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#3333 - UM POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 01.01.24

 

Os amantes imponderáveis são archotes da matéria na sua frondosa verdura

e através da distância perfumada cintilam como as constelações

Como é magnífica a ébria lucidez do esplendor

e como é alta elástica e incandescente essa torre vermelha

que os dois corpos formam numa coluna do universo!

Uma lua desdobra-se num grande leque branco

enquanto o fogo dança sob os arcos nas grutas efervescentes

As pálpebras fecham-se para ver melhor as linhas do cristal

da nudez revelada com os seus veios e anéis de mercúrio e ouro

Despenham-se um no outro como violentas dunas

e na vermelha colmeia da amante o tenso peixe explode

em constelações de pólen ou em arabescos de fogo

A doçura queima a seda porejante dos músculos repousados

e os corpos dilatam-se na tranquilidade de uma grande dália de água

 

Poema de António Ramos Rosa, do livro "GÉNESE", editado por Roma Editora, em Abril de 2007, com posfácio de Pascal Fleury

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publicado às 15:38


#3254 - A ESPERANÇA DO LIVRO

POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 29.12.22

A ESPERANÇA DO LIVRO

 

Como um painel, soerguendo-se da névoa marinha, um busto vermelho, carcomido, a boca hiante, de um mistério vazio. A meus pés, um exército de formigas-negras procura, num árido frenesim, o caminho para a pedra. A orla branca de espuma, as vagas que rolam violentas, impedem o acesso do negro exército de insectos.

 

Quem poderá escutar da boca daquela divindade algo para além da sua nudez de morte? O seu frio eco trespassa-me de horror, a distância perdida torna-se fúnebre. As máscaras encobrem em vão o inexorável.

 

«Onde está a esperança?», alguém grita ou seria apenas o amplo espaço que flamejara? Era um esplendor cruel e o grito, se alguém o gritara, logo fora varrido pela força do vento. Alguém no entanto gritara: «Não feches o livro.» Respondi: «Virei todas as páginas sem encontrar a esperança.» A voz pronunciara ainda algumas palavras de um além da bruma: «A esperança é talvez o livro.»

 

Cansara-me de fitar a carcaça de pedra vermelha, olhos e boca abertos por onde entravam o sol e a água. A tenacidade da ruína muda aterrorizava-me. Mas além da bruma eu ouvia a voz de uma possível esperança. Era preciso atravessar a inexorável claridade e procurar na tarde a merenda que me desse o alento para prolongar o livro. As folhas escritas pesavam sobre o dorso direito; as folhas brancas curvavam o ombro esquerdo. Desejava libertar-me das primediras, como de um fardo, mas as outras, na vertigem do possível, tornam a marcha ébria, de um vagabundo prenhe do murmúrio de todas as palavras que um dia seriam o Livro, que já o eram no passo ligeiro em que caminhava através da bruma.

 

Poema de António Ramos Rosa in "Antologia poética", edição D. Quixote, 2001.

Prefácio, Bibliografia e Selecção de Ana Paula Coutinho Mendes

 

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publicado às 18:34


#3253 - ESCREVO-TE COM O FOGO E A ÁGUA

POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 29.12.22

ESCREVO-TE COM O FOGO E A ÁGUA

 

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te

no sossego feliz das folhas e das sombras.

Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.

Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.

Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

 

O que procuro é um coração pequeno, um animal

perfeito e suave. Um fruto repousado,

uma forma que não nasceu, um torso ensaguentado,

uma pergunta que não ouvi no inanimado,

um arabesco talvez de mágica leveza.

 

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?

Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.

As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.

O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,

o grande sopro imóvel da primavera efémera.

