fascista e escandaloso da Itália fez ou exigiu. Quando não tínhamos assunto, podíamos sempre falar das últimas novidades do historiador fascista e escandaloso da Itália. Quando não sabíamos nenhuma novidade, podíamos sempre perguntar por ele. Enquanto o romancista mais promissor da Estónia falava, o fumo do meu cigarro ondulava numa coluna branca que terminava no centro dos seus olhos. Eu desviava o cigarro, ele desviava o rosto, mas o capricho do fumo, como uma vontade humana e sólida, dirigia-se sempre aos seus olhos. Foi num desses momentos, depois de mais silêncio, que resolvi falar-lhe da melhor poetisa do Quirguistão. Falei-lhe da sua dificuldade em fazer-se entender e do seu ar vagamente misterioso, misterioso porque vago. O romancista mais promissor da Estónia olhou-me com embaraço e respondeu meio concordando, meio divergindo. Fiquei com a sensação de que tinha sido indiscreto e, não tendo mais nada para dizer, voltámos a partilhar o silêncio. Felizmente, apareceu o escritor exuberante da República Checa. Pediu-me um cigarro e o romancista mais promissor da Estónia aproveitou para sair. Entre dentes, menos que sussurrando, disse que ia à casa de banho, mas, por cima do ombro do escritor exuberante da República Checa, vi-o juntar-se a um grupo de pessoas que conversavam encostadas ao balcão.
Na manhã seguinte, enquanto passeava nas margens do lago, descalço sobre a relva, cruzei-me com a poetisa que escrevia em dialecto da Lapónia. Seria difícil saber exactamente no raio de quantos quilómetros não havia nenhuma mulher mais atraente do que ela. Apesar de não haver resposta, essa questão era válida e ela sabia-o. Talvez fosse por isso que a poetisa que escrevia em dialecto da Lapónia era pouco simpática, ou talvez fosse por ser pouco simpática que, numa contradição vulgar da natureza, se tornava atraente. Quando me cumprimentou, estremeci. Já tínhamos sido apresentados, mas não esperava que reparasse em mim. Foi ela que começou a falar. Com um inglês com sotaque da Lapónia, disse qualquer coisa com que concordei. Sorri. Disse mais qualquer coisa e voltei a concordar. Voltei a sorrir. Quando chegou o silêncio, perguntei-lhe pelo historiador fascista e escandaloso da Itália. Ela riu-se e respondeu que, naquele dia, ainda não tinha tido nenhuma notícia dele. Ela riu-se. Estava tudo a correr-me bem. Nesse momento, eu estava consciente de que aquilo que estávamos a fazer tinha, no contexto internacional, o agradável nome de flirt. Eu sabia que havia revistas especializadas, com páginas inteiras de publicidade a perfumes, que teorizavam sobre essa questão em artigos com títulos como: 10 conselhos práticos sobre o que deve fazer durante o flirt, 10 conselhos práticos sobre o que não deve fazer durante o flirt. Enquanto o riso dela esmorecia, como a água do lago junto dos nossos pés, eu arrependia-me de nunca ter prestado a atenção devida a essas revistas e a única certeza que parecia apertar-me o peito era a necessidade de evitar o silêncio. Foi apenas com essa motivação que lhe falei da melhor poetisa do Quirguistão. Perguntei-lhe se conseguia entender alguma palavra daquilo que ela dizia. O rosto da poetisa que escrevia em dialecto da Lapónia desfez-se e voltou à sua altivez. Como se não percebesse porque estava ainda a falar comigo, despediu-se rígida e continuou o seu caminho, contornando o lago. Sozinho, com as sandálias na mão, fiquei a vê-la afastar-se.
Passou a manhã e passou a tarde. Telefonei para casa e disse que estava com saudades. Foi já ao início do serão, quando todos esperavam o jantar. Estava sentado numa cadeira nas traseiras da casa de madeira onde existia um bar, apreciava a vista sobre o lago e entregava-me a pensamentos do tamanho da paisagem. De repente, saindo disparada pela porta, a melhor poetisa do Quirguistão veio a caminhar directa para mim. Sorri-lhe, mas ela não me sorriu de volta. Quando começou a falar, levantei-me porque achei que seria falta de educação continuar sentado. O rosto dela era sério enquanto falava. Das suas palavras, eu não conseguia entender mais do que um sussurro incompreensível. Ela, no entanto, não se calava. Erguia o indicador à frente do meu rosto e agitava-o com convicção. Do seu rosto asiático, percebi claramente que estava irritada. Aos poucos, foram saindo pela porta da casa de madeira várias pessoas que se paravam a olhar para nós. Em momentos, procurando compreensão, eu olhava para eles e encolhia os ombros. Nenhum deles reagia. A melhor poetisa do Quirguistão continuava a falar para mim como se aquilo que tinha para dizer não se esgotasse nunca. Ao mesmo tempo, agitava o indicador diante do meu rosto como se procurasse a melhor maneira de espetar-mo num olho. Não passou muito tempo até que estivesse uma multidão reunida junto à porta da casa de madeira. O romancista mais promissor da Estónia comentava qualquer coisa que a escritora finlandesa que vive na Noruega e que escreve em norueguês sobre a Finlândia escutava com atenção. A editora da Macedónia olhava-me com desdém. O escritor exuberante da República Checa parecia enjoado. A poetisa que escrevia em dialecto da Lapónia olhava-me como se fosse fulminar-me. Desisti de entender a melhor poetisa do Quirguistão e, pouco depois, ela desistiu de falar para mim. Começou a afastar-se e, quando passou entre a multidão, houve vários que a tentaram confortar. Quando entrou na casa de madeira, todos a seguiram.
O único que ficou, que me sorriu e que caminhou na minha direcção foi o historiador fascista e escandaloso da Itália. Satisfeito, passou a mão pela careca, cumprimentou-me e, após poucos minutos, perguntou-me se queria ser seu amigo.
