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António Lobo Antunes
 

Avô

 Aqui de cima, tão alto sobre a Penitenciária, converso com ele, a quem o facto de eu passar muito tempo a escrever e a ler intrigava e inquietava, oiço-o, respondo-lhe, comentamos os falcões. Esteve preso lá em baixo por ter feito parte da revolta monárquica de Monsanto, onde o seu comportamento foi heróico e pagou bem caro por isso. Mas jamais o ouvi queixar-se fosse do que fosse

Ilustração: Susa Monteiro

O compartimento onde escrevo, um andar muito alto sobre as traseiras da Penitenciária, de onde vejo até falcões que passam de quando em quando com um rato nas unhas, falcões, andorinhas, gaivotas, outros pássaros, traz-me todos os dias à memória o pai do meu pai, que se chamava António Lobo Antunes e esteve uns bons tempos preso aqui. Morreu pouco depois de eu fazer dezoito anos e desde então não houve um só dia sem me lembrar dele, pelo muito amor que continuo a ter-lhe. Foi a pessoa central da minha infância, é uma das duas ou três pessoas essenciais da minha vida. Imagino-o ali de novo, nesta prisão enorme, recordo-me do meu pai contar as visitas que lhe fazia em pequeno, de mão dada com a minha avó grávida, que o trazia aqui a ele e à irmã que nasceu a seguir a ele, recordo-me do meu pai contar o medo que sentia nesta cadeia enorme, cheia de homens e ecos. Às vezes oiço as vozes dos condenados lá em baixo, durante o recreio e, sem dar por isso, não, e, dando por isso, imagino o meu avô entre eles, a sorrir-me aquele sorriso tão bonito que era o seu, um homem grande, muito forte, extraordinariamente belo e terno, que tinha por mim um amor ilimitado, que me fazia tantas festas, até na rua, e eu cheio de vergonha, a pensar

– Vão achar que somos maricas

já parvo, claro, incomodado, aflito. A minha mãe contava que uma vez, de manhã muito cedo, telefonaram ao meu pai para ele dizer que o tio João, o irmão mais velho do meu avô, tinha morrido de repente e pedindo-lhe que fosse comunicar a notícia ao meu avô. De modo que a minha mãe e o meu pai lá foram os dois, a seguir a vestirem-se à pressa, e os meus avós estavam ainda deitados. Olharam os meus pais, surpreendidos, o meu pai disse

– Pai, trago-lhe uma notícia muito triste

e segundo a minha mãe o meu avô tornou-se rígido na cama, de olhos fechados. Após um silêncio o meu pai disse

– Pai, o tio João morreu

ao cabo de outro silêncio comprido, contava a minha mãe, o meu avô abriu os olhos e respondeu

– Pensei que fosse o António

e, comentava ela, o meu avô, que gostava muito do irmão

– Até parecia aliviado.

Pouco antes de morrer, e não morreu velho, disse-me

– Tenho tanta pena de te deixar

e sorriu-me. Depois foi-se embora e perdi-o para sempre. 
A ideia da minha morte, e já estive perto dela em mais de uma ocasião, a ideia da minha morte, quer dizer o que eu penso da minha morte, o que me consola na minha morte é a certeza que vou estar com ele de novo, aquele homem moreno

(eu que sou loiro)

de uma coragem física que me mete a um canto, de uma generosidade sem fim, com uma capacidade de amar que não encontrei em mais ninguém, com um sentido de família único, de uma fidelidade absoluta a si mesmo e aos outros, com quem não me pareço em quase nada, muito melhor do que eu, sociável, alegre, que nunca vi ler um livro, que às vezes me olhava com pena

– Quando tiveres um filho já eu estou a fazer tijolo há que tempos
tão valente, tão generoso, tão bom, salazarista, monárquico, intensamente religioso, sociável, divertido, um patriarca no sentido mais nobre da palavra, com um extraordinário talento para alcunhas

(a um conhecido político, por exemplo, chamava-lhe Pneu Mabor, porque a única coisa que tinha de bom era o ar)

amando a vida, ele que não vivia, comia os dias, com uma enorme capacidade de perdoar, um rei, um príncipe, um líder natural, o meu herói. Aqui de cima, tão alto sobre a Penitenciária, converso com ele, a quem o facto de eu passar muito tempo a escrever e a ler intrigava e inquietava, oiço-o, respondo-lhe, comentamos os falcões. Esteve preso lá em baixo por ter feito parte da revolta monárquica de Monsanto, onde o seu comportamento foi heróico e pagou bem caro por isso. Mas jamais o ouvi queixar-se fosse do que fosse. Preso, condenado, obrigado a sair de Portugal, foi para Tanger, onde uma das minhas tias nasceu e só nos anos trinta lhe permitiram regressar a Portugal, e sei que a estadia no Norte de África não foi fácil, obrigado a trabalhar numa fábrica de conservas

(ele que nascera aristocrata e rico, essas célebres fortunas da borracha do Brasil)

e nunca lhe escutei uma queixa ou lamento. Em Portugal refez a sua vida toda, não voltou ao Brasil a não ser numa ocasião, numa breve visita, com toda a família de lá à sua espera no Rio, pegado como era a esta terra aqui, ele que passou a infância em Belém do Pará e cujas memórias, até nas canções que às vezes me cantava

Mamãe diz ao Papai
que eu quero ir para a guerra
do Paraguai.
Não vês meu filho
que podes morrer
tão pequenino
que irá acontecer?

eram tão brasileiros. É que a sua alma é suficientemente grande para ocupar dois países. Nada disto eu herdei, claro. Mas basta-me o orgulho de ter o seu nome, António Lobo Antunes, e a felicidade de haver sempre recebido o seu amor. E agora não estou a olhar a Penitenciária lá em baixo. Estou com ele em Pádua a fazer a primeira comunhão na igreja de Santo António, em resultado da promessa que fez nesse sentido se eu não morresse de meningite que tive aos oito meses, como o irmão mais novo do meu pai, morto dela com a idade em que eu ia morrendo, e António Lobo Antunes também. Sabe, avozinho, acho sempre que os falcões que passam na janela me trazem recados seus. Eu sei que olha por mim e não me deixa. E o que traz nas garras não é um bicho morto é o nosso amor que continua vivo. Olhe, fico contente que este texto esteja tão mal escrito. 

Acho que me comovi demais.

 

Crónica publicada na VISÃO 1283 de 5 de outubro

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publicado às 17:53


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