 

Poema de António Ramos Rosa in "Antologia Poética" com prefácio, bibliografia e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, edição Publicações D. Quixote, 2001

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publicado às 15:15


#3089 - O TEMPO CONCRETO ||| POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 24.03.20

O TEMPO CONCRETO

 

O tempo duro

com estas unhas de pedra

este hálito pobre

de órgãos esfomeados

estas quatro paredes de cinza e álcool

este rio negro correndo nas noites como um esgoto

 

O tempo magro

em que minhas mãos divididas

nitidamente separadas e caídas

ao longo dum corpo de cansaço

pedem o precipício a hecatombe clara

o acontecimento decisivo

 

O tempo fecundo

dos sonhos embrulhados repetidos como um hálito de febres

repassadas no travesseiro igual das noites e dos dias

das ruas agrestes e pequenas da mágoa

familiar e precisa como uma esmola certa

 

O tempo escuro

da peste consentida do vício proclamado

da sede amarfanhada pelas mãos dos amigos

da fome concreta dum sonho proibido

e do sabor amargo dum remorso invisível

 

O tempo ausente

dos olhos dum desejo de claras cidades

em que acenamos perdidos às soluções erguidas

com vozes bem distintas de cadáveres opressores

com gritos sufocados de problemas supostos

 

O tempo presente

das circunstâncias ferozes que erguem muros reais

dos fantasmas de carne que nos apertam as mãos

das anedotas contadas num outro mundo de cafés

e das vidas dos outros sempre fracassadas

 

O tempo dos sonhos

sem coragem para poder vivê-los

com muralhas de mortos que não querem morrer

com razões de mais para poder viver

com uma força tão grande que temos de abafar

no fragor dos versos disfarçados

 

O tempo implacável

em que juramos de pé viver até ao fim

maiores dos que nós ser todo o grito nu

pureza conquistada no seio da vida impura

um raio de sol de sangue na face devastada

 

O tempo das palavras

numa circulação sombria como um poço

de ecos incontrolados

de timbres inesperados

como moedas de sangue cunhadas numa noite

demasiado curta e com luar de mais

 

O tempo impessoal

em que fingimos ter um destino qualquer

para que nos conheçam os amigos forçados

para que nós próprios nos sintamos humanos

e este fardo de trevas esta dor sem limites

a possamos levar numa mala portátil

 

O tempo do silêncio

em que o riso postiço dos fregueses da vida

finge ignorá-lo enquanto soluçamos

de raiva de razão reprimida revolta

e os senhores de bom senso passeiam divertidos

 

O tempo da razão

(e não da fantasia)

em que os versos são soldados comprimidos

que guardam as armas dentro do coração

que rasgam os seus pulsos para fazer do sangue

a tinta de escrever duma nova canção

 

poema de antónio ramos rosa

 

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publicado às 12:40


#3087 - POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 21.03.20

Assimilando a árvore a borboleta e os gatos

no amarelo fragrante e no silencioso redemoinho

com a saliva do  calor e os escuros fragmentos

regresso à lentidão de um baile a um violoncelo

tocado por um gnomo sobre um telhado de metal

Trago uma lâmpada de orvalho para  atravessar o abismo

e um pássaro adormecido sobre uma folha verde

Entre madeira e sombra, sob uma plácida lua

mobilizo os cristais nocturnos e as vespas azuis

entre as constelações que dialogam num tranquilo tremor

Sob as clavículas das árvores e copas flutuantes

enuncio a materna cascata e as metáforas que respiram

Movo a escultura do desejo na diagonal aspirada

e na fragrância do arco quando a consistência

é a bondade que flui entre os cornos da dança

Atravesso os murmúrios disfarçados ou os símbolos

que alçam as lânguidas cabeças submersas

até que os signos os alcancem e os respirem

Rio nas pausas da harmonia e no incêndio das alfombras

Escondo-me num olho e voo dentro da sombra

Nas nuvens passam touros brancos e águias verdes

Sedento movo as paredes na ternura da água

Aperto a suave madeira de um corpo e as suas cavernas vivas

enquanto deslizam as lentas estrelas sobre a água

Nos jardins minúsculos a brevidade e a delicadeza

Os conceitos suspiram entre a língua das flores

Guitarra e musgo e tempo acariciado

perpetuam o crepúsculo e a ausência de perguntas

Mulheres com sombrinhas descalças sobre a praia

o vento revolve-lhes as lâmpadas e as saias

Coloco a mão na âncora deste ritmo

O sangue penetra a garganta o sangue das flautas

e abre-se o tenaz labirinto voluptuoso

que é um orgão do sol e um violino da lua

De poro a poro, de poro a fruto, de fruto a estrela

uma água enigmática desliza entre carícias

Perpetua-se o prelúdio da metamorfose da matéria

e o corpo saboreia o horizontal relâmpago

 

POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA 

 

 

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publicado às 20:52


#3085 - UM PONTO ||| POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 16.03.20

 

UM PONTO

 

Um ponto - talvez um centro

em permanência de tranquilidade

para a noite inteira. Um ponto

extremo, interno. Um pequeníssimo ponto

invulnerável

de estabilidade total

- nascido como? - fruto do espaço limpo,

de aberta aderência nua ao ar,

de contância livre, desocupada,

do descanso de ser até ao fundo simples,

de completa entrega?

 

Um ponto nu inabitado branco

de intocável serenidade,

fixo como um nervo e imponderável,

de fim inicial,

ponto de respiração,

clareira de estar,

abertura central viva

praia de ser e nada

- mas apenas um ponto, um puro ponto

contra a noite inteira,

contra o frio,

contra a destruição.

 

Ponto de união

de paz coextensa à noite,

opaco e diáfono nó

do desenlace perfeito.

Nó de água

da água mais nua.

Ninho interno do espaço.

Pequena lua essencial

num horizonte de segua paz.

 

Ponto, em ti descanso,

certeza do mundo e de mim

em ti, dentro da noite,

atinjo o equilíbrio actual e puro.

Ponto, antes do início,

de ti a ti, em mim,

pulsação lisa e leve,

suave motor da terra,

a pacífica respiração do oásis.

 

Ponto

de universo fixado

onde atingi a consistência dócil

de permanecer entrgue,

plenitude abrigada

na navegação nocturna.

 

Um ponto vazio,

plenamente vazio.

 

POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA IN "ANTOLOGIA POÉTICA", EDIÇÃO PUBLICAÇÕES D. QUIXOTE, 2001, COM PREFÁCIO, BIBLIOGRAFIA E SELECÇÃO DE ANA PAULA COUTINHO MENDES

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Biografia

António Ramos Rosa (1924-2013)
 
António Victor Ramos Rosa nasceu em Faro a 17 de Outubro de 1924. Frequentou em Faro os estudos secundários, que não concluiu por motivos de saúde. Trabalhou como empregado de escritório, desenvolvendo simultaneamente o gosto pela leitura dos principais escritores portugueses e estrangeiros, com especial preferência pelos poetas. Em 1945 vai para Lisboa e dois anos depois volta a Faro, tendo integrado as fileiras do M.U.D. Juvenil, onde militou activamente. Regressado a Lisboa, foi professor de Português, Francês e Inglês, ao mesmo tempo que estava empregado numa firma comercial, e começou a fazer traduções para a Europa-América, trabalho que nunca mais abandonaria e no qual veio a atingir notável qualidade.
 
O continuado interesse pela actividade literária levou-o a relacionar-se com um grupo de escritores que o incentivaram na publicação dos seus poemas e artigos de crítica, tendo colaborado em numerosos jornais e revistas. Com alguns desses escritores, fundou em 1951 a revista Árvore, que veio a ser uma das mais marcantes da década, procurando divulgar os textos dos poetas e prosadores portugueses mais significativos no tempo, bem como os grandes nomes da literatura estrangeira. Co-dirigiu também as revistas Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia.
 
A crescente importância que a actividade literária foi tomando na sua vida levou-o a certa altura a abandonar o emprego no escritório em que trabalhava, para a ela se dedicar exclusivamente, com todas as consequências que tal decisão acarretava.
 