Le Portugal
As coisas não começaram bem. No sábado, tinha acabado de sair do cybercafe onde, entre outras coisas, coloquei online o texto anterior, quando recebi um telefonema a perguntar onde estava. Tinha chegado a hora da minha leitura e não sabiam de mim. Percebi então que tinha entendido mal o que estava escrito no programa e tinha calculado mal a hora a que deveria ler (era um dos últimos da lista e, na noite anterior, tinham seguido a ordem). Corri para o hotel para apanhar os livros e, passados minutos, tinha um carro à espera para me levar à abadia de Neumunster. Cheguei, ouvi meio poema em alemão e, esbaforido, fui apresentado. Estavam duzentas e tal pessoas. Uma vez que era a noite em que todos os poetas liam, tinha apenas 5 minutos. Tudo bem.
Comecei por ler “na hora de pôr a mesa” em francês, depois o original em português. Li depois “Arte poética”, também em francês e, quando ia para ler em português, fui interrompido pelo poeta do Luxemburgo que organiza o encontro. Tentei cumprimentá-lo, mas fiquei de mão estendida no ar.
No momento, não me apercebi. Foi só ao longo da serão que foram chegando até mim as queixas dos muitos portugueses que estavam lá (afinal, há portugueses que assistem a leituras de poesia no Luxemburgo). A cada uma, ia percebendo que aquelas pessoas tinham a expectativa de ouvir mais em português e que a forma abrupta como terminou a leitura foi frustrante para elas. Ao mesmo tempo, tinha na memória a leitura da véspera na Kulturfabrik, em Esch, onde 6 poetas convidados leram das 19.30 até quase à meia-noite, nenhum deles respeitando o tempo que lhes tinha sido destinado.
Assim, no domingo, 26, tinha a leitura na Galeria Simoncini, com menos poetas e com mais tempo para ler. Não me considero uma pessoa que guarda ressentimentos (a vida é curta), mas lembrei-me dos portugueses que fizeram e serviram o jantar de ontem, lembrei-me da portuguesa com quem fiquei a conversar na cozinha da Escola Europeia, lembrei-me das cabo-verdeanas que arrumavam os quartos do hotel e com quem também conversei, lembrei-me de que estava ali a representar Portugal e fiz o seguinte: antes da leitura, agradeci ao Instituto Camões (que apoiou o festival, custeando a minha viagem) e expliquei aos presentes que o propósito desse instituto é promover a língua e a cultura portuguesa, uma língua que é falada por cerca de 200 milhões de falantes (obrigado, Brasil) e que, no Luxemburgo, é falada por, pelo menos, 80 mil portugueses (maior comunidade de estrangeiros). Depois, expliquei que começava por ler o poema “Arte Poética”, que não tinha tido tempo de ler na véspera e, que no fim, se tivesse tempo, leria a tradução francesa. Li vários poemas de “A Criança em Ruínas” e de “A Casa, a Escuridão” tanto em português, como em francês. E, no fim, não tive tempo de ler a tradução francesa de“Arte Poética”.
O ANIMAL
Logo após a leitura da Galeria Simoncini, estavam todos os participantes do festival a almoçar numa esplanada de um hotel da Place d' Armes, no centrão da cidade do Luxemburgo, quando se afastaram as nuvens e ficou um sol bastante intenso. Tirei o casaco. Estava a conversar com o César Stroscio, mas ouvi claramente os dois empregados portugueses que estavam a pôr os pratos. Um deles, pensando que não o entendia e referindo-se às minhas tatuagens diz para o outro: “Já viste este? Tem o braço todo sujo.” Ao que o outro responde: “Ah pois tem, o animal.” Quando me virei para eles e lhes disse: “Talvez esteja mais lavado do que imagina”, arregalaram os olhos e foram-se embora.
Na nossa mesa, estava o dono do hotel, o patrão deles. Não sei se foi por isso que o empregado que me chamou animal voltou passados alguns minutos para pedir umas desculpas atrapalhadas. Enfim, nada como uma descida à realidade.
Estou vivo. Ao longo destes dois meses, iniciei mentalmente a escrita destas palavras dezenas de vezes. No entanto, as passagens pela internet foram sempre demasiado rápidas, com dois ou três emails urgentes para responder e, logo a seguir, o regresso ao mundo e às palavras. Pensei falar-vos da breve viagem que fiz a Marrocos e da antologia de contos que saiu por lá (o conto "Dia de anos" a ler-se da direita para a esquerda,em árabe); pensei falar-vos da edição de "Morreste-me" e de "Gaveta de Papéis" em braille, das idas a escolas preparatórias e secundárias, etc. Ou seja, pensei falar-vos de várias coisas que me deixam feliz, orgulhoso, e que, se existir amizade desse lado, vos poderão dar alguma alegria também.
Além disso, há o romance, solitário e silencioso, o grande segredo.
Voltei.
A única vez em que estive na presença da actriz Alexandra Lencastre foi em 1995. O país atravessava um período de alegre contestação. Toda a gente que eu conhecia estava contra o governo e Março, a confiar na minha memória, não tinha sido demasiado frio ou chuvoso. Se Portugal fosse um carro, bastava destravá-lo e deixá-lo deslizar, não se vislumbrava a necessidade de esforçar o motor contra qualquer espécie de subida. Os penteados e os bigodes dos anos oitenta estavam extintos. Os hipermercados prosperavam. Não tínhamos telemóvel ou internet, mas se estávamos destinados à felicidade, éramos felizes. Eu tinha vinte anos e estudava em Lisboa. Quem me via não desconfiava mais do que normalmente se desconfia de alguém com essa idade.
Quando fui chamado para comparecer na pré-selecção, num apartamento em Sete Rios, ao lado do Jardim Zoológico, custou-me a acreditar. Para mim, os concursos de televisão eram uma realidade distante. Eu era anarquista, vegetariano, punk friendly e quase virgem. É certo que tinha autorizado a minha irmã a escrever o meu nome nos cupões, mas imaginava que concorressem milhares de pessoas e não conhecia ninguém que alguma vez tivesse participado num concurso de televisão. Eu nem tinha a certeza que a minha irmã se lembrasse mesmo de enviar os postais. Mas lembrava. Acordei cedo, faltei a uma aula e, com um pull-over cinzento, que ainda tenho, respondi às perguntas que me fizeram. Quando saí, não pensei se ia ser apurado, pensei no almoço.