 

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publicado às 16:42


#2949 - POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 06.01.19

 

O silêncio não existe porque é  o constante rumor de uma inexistência. O que se ouve,  para além do movimento da cidade, é o monótono murmúrio do nada. Apenas sombra de nada, quem nele procura um apelo ou uma resposta não  os encontra ou encontra um sinal negativo. Nada diz esse murmúrio nulo, que é o eco inalterável do vazio do mundo, mas quem o ouve sente a radicalidade da sua negação como se a cada momento nos dissesse: Não há.

 

POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA IN «RELÂMPAGO DE NADA», 2004

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publicado às 21:27


#2948 - POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA

por Carlos Pereira \foleirices, em 06.01.19

O construtor, antes de levantar a primeira pedra do dia, contempla e considera as suas feridas que enfraquecem a vontade de construir, com a sua própria substância de cinzas e sangue petrificado, a habitação em que a fénix poderá renascer com todo o esplendor original de um astro. Nada mais lhe resta do que lançar-se  a um trabalho para o qual a disposição ainda não surgiu, mas que poderá despertar os impulsos da construção solar e abrir o horizonte luminoso e tranquilo de um rio em torno da morada. A construção está envolta numa espessa bruma e não há nela sinais de figuras ou formas, porque essa névoa é o próprio nada da confusão inicial e o fim de toda a construção como possibilidade de vida e de renovo. É do obscuro fundo da retina que surge um ténue raio cintilante que penetra na massa nebulosa da construção e  a faz palpitar e estremecer. O construtor poderá então discernir algumas linhas de força, algumas estruturas e bases numa crescente e sincopada clarificação. Haverá um momento em que ele sentirá que o edifício dança porque tudo se duplica e se reflecte e se anima. De algum modo, é já a fénix que resplandece no fulgor da edificação e na plenitude do ser e do olhar na sua mútua criação

 

POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA in "O Aprendiz Secreto", 2001

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publicado às 20:12


#2915 - O DEUS QUE É TRANSPARÊNCIA

por Carlos Pereira \foleirices, em 19.11.18

O DEUS QUE É TRANSPARÊNCIA

Ninguém me saúda nas esquinas do papel.

Nenhum deus me acompanha pelas ruas desertas.

Mas nos dedos sinto o rumor de um segredo vegetal.

É como se procurasse alargar a mão dos deuses.

É como arder com a água na brancura ofuscante

da ressaca. E as palavras da casa se levantam

a janela a porta a cama e a cadeira.

São presenças espessas e nítidas no perfil.

Assim se forma um círculo com energia erguida

nas sílabas preenchidas pela coerência do mundo.

Maternas são as sombras em torno de um centro verde

que foi talvez um deus antigo que se esqueceu

e o esquecimento é o seu signo: a transparência.

 

POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA, in «Antologia Poética», selecção, prefácio e bibliografia de Ana Paula Coutinho Mendes, edição Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2001

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publicado às 17:12


#2652 - Um poema de António Ramos Rosa

por Carlos Pereira \foleirices, em 30.10.17

 

Que a palavra seja um volume ardente e preciosamente nu

e que trema porque o seu centro é obscuro e incerto

e que se perca na sua chama como numa nuvem

que o seu brilho não apague o movimento da sua sombra

e errante se extinga agravando a solidão de um exílio como um país de sangue

Ese for veementemente como uma onda vermelha

que nela perpasse um húmido murmúrio de névoa

Que a argila reverdeça na prateada lama das suas luas de areia

e mais do que tudo o coração e o olvido se reúnam

entre as luzes e as sombras do seu outono de água

Que a fronte se torne alta de terra vento e chama

porque nela o silêncio é a pureza que vibra

sobre o sangue incessante 

Se arder para o corpo do dia que arda para o corpo da noite

Como um arco lentíssimo sobre um espaço de vento e solidão

ou um ouvido solitário de árvore

ela será luminosa harmonia que se esvai

na sua imperfeição de sombra enamorada

e unir-nos-á docemente à sua fugidia sombra

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publicado às 18:35


#2500 - O DEUS NULO

por Carlos Pereira \foleirices, em 08.07.17

 ANTÓNIO RAMOS ROSA (1924-2013)