Telefonaram poucos dias depois. Eu não estava em casa. Foi a minha irmã que atendeu. O concurso chamava-se “Trocado em Miúdos”. Havia palavras e crianças a tentarem explicá-las. Havia palavras e o seu significado mais inocente. Depois, quem acertasse nas palavras-mistério ia acumulando pontos. Os parceiros dos concorrentes eram figuras públicas. A minha parceira foi a actriz Alexandra Lencastre. Havia palmas gravadas e, por isso, sempre que chegava um momento de aplaudir, fazíamos o gesto, mas não podíamos fazer barulho. Sozinhos no estúdio, com as luzes e com as câmaras, passámos grandes períodos a bater palmas em silêncio. Creio que não haveria grande possibilidade de contestar a nossa vitória. Foi clara. Eu e a actriz Alexandra Lencastre sorrimos um para o outro e não voltámos a ver-nos.
O prémio foi um fim-de-semana em Londres para duas pessoas. A minha irmã agradeceu. Levantei o bilhete e os pormenores do hotel numa agência de viagens nas Olaias. À hora em que o concurso ia ser transmitido, a minha irmã, o meu cunhado e eu estávamos em frente à televisão, tínhamos o vídeo ligado e uma cassete preparada. A minha irmã tinha o dedo sobre o botão REC do comando. Esperámos duas horas. A minha irmã telefonou para lá. Sem aviso, o concurso tinha sido suspenso. Não cheguei a aparecer na televisão. Os bilhetes estavam guardados numa gaveta.
Foi assim que viajei pela primeira vez de avião. A minha irmã tinha um guia de bolso e um plano exacto para aqueles três dias e meio. Creio que estávamos convencidos de que nunca mais voltaríamos a Londres. À noite, chegávamos ao nosso quarto na Russel Square e não tínhamos força para falar. No dia seguinte, acordávamos às sete. Os dias eram longos como quilómetros. No fim daqueles três dias e meio éramos uma espécie de emigrantes. Um para o outro, dizíamos “lá, na Trafalgar Square”, ou “lá, no British Museum”. Tínhamos feito tudo. Tínhamos a barriga cheia. E, na minha segunda viagem de avião, regressávamos felizes. Trazíamos porta-chaves para todos, ímanes de frigorífico e chocolates. No aeroporto, as malas chegaram ao tapete rolante como nos filmes. Tínhamos um carrinho para levá-las. Seguindo as indicações para a saída, ao longe, começámos a ver o meu cunhado e o nosso pai. Ao longe, os nossos sorrisos chocaram com os seus rostos sérios. Logo nesse momento percebemos que tinha acontecido algo.
Foi o meu pai que nos disse que a nossa avó tinha morrido. Saímos do aeroporto e fomos para um velório quase deserto em Massamá. Caminhámos na direcção da nossa mãe, órfã. A nossa avó estava deitada num caixão. Chamava-se Joaquina e, a mim, chamava-me “o meu Zé Luís”. Havia velas eléctricas que se acendiam com moedas de vinte escudos. Nessa sala de uma igreja moderna, passámos a noite. O enterro aconteceu no dia seguinte, já na nossa terra. Eu e a minha irmã não chegámos a contar as histórias da viagem a Londres. As fotografias foram reveladas e guardadas. Dessa maneira, aprendi uma lição que continua comigo. Dessa maneira, aprendi que há palavras que significam o seu absoluto contrário. Às vezes, sim significa não.
*Publicado originalmente na revista Visão.
Posts extraídos do blog de José luis Peixoto, da Revista Bravo
Sade: menino. Dante: poeta de paninhos quentes. Hunter S. Thompson: totó. Se qualquer um deles fizesse compras no Pingo Doce do Campo Mártires da Pátria, teria produzido literatura freak show a sério, infernal, sem dentes na gengiva superior e de cabelo oleoso; literatura de rés-do-chão onde vivem avós, pais, e filhos; poemas de unha encravada e frases gritadas, por adolescentes grávidas, no corredor da higiene pessoal: "Ó mor lê ali o coiso que eu não posso por causa da pança".
Pensava eu ao acordar, observando o castelo e a Graça pela janela: Uma manhã de sexta-feira para pôr um pouco de ordem na vida doméstica e retirar os horários de dentro do cranio. Por isso, atravessei o jardim com patos no lago e galos tão imperiais na crista e nas penas do peito como obtusos no movimento incessante de cabeça. E crianças com as mães, e jovens viajantes, sem t-shirt, a brincar com a sua entourage canina, e relva que cheira sempre a relva, e a ideia de que este pode ser um extraordinário dia para a espécie humana.
Depois da bela, veio o monstro. Se comparadas com este supermercado, Sodoma e Gomorra não passam de parques da Disney. Estou bem, é verdade, sobrevivi aos vegetais moles e murchos como uma actriz velha e sem trabalho; enfrentei o rapaz da caixa que tinha pele de metadona; fui empurrado na fila, afastei-me das abóboras gelatinosas; saí para a rua e atravessei de novo o jardim com a relva que agora cheirava mais a campo do que a relva - cheirava a flores amarelas que se mordem e são amargas.
Lição de um dia que será, de certeza, extraordinário para a espécie com polegar oponível: ou mudo de supermercado, ou transformo-me num escrito maldito.
publicada por Hugo Gonçalves
Post retirado do blog "Carrinho de choque"
O livro "Jerusalém", de Gonçalo M. Tavares, está nomeado para o prémio Cévennes de melhor romance europeu publicado em França em 2008, anunciou a editora Editorial Caminho.
A obra de Gonçalo M. Tavares, publicada em França no final de 2008 pela editora Viviane Hamy, está entre os dez finalistas àquele prémio literário, no valor de 25 mil euros, dos quais 20 mil euros se destinam ao autor e os restantes 5 mil euros premeiam o tradutor.
Em Maio serão escolhidos cinco finalistas e o vencedor será anunciado a 13 de Junho em Alés, sul de França, por um júri que integra editores, críticos e escritores.
Além de Gonçalo M. Tavares, são finalistas os escritores Manuel Rivas, Hanif Kureishi, Sandro Veronesi, Jean Echenoz, Sasa Stanisic, Morten Ramsland, Jean-Baptiste Del Amo, Vassili Golovanov e Charles Lewinsky.
Além de "Jerusalém", Gonçalo M. Tavares tem publicado em França "Monsieur Valéry" e este ano serão editadas também as traduções de "O senhor Calvino" e "O Senhor Kraus".
O romance "Aprender A Rezar Na Era Da Técnica" deverá sair no mercado francês em 2010, adiantou a Editorial Caminho.
Vencedor do Prémio Saramago em 2005 e Prémio Portugal Telecom 2007, Gonçalo M. Tavares prepara uma nova linha de ficção na Porto Editora, que tem como ponto de partida o conceito de cidade.
Gonçalo M. Tavares, 38 anos, é considerado um dos melhores romancistas da sua geração. Dele, José Saramago elogia-lhe a "imaginação totalmente incomum" e "uma linguagem muito própria, em que a ousadia vai de braço dado com a vernaculidade". "Vaticinei-lhe o prémio Nobel para daqui a trinta anos, ou mesmo antes, e penso que vou acertar", escreveu José Saramago no seu blogue "O Caderno de Saramago". [publico.pt].
Post retirado do blog "bibliotecadafeira"
Nesta época do ano, quando vivia na casa de lareiras que sempre pertencerá aos meus pais, uma das coisas que mais gostava de fazer era atear o lume. Acender uma pinha com fósforos ou no bico do fogão. Acender um fósforo. A explosão de um fósforo na ponta dos dedos é um assunto simultaneamente intenso e frágil, como o coração de uma ave. Da chama de um fósforo pode nascer um incêndio, o inferno, ou pode nascer um lume como aquele onde me aquecia na casa dos meus pais e que ardia durante todo o dia. E coloca-se a pinha no ponto onde a construção de lenha se cruza. Depois as chamas, depois as brasas, depois a cinza.
É assim que espero que as palavras peguem.
No resto do tempo, faço como no poema de Billy Collins, que aqui deixo traduzido por mim para português:
CONSELHO PARA ESCRITORES
Mesmo que te mantenha a pé toda a noite,
lava as paredes e esfrega o chão
do teu estúdio antes de compores uma sílaba.
Limpa como se o Papa estivesse para vir.
O asseio imaculado é sobrinho da inspiração.
Quanto mais limpares, mais brilhante
será a tua escrita; não hesites, pois em sair
a campo aberto e lavar a face oculta
das pedras, nem de passar um trapo nos ramos mais altos
das florestas sombrias, pelos ninhos cheios de ovos.
Quando encontrares o caminho de volta para casa
e guardares as esponjas e escovas debaixo do lava-loiça,
contemplarás a luz da aurora,
o altar imaculado da tua secretária
uma superfície limpa no centro de um mundo limpo.
Então, de um pequeno copo, azul reluzente, tira
um lápis amarelo, o mais afiado do bouquet,
e cobre páginas com frases miúdas
como longas filas de formigas devotas,
que te seguiram desde o bosque.
Pelo meu romance.
No passado dia 7 de Janeiro, escrevi a primeira palavra daquele que começa a ser o meu próximo romance.
Este romance parte de uma ideia que tive em finais de 2005 e que, desde então, se tem vindo a multiplicar pelo infinito. Em 2007 e 2008, dediquei-me à investigação acerca de alguns temas importante para o mundo do romance. Fi-lo utilizando os mais diversos meios e constituiu uma descoberta pessoal que contruibuiu para que o projecto do romance se adensasse ainda mais.
E chegou o dia 7 de Janeiro.
Por muito boas razões, tive de interromper a escrita do romance na semana passada. Espero retomá-la amanhã. Já chamei as personagens para junto de mim. Algumas já começaram a chegar.
Neste blog, irei dando conta de algumas das questões e dos temas que me forem passando pela cabeça e pelos olhos ao longo da escrita deste meu próximo romance. Assim, mais tarde, poderemos lembrar-nos de como éramos.
No final de cada post, escreverei o número de páginas que, nesse determinado momento, considere (praticamente) finais. Começo já a fazer essa contagem.
Espero que me possam acompanhar.
Post retirado do blog de José Luís Peixoto
O romance Pedra-de-Paciência, com que Atiq Rahimi ganhou o Prémio Goncourt, em Novembro, está prestes a sair do prelo, com chancela da Teorema e tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira. A capa é esta:
Quem desejar conhecer a obra anterior do escritor afegão radicado em França, igualmente publicada pela Teorema, pode comprar na FNAC, por apenas cinco euros, um pack com os seus dois primeiros romances (Terra e Cinzas + As Mil Casas do Sonho e do Terror).
Tenho um punk dentro de mim, debaixo da minha pele. Há vezes em que sou obrigado a pôr-me à sua frente e a segurá-lo pelos ombros, quer fugir, quer dar pontapés nos caixotes do lixo e deixá-los espalhados no meio da rua. Seguro-o como se tentasse evitar um briga. Não faças isso, não vale a pena. Na maior parte do tempo, esse punk está a dormir, sentado num passeio dentro de mim, encostado a uma parede, com as costas tortas, o pescoço torto, inconsciente, bêbado ou drogado com o perfume dos lugares onde vou. Esse punk dentro de mim não os suporta, prefere comer restos abandonados na mesa de esplanadas do que jantar de fato e gravata na casa de príncipes, prefere vomitar aguardente destilada pelo estômago do que ter de responder palavras vazias às palavras vazias dessas conversas. Já houve ocasiões em que esse punk quis puxar a toalha da mesa posta, aquilo que mais desejou foi ver o serviço inteiro de jantar suspenso por um instante no ar da sala e, depois, a desfazer-se no chão.