 

Não o espero. Não chegarei jamais, nem estarei aqui, ele não falará. Desejaria dizer o seu infortúnio inominável, o seu silêncio impossível. Desejaria acolhê-lo na sua nudez, no seu silêncio. Espera-me decerto, na sua pobreza incomensurável, pobre deus mudo, sem abrigo, de uma infinita miséria. O que escrevo, o que escreverei será a oferenda para o encontro dele. Mas não haverá encontro se ele não respirar na inesperada transparência de uma linguagem branca. Nada poderei oferecer se as palavras não constituírem essa íntima aliança que é o mistério mesmo da linguagem.

 

Estou só e continuarei  a estar só, na árida  e ávida deambulação destas palavras sem caminho. Lancinante, a suspensão interminável. Aqui agora é nunca. Julguei que poderia estabelecer uma relação serena e confiante mas não ouviaind nenhum apelo. Estou dentro de um círculo calcinado.

 

Poema de António Ramos Rosa, do livro "Antologia Poética" com Prefácio, Bibliografia e Selecção de Ana Paula Coutinho Mendes - Edição Publicações Dom Quixote - Fevereiro de 2001

 

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Biografia                                                                                    

António Ramos Rosa (1924-2013)
 
António Victor Ramos Rosa nasceu em Faro a 17 de Outubro de 1924. Frequentou em Faro os estudos secundários, que não concluiu por motivos de saúde. Trabalhou como empregado de escritório, desenvolvendo simultaneamente o gosto pela leitura dos principais escritores portugueses e estrangeiros, com especial preferência pelos poetas. Em 1945 vai para Lisboa e dois anos depois volta a Faro, tendo integrado as fileiras do M.U.D. Juvenil, onde militou activamente. Regressado a Lisboa, foi professor de Português, Francês e Inglês, ao mesmo tempo que estava empregado numa firma comercial, e começou a fazer traduções para a Europa-América, trabalho que nunca mais abandonaria e no qual veio a atingir notável qualidade.
 
O continuado interesse pela actividade literária levou-o a relacionar-se com um grupo de escritores que o incentivaram na publicação dos seus poemas e artigos de crítica, tendo colaborado em numerosos jornais e revistas. Com alguns desses escritores, fundou em 1951 a revista Árvore, que veio a ser uma das mais marcantes da década, procurando divulgar os textos dos poetas e prosadores portugueses mais significativos no tempo, bem como os grandes nomes da literatura estrangeira. Co-dirigiu também as revistas Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia.
 

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publicado às 10:54


#2322 - BLOCO INTACTO

por Carlos Pereira \foleirices, em 26.04.17

 ANTÓNIO RAMOS ROSA

 

BLOCO INTACTO

 

Abrindo a álea

vertical sobre o vértice do instante

sem frenesim mas denso de

todo o sangue que me enche no silêncio desta álea

caminho para ti

lenta lentamente a densa bola sobre o jacto de água dança

e eu sou o jorro de água eu sou a bola em equilíbrio

a permanente coroa branca efervescente branca

na tranquila anónima macia dourada suburbana álea

a seda deste instante não se rasga

é um grande bloco intacto que se desloca

para a minha eternidade

a iminência de ti é a boca já feliz a árvore que estala em cada poro a seiva

a parede de água que contenho a porta doce e clandestina

a porta que desliza

e é então que

no espaço da vertigem

em ti me uno à sede e das raízes subo

e pelas raízes sou

 

Poema de António Ramos Rosa do livro "Antologia Poética", com selecção, prefácio e bibliografia de Ana Paula Coutinho Mendes, edição Publicações Dom Quixote, Fevereiro de 2001

 

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publicado às 18:10


#2142 - FICÇÃO [1985]

por Carlos Pereira \foleirices, em 30.01.17

 ANTÓNIO RAMOS ROSA

 

O desejo do início e do silêncio

para que o instante seja a fábula do instante

O silêncio para dizer as palavras anteriores

É o centro talvez a suspensão a perda

o fundo: a ausência de cor

fundo incessante que procuro defender

do assédio do sentido contra

as presenças acidentais e a agitação da superfície

Sigo-lhe a curva oculta até à interdição:

como transpor a parede circular

das coisas?