Esse punk não é uma metàfora ou uma ironia. É um punk a sério. Tem um casaco que é sempre o mesmo e tem uma camisola, tem umas calças que são sempre as mesmas, com remendos de G.B.H. e de Chaos UK que não tapam os buracos nos joelhos. Aliás, os remendos não servem para tapar os buracos nas calças, servem para outras coisas. Também os buracos têm uma função que, aqui, agora, seria difícil de explicar. É possível olhar para os olhos desse punk que está debaixo da minha pele. Há vezes em que todo o seu rosto está escuro, coberto de sombras e apenas se distinguem os seus olhos, fixos, a brilhar. É mais ou menos divertido que alguém possa pensar que esse punk é uma metáfora ou uma ironia porque, se há algo que ele rejeita no seu discurso são as metáforas e as ironias. Esse punk gosta de escrever frases nas paredes, gosta de repetir refrões quatro vezes e considera que tanto as metáforas como as ironias são subterfúgios que algumas pessoas utilizam para não serem directas, para serem mentirosas, para serem cobardes e se protegerem daquilo que têm para dizer, para se protegerem do olhar dos outros sobre aquilo que têm para dizer. Esse punk engana-se muitas vezes, mas não tem medo de utilizar o verbo ser.
Em conversas com outras pessoas, estando a falar ou a ouvir, é muito frequente que esse punk me esteja a sussurrar palavras ao ouvido. Tem uma voz riscada por grãos de areia. É como se a sua garganta fosse rugosa, e talvez seja. Esse punk prefere gastar aquilo que tem, prefere gastar-se, a ter tudo muito guardadinho em gavetas, apenas para ser usado em dias especiais, com muito cuidado para não riscar, para não sujar. Esse punk gosta de sujar-se. As outras pessoas têm dificuldade em entender o prazer imenso de estar sujo, de não tomar banho, de deixar o tempo acumular-se na pele, de torná-la morna, da certeza de vida que existe por baixo de tudo isso. Porque esse punk também tem muito dentro de si, também há muito debaixo da sua própria pele. Eu tenho um punk dentro de mim, debaixo da minha pele, e esse mesmo punk tem muito dentro de si. Não vou enumerar, não vou cair nessa vertigem. Vou apenas assinalá-la. Essa arqueologia pode exigir a vida inteira.
Passamos muito tempo sozinhos, eu e esse punk. Se precisamos um do outro, basta chamarmos. Entendemo-nos bem, sabemos escutar-nos e, para alám da idade, somos dois velhos. Ele é um punk velho, que nunca desistiu, que nunca baixou a voz, apesar de tudo o que inventaram para o demover, para mudar o mundo que descobriu com 14, 15 anos, ou talvez antes. Eu sou um velho que, entre outras coisas, carrega um punk velho dentro de si. Ele conhece aquilo que faço quando não o estou a ouvir, ele perdoa-me aquilo que faço contra as suas convicções. Ele finge que não vê, mas vê. E entende. Eu também conheço aquilo que ele faz e que contraria o que diz, que é o exacto oposto daquilo que diz quando se exalta com as pessoas que falam na televisão ou que escrevem nos jornais. Também eu finjo que não vejo, mas vejo. E entendo. Entendo muito bem os instantes em que ele está a tratar de si, despenteado, em que passa as mãos pelo rosto, e é como um menino frágil. Esse punk, que grita rouco, que diz que quer matar este e aquele, que quer partir isto e aquilo, é como um menino fràgil, à mercê de mil coisas que o podem matar, partir, e que o matam devagar, que o desgastam, mas às quais ele resiste, porque ele tem memória, ele não esquece.
Muitas vezes, quando estamos sozinhos, falamos de muitos assuntos, rimo-nos como pessoas normais. E ele não é esse punk que tenho dentro de mim, mas é uma pessoa com um nome, que chegou de um lugar. E eu não sou eu, sou também uma pessoa com um nome, que também chegou de um lugar. Rimo-nos. E parece-nos que não há outra pessoa que possa compreender as nossas histórias. Talvez seja mesmo assim: ficamos os dois, tatuados e rodeados de livros. Depois, quando estamos no centro de uma multidão, esse punk quer sair, mas eu digo-lhe que não, ninguém pode vê-lo mais do que apenas um pouco, quase nada. Se o vissem, os professores universitários iriam chocar-se. Apenas pelo seu reflexo, acreditariam saber tudo acerca dele. As senhoras que têm netas, filhas, deixariam de achar-me graça, ficariam baralhadas. Por isso, sou obrigado a pôr-me à frente do punk que está dentro de mim, debaixo da minha pele, sou obrigado a segurá-lo pelos ombros. Quando estamos sozinhos, sentamo-nos à mesa e, às vezes, juntos, ficamos em silêncio durante muito tempo.
*Publicado originalmente no Jornal de Letras.
Retirado do blog de José Luis Peixoto
EDUCAÇÃO: ponto da situação por Lídia Jorge
Nestes tempos de furor autoritário e de cárcere Sócratista, em que tudo e todos estão reféns da charamela do novo Partido Popular (moderado), é grato ler alguém que ouse ir contra essa bravata do"grande reformador" que os zeladores da ordem e da situação apodam ao "grande educador" Sócrates
Os docentes foram, durante o ano que passou, a única "tribo" a repudiar tais teorias postas a correr por gente ignorante e sem escrúpulos, alguns com copiosos interesses no sistema e no pensamento único. E a única classe profissional a exercer, em plenitude, oexercício de cidadania.
A discrição do intelectual nativo, neste assunto da resistência da classe docente contra o fim da Escola Pública e da Educação, foi total. Não se ouviu do repertório intelectual indígena, curiosamente sempre alvoroçado em abaixo-assinados & outras ilustradas sentenças, nenhuma posição sobre os atropelos do Ministério da Educação contra a classe mais ilustrada do país. E que sempre, com elevada solidariedade, esteve ao lado dos que lutam contra o medo, pela democracia contra o despotismo, pela liberdade contra a ignorância. O desprezo de toda essa corja de putativos intelectuais pelos cidadãos, passado o tempo da ditadura e agora muito bem instalados na vidinha, explica em parte as décadas de atraso cultural (social e económico) deste malfadado país.
Por isso o desagravo da escritora Lídia Jorge [Público, 9 de Janiero de 2008, p. 38] soou alto, nesta miséria caseira. Por isso, o texto que corajosamente ofereceu a este colégio interno onde habitamos, foi generoso e até, mesmo, benevolente. E por tudo isso, merece ser lido e reflectido. E arquivado.
Nota :
clicar no Fullscreen para ler tudo.
Segundo um comunicado que acabo de receber (BIBLIOTECÁRIO DE BABEL), a Porto Editora (PE) vai publicar «uma nova linha de ficção» de Gonçalo M. Tavares, um escritor que amplia assim a considerável lista de editoras com que trabalha ou já trabalhou (Caminho, Relógio d’Água, Campo das Letras, Assírio & Alvim, Difel, Teatro do Campo Alegre). Embora o projecto não esteja completamente definido, Tavares avança que a nova «linha» terá como ponto de partida «o conceito de cidade».
No final de 2008, o escritor publicara já um texto – Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste – numa colectânea da PE intitulada Contos Policiais. Cláudia Gomes, responsável pela Divisão Editorial Literária do Porto da PE, congratula-se com o acordo e adianta que este é mais um passo dado no sentido de «reforçar a presença no âmbito da ficção portuguesa e apostar nas novas vozes da nossa literatura».
Post publicado por "Bibliotecário de Babel"
Diana Athill, Sebastian Barry, Sadie Jones (na foto), Adam Foulds e Michelle Magorian estão nomeados para o Costa Book of the Year, anunciado a 27 de Janeiro, depois de terem recebido, em diferentes categorias, um dos mais importantes prémios literários britânicos.
Biografia: Diana Athill, Somewhere Towards the End (O Fim Pode Esperar - Memória Lúcida de uma Vida Intensa, editado em Setembro pela Pedra da Lua).
Romance: Sebastian Barry, The Secret Scripture (a editar este ano pela Bertrand).
Primeiro romance: Sadie Jones, The Outcast.
Poesia: Adam Foulds, The Broken Word.
Obra infantil: Michelle Magorian, Just Henry.
O país do TGV, do novo aeroporto de Mário Jamé Lino e dos fatinhos Armani da classe dirigente é o mesmo que deixa morrer o património histórico e cultural. Percebe-se: reabilitar monumentos não dá votos. Mais vale inaugurar cento e oitenta e quatro rotundas e quatrocentos e sessenta e três fontanários. O que vale a janela do Convento de Cristo comparada com o computador Magalhães, distribuído como bacalhau a pataco?
Post escrito por Pedro Correia e retirado do blogue "Delito de Opinião
Delito de Opinião é um novo blogue que vem enriquecer a blogosfera. Sejam Bem-Vindos.
"
As desigualdades sociais têm vindo a diminuir desde 2005
".
A afirmação é do nosso Primeiro-Ministro...
... que deve ter estudos muito profundos para fundamentar esta afirmação!
Confesso que esta tirada de Sócrates teve piada...
... de muito mau gosto.
A revista Tabacaria vai voltar a ser editada, «não necessariamente com esse nome», garantiu hoje Inês Pedrosa, directora da Casa Fernando Pessoa, em entrevista ao jornal Público. «Tem de ser bilingue, além de fortemente literária. Pessoa já não é só de Portugal - aliás, nunca foi. Temos também um projecto de edição contínua de textos em torno de Fernando Pessoa com o grupo editorial Leya. Estamos a estudar o modelo.»
Os premiados, que receberão cinco mil euros, foram escolhidos de entre 485 candidatos que enviaram os seus textos para o concurso organizado pela estação Radio Francia Internacional, Instituto Cervantes, Instituto do México em Paris, Casa da América Latina, Colégio de Espanha e Le Monde Diplomatique.
Em «Los Anacrónicos», de Padilla, «a celebração solene e pomposa de uma vitoriosa batalha dá lugar ao desenvolvimento de fortes conflitos entre os membros da associação de ex-combatentes», o que recria «um turbilhão de honras e medalhas de pacotilha que o narrador, com violento sarcasmo, desmistifica», indicou o júri.
«La Mensajera», de Dávila, por sua vez, é uma obra «com uma linguagem sóbria e precisa», em que «o narrador situa os factos num país africano em guerra», explicou o júri ao anunciar o prémio, em comunicado.
Este livro trata da «construção de uma balsa capaz de transportar material bélico de uma margem a outra, em vista de uma próxima batalha» que «se torna o épico desafio de um simples sargento», acrescentou.
Por outro lado, a argentina Lidia Barugel foi distinguida na categoria de novela, pela obra «Otilia Umaga, la mulata de Martinica».
O Prémio Pessoa 2008 foi atribuído ao arquitecto João Luís Carrilho da Graça «por ter desenvolvido uma actividade profissional com grande rigor e coerência», segundo anunciou o júri.
O prémio, atribuído anualmente a uma figura portuguesa que se tenha destacado na vida artística, literária ou científica do país, foi instituído em 1987 pelo jornal Expresso e pela empresa Unisys, e é constituído por um diploma e 60 mil euros.
Carrilho da Graça foi autor, entre outras obras, do edifício da Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa e do Pavilhão do Conhecimento dos Mares da Expo 98, actual Centro Ciência Viva, no Parque das Nações.
«Carrilho da Graça tem desenvolvido, ao longo de 30 anos, uma actividade profissional com grande rigor e coerência, criando uma linguagem própria que adequa a cada situação específica», diz o comunicado do Prémio.