                          Lá fora a forma opaca

e provisória do ar as mesmas marcas

coloridas a distraída escrita

do acontecimento As pessoas passam

inscritas na janela com as casas e as árvores

e a árvore negra na curva, o céu oblíquo

Um olhar geral penetra-me e na ausência

de uma perspectiva já não sou

uma visão do mundo mas a subterrânea

corrente das intensidades do desejo

Aqui reina a imagem de um olho global

e é aqui que invento a metáfora da Figura.

 

POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA RETIRADO DO LIVRO "ANTOLOGIA POÉTICA" EDITADO EM 2001 POR PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE E CUJO PREFÁCIO, BIBLIOGRAFIA E SELECÇÃO É DE ANA PAULA COUTINHO MENDES

 

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publicado às 16:40


#2033 - Poema de António Ramos Rosa

por Carlos Pereira \foleirices, em 31.05.16

ANTÓNIO RAMOS ROSA

 

 

Havia na madeira uma penumbra

de criação que entrava pelas narinas

e quase triste num arvoredo madrugava

irrigando toda a construção sonora.

Num frescor de matéria se ensombrava

dos concêntricos alicerces se elevando

à folhagem da cúpula animal.

Agreste, o seu estuar é paz de sombra

demorando o assombro da frescura

em verdade de horizonte interno.

Poro a poro as crinas da madeira

rodeiam a atenção e a inclinam

para onde é mais limpo o coração.

E o olvido é a frescura da memória

que abre os largos vales solitários

em que pastam cavalos silenciosos 

entre verdes girassóis incendiados

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publicado às 17:51


#2032 - A (I)LEGIBILIDADE DO LIVRO

por Carlos Pereira \foleirices, em 30.05.16

 ANTÓNIO RAMOS ROSA

 

O livro está aberto e há demasiada luz.

 

Tudo o que escreves está contido nesse livro de letras

brancas como a tua morte.

 

Será possível ler o sol e o silêncio desse livro branco

eternamente branco e silencioso?

 

Como conter a àvida necessidade de devorá-lo como se o

livro pudesse matar-nos a irredutível fome de uma

linguagem legível e luminosa?

 

Estamos perante a impossibilidade de ler por um excesso

de luz que é a um tempo a nossa morte e a improvável

possibilidade de escrever o que não vemos, de ler o que não

lemos.

 

Devoramos o livro e com os olhos cegos de brancura

transformamos a impossível leitura na escrita de uns signos

imediatos que nos devolvem a linguagem da luz apagada

pela luz.

 

Poema de António Ramos Rosa in "Antologia Poética", Publicações Dom Quixote, edição de Fevereiro de 2001

 

 

 

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publicado às 18:10


#1876 -

por Carlos Pereira \foleirices, em 30.09.13

 

Eu sou um construtor

que ama a clara simetria dos terraços

e em cada poema procuro construir a flexível identidade

de uma possível habitação

Mas sem a alta coluna do teu corpo

não poderia iniciar esta obra diária

A lâmpada solar do teu rosto ilumina a minha mão incerta

e eu vejo o horizonte da minha respiração

e reúno as pedras de uma casa sempre incompleta

mas sempre aberta às artérias do sol

às veias do vento

Em torno dessa imaginária casa verdadeira

há um jardim de plácidas árvores aromáticas

e corre um ribeiro com seus anéis cintilantes e voluptuosos

Um monte de um azul claro como o dorso de um réptil

dá-nos a fronte de aérea tranquilidade

de sermos tão da terra como uma palmeira ou um plátano

Termos assim a pacífica ciência de habitar

e o azul pertence-nos porque o rspiramos

 