Carrilho de Graça nasceu em 1952 e licenciou-se em 1977 pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. É professor em várias universidades portuguesas, entre elas a Universidade Autónoma, Universidade Técnica de Lisboa e Universidade de Évora e colabora com instituições internacionais. [diariodigital.pt]
[Martin Alipaz / EFE]
«Desnudos contra Evo. Mujeres y ex mineros semidesnudos protestan a las puertas de las oficinas de la Corporación Minera de Bolivia para exigir al gobierno del presidente Evo Morales indemnizaciones laborales.» [20 Minutos]
O escritor catalão é o primeiro autor a ganhar o «Nobel das Letras espanholas» (no valor de 125 mil euros) depois das alterações introduzidas pelo Ministério de Cultura na composição do júri».
A Wook.pt, a maior livraria virtual portuguesa, coloca a partir de hoje um milhão de livros grátis na Internet, numa iniciativa inédita de promoção da leitura, anunciou hoje a Porto Editora, proprietária desta livraria on-line.Nos próximos dias, livros como A Viagem do Elefante, A Vida num Sopro ou O Priorado do Cifrão estarão disponíveis a preço zero", refere a Porto Editora, num comunicado enviado à Lusa, aludindo aos mais recentes livros de José Saramago, José Rodrigues dos Santos e João Aguiar.
O escritor Juan Goytisolo obteve o Prémio Nacional das Letras Espanholas, um dos mais prestigiosos galardões atribuídos em Espanha.
Dotado com 40000 euros, o Prémio, concedido em reconhecimento da trajectória de um autor espanhol, vem juntar-se a outros importantes galardões já recebidos pelo escritor: Prémio Europália (1985), Prémio Nelly Sachs (1993), Prémio Octavio Paz de Literatura (2002) e Prémio Juan Rulfo 2004.
Um dos nomes maiores da novelística espanhola da actualidade, Goytisolo nasceu em Barcelona em 1931 e durante o franquismo esteve exilado em Paris, onde trabalhou como assessor literário da editora Gallimard, e em Marraquexe (Marrocos), onde actualmente reside.
Ficcionista e ensaísta, é também conhecido pelos seus trabalhos de reportagem, literatura de viagens e memórias.
A história da Byblos é uma história de equívocos, a começar pelos mal medidos sonhos de grandeza do seu proprietário (Américo Augusto Areal, aqui fotografado a 9 de Dezembro de 2007, cinco dias antes da inauguração da loja) e a acabar em pequenos pormenores que foram mostrando um desfasamento (maior ou menor) com essa coisa tramada que se chama realidade.
Olhando agora para a curta vida deste projecto, há qualquer coisa de cruel na constatação de um erro básico que perdurou, em letras de bronze, numa das paredes da Byblos. Refiro-me a esta citação de Jorge Luis Borges:
Uma bela frase, cheia de efeito. Acontece que Borges escreveu outra coisa. O que Borges escreveu foi: «Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca.» Suponho que alguém terá traduzido a citação a partir do inglês, sucumbindo a um famoso falso amigo (library). O certo é que uma biblioteca não é uma livraria, como os bolsos de qualquer leitor bem sabem. Borges nunca imaginaria o paraíso como um sítio onde temos que pagar por livros que talvez nem estejam disponíveis. Biblioteca, sim, de preferência infinita como a de Babel. Já Américo Augusto Areal acredito que imaginasse o paraíso sob a forma de uma livraria, de preferência a sua livraria gigante e high tech. Em vez disso, porém, saiu-lhe um inferno.
Jorge Reis-Sá, editor das Quasi, olha para o fecho da Byblos de um ângulo particular. O de quem fornecia a matéria-prima do negócio (os livros) aparentemente a fundo perdido, já que nunca viu um cêntimo sequer:
«Vou contar. Não resisto. Vou contar. A Byblos pagava (ou dizia que pagava) a 120 dias. 120, meus queridos, 120. A Byblos pedia um desconto de 40% sobre o preço de capa. 40%, meus queridos, 40%. A Byblos nunca, desde que em Fevereiro vendi o primeiro livro e coloquei uma consignação, me pagou um tostão. Um tostão que fosse. Mas a culpa não é deles. Fevereiro com quatro meses (120 dias) dá Junho. Metem-se as férias. Depois em Setembro é o escolar. Outubro e Novembro o grande veículo de espantosa gestão estaria a pensar no Natal, pagar não dava. Em Janeiro devolvia-se tudo e vinha o acerto (”sem a nota de crédito não podemos efectuar o pagamento”, parece que estou a ouvir, mesmo que a nota de crédito fosse de 20,34 euros e o pagamento devido – desde Junho – de 3409,89 euros). Depois era a Feira do Livro e a Byblos iria ter um grande e maravilhoso stand. Depois vinham as férias, e desta maneira podemos ir vivendo à custa dos fornecedores.
Mas, meus amigos, acham a Byblos a única? Eu consegui ir buscar os livros há quinze dias, depois de dizer que ia facturar tudo e meter tudo em tribunal. Ah, o tribunal. Agora o Estado quer o seu – que está em atraso (aposto como a segurança social também quer o seu) – e depois há os bancos. Os fornecedores? Que carreguem no botão. Mas dizia: a única? Deixem-me rir, dizia o Jorge Palma. O pão nosso de cada dia é este. Os editores que carreguem no botão.»
O texto completo pode ser lido aqui.
“Teixeira dos Santos é o pior ministro europeu das Finanças no “ranking” do Financial Times” Não teria dúvidas em escrever que o Ministro das Finanças é um mau ministro. Para dar corpo a esta afirmação nem sequer seria necessário falar nas políticas do governo nesta área e nas suas consequências nefastas para a vida dos portugueses. Bastava-me invocar a incompetência e arrogância demonstrada na rocambolesca apresentação do Orçamento de Estado, fingindo na Assembleia da República que o estava a apresentar e depois não estava ou convidando os jornalistas para um pequeno almoço que depois já não era.Teixeira dos Santos é o pior ministro europeu das Finanças no “ranking” do Financial Times
por Tiago Mota Saraiva
A notícia do Financial Times, pelos seus (deles) motivos, apenas corrobora aquilo que os portugueses já sabem.
A nova chancela da Guimarães Editores
A Centauro é uma nova chancela da Guimarães Editores. Publicará panfletos, pequenos cadernos em papel de qualidade, bem desenhados e paginados, com textos clássicos de autores portugueses. Tem coordenação editorial de Vasco Silva e design de Luís V. Vilaça. “Os Preceitos Práticos em geral e os de Henry Ford em particular”, de Fernando Pessoa; “Tabacaria” de Álvaro de Campos; “Carta ao Príncipe Real D. Luís Filipe de Bragança” de Mouzinho de Albuquerque e “Tentativa de um Ensaio sobre a Decadência” de Luiz de Montalvor são alguns dos cadernos publicados. Seguem-se “O Caso Mental Português” de Fernando Pessoa (”Se fosse preciso usar de uma só palavra para com ela definir o estado presente da mentalidade portuguesa, a palavra seria provincianismo” - é com esta frase que Fernando Pessoa inicia o seu ensaio de 1932) e “Carta à Memória de Fernando Pessoa” de Carlos Queiroz, que foi publicado pela primeira vez publicado na Revista Presença, em 1936. Cada livrinho da Centauro custa € 3,80.
Já chegámos à boa-moeda à la Madeira ou
o novo paradoxo do ornitorrinco «E até não sei se a certa altura não é bom haver seis meses sem democracia, mete-se tudo na ordem e depois então venha a democracia»
Palavras para quê? É uma artista portuguesa que trocou o silêncio por uma catrefada de disparates.
Manuela Ferreira Leite
LNT
sinopse
Pierre (Romain Duris), um jovem bailarino parisiense, descobre que sofre de uma doença que lhe poderá ser fatal. A perspectiva da morte faz com que valorize a sua vida e a das pessoas com quem se cruza diariamente no seu bairro, seja a sua irmã (Juliette Binoche), os vizinhos ou os comerciantes. Através de um novo olhar, Pierre assiste ao desenrolar das histórias destas pessoas, dos seus problemas, dos seus encontros e das suas emoções...
intérpretes
Juliette Binoche, Romain Duris, Fabrice Luchini
João Ubaldo Ribeiro, Prémio Camões 2008, acaba de assinar contrato com as Edições Nelson de Matos para a publicação em exclusivo da sua obra literária em Portugal.
O plano de edições iniciar-se-á no início do próximo ano com a publicação em simultâneo dos seus romances Viva O Povo Brasileiro (Prémio Jabuti e Prémio Golfinho de Ouro em 1985) e com A Casa dos Budas Ditosos (de 2000) e a que se seguirá, ainda antes da data de entrega do Prémio Camões 2008, o romance Miséria e Grandeza do Amor de Benedita. Até agora, João Ubaldo Ribeiro era publicado pela Dom Quixote.
Jacinto Lucas Pires é o vencedor do Prémio Europa - David Mourão-Ferreira, atribuído pela Universidade de Bari e pelo Instituto Camões, que permitirá a tradução e publicação das suas obras nos países da União Europeia e do Mediterrâneo. O escritor, de 34 anos, que lançará a 19 de Novembro um livro de contos intitulado "Assobiar em Público", editado pela Cotovia, foi distinguido por um júri presidido pelo filósofo e ensaísta Eduardo Lourenço, indicou hoje a Cotovia, em comunicado.
O prémio, cujo objectivo é difundir a língua portuguesa e as culturas dos países lusófonos, homenageando o poeta David Mourão-Ferreira, é promovido pelo Centro de Estudos Lusófonos - Cátedra David Mourão-Ferreira, da Universidade de Bari e do Instituto Camões, com o patrocínio do Instituto Camões, Universidade de Bari, Câmara de Bari, Região da Apúlia, Banco Unicredit e outras entidades italianas e estrangeiras.
Jacinto Lucas Pires nasceu no Porto em 1974, vive em Lisboa e nos últimos dez anos publicou quatro livros de teatro, cinco de ficção e um de viagens. [sic.pt]
Às vezes, por breves instantes,
a beleza habita sobre a terra,
tão urgente e impronunciável
como o rosto em trompe l’oeil
na abóbada da igreja de São Roque.
Com isto, estarei talvez a fazer
a mesma triste figura da rapariga espanhola
que ao meu lado rabiscava poemas
dialécticos – «Argumentos» e Contra-
Argumentos» velozmente incinerados
pela fundamentação física do génio.
Nós, poetas, só escrevemos disparates.
A beleza, dizia eu. Mas os meus pés,
o seu indiscutível peso sobre a terra,
coincidiam com o mármore da sepultura
número 44 (dois terços de paixão, outro de pó).
E aquele homem ajudava-nos a morrer
melhor.
LEONARD COHEN, 1979
Era bem claro, nessa noite,
o quanto a sua música
se afastava de «other forms
of boredom advertised as poetry»,
denúncia que se mantém válida.
Não serão bússolas duradouras
– tudo, enfim, falece –,
mas são palavras que nos protegem
da avalanche dos dias e dos meses,
destas poucas horas a que chamamos nossas.
Uma maneira de voltar a morrer?
Talvez,
quando até nas cinzas encontramos lume.
PINA BAUSCH, 2008
Müller,
Café Müller.
A morte sabe onde fica.
[in Jukebox 2, de Manuel de Freitas, Colecção Poesia Portuguesa Contemporânea, Teatro de Vila Real, 2008]
QUANDO O DESEJO ESCORRE
Do desejo é dito correr para o mar como água de rio. Liberdade fingida pelas margens que o contêm. Necessariamente. Inevitavelmente. A vontade submissa ao imperativo obscuro da química(?), do sangue. Como se cada um agisse sob ditado inconsciente do qual pouco sabe, mas sente a fervura nas veias. E, na dança lenta dos gestos, no escorrer do desejo fluidificado por um no outro, nos dois pelos dois, nos lábios e olhos acorrentados, o tempo esvai-se. Enquanto as bocas peregrinam, meticulosamente, no corpo que, não sendo nosso, é.
Post retirado do blog "Sem Pénis, Nem Inveja" e escrito por Teresa C.