Poema de António Ramos Rosa in "O teu rosto"- edição Pedra Formosa, Edições, Lda, Março 1994

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publicado às 21:52

 

O BOI DA PACIÊNCIA

 

Noite dos limites e das esquinas nos ombros

noite por de mais aguentada com filisofia a mais

que faz o boi da paciência aqui?

que fazemos nós aqui?

este espectáculo que não vem anunciado

todos os dias cumprido com as leis do diabo

todos os dias metido pelos olhos adentro

numa evidência que nos cega

até quando?

Era tempo de começar a fazer qualquer coisa

os meus nervos estão presos na encruzilhada

e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante

e a minha vida não é mais que um teorema

por de mais sabido!

Na pobreza do meu caderno

como inscrever este céu que suspeito

como amortecer um pouco a vertigem desta órbita

e todo o entusiasmo destas mãos de universo

cuja carícia é um deslizar de estrelas?

 

Há uma casa que me espera

para uma festa de irmãos

há toda esta noite a negar que me esperam

e estes rostos de insónia

e o martelar opaco num muro de papel

e o arranhar persistente duma pena implacável

e a surpresa subornada pela rotina

e o muro destrutível destruindo as nossas vidas

e o marcar passo à frente deste muro

e a força que fazemos no silêncio para derrubar o muro

até quando? até quando?

 

Teoricamente livre para navegar entre estrelas

minha vida tem limites assassinos

Supliquei aos meus companheiros: Mas fuzilem-me!

Inventei um deus só para que me matasse

Muralhei-me de amor

e o amor desabrigou-me

Escrevi cartas a minha mãe desesperadas

colori mitos e distribuí-me em segredo

e ao fim e ao cabo

recomeçar

Mas estou cansado de recomeçar!

Quereria gritar: Dêem-me árvores para um novo recomeço!

Aproximem-me a natureza para que a cheire!

Desertem-me este quarto onde me perco!

Deixem-me livre por um momento em qualquer parte

para uma meditação mais natural e fecunda

que me afogue o sangue!

Recomeçar!

 

Mas originalmente com uma nova respiração

que me limpe o sangue deste polvo de detritos

que eu sinta os pulmões como duas velas pandas

e que eu diga em nome dos mortos e dos vivos

em nome do sofrimento e da felicidade

em nome dos animais e dos utensílios criadores

em nome de todas as vidas sacrificadas

em nome dos sonhos

em nome das colheitas  em nome das raízes

em nome dos países em ome das crianças

em nome da paz

que a vida vale a pena que ela é a nossa medida

que a vida é uma vitória que se constrói todos os dias

que o reino da bondade dos olhos dos poetas

vai começar na terra sobre o horror e a miséria

que o nosso coração se deve engrandecer

por ser tamanho de todas as esperanças

e tão claro com os olhos das crianças

e tão pequenino que uma delas possa brincar com ele

 

Mas o homenzinho diário recomeça

no seu giro de desencontros

A fadiga substituiu-lhe o coração

as cores da inércia giram-lhe nos olhos

Um quarto de aluguer

Como preservar este amor

ostentando-o na sombra?

Somos colegas forçados

Os mais simples são os melhores

Nos seus limites conservam a humanidade

Mas este sedento lúcido e implacável

familiar do absurdo que o envolve

com uma vida de relógio a funcionar

e um mapa da terra com rios verdadeiros

correndo-lhe na cabeça

como poderá suportar viver na contenção total

na recusa permanente a este absurdo vivo?

 

Ó boi da paciência que fazes tu aqui?

Quis tornar-te amável ser teu familiar

fabriquei projectos com teus cornos

lambi o teu focinho acariciei-te em vão

 

A tua marcha lenta enerva-me e satura-me

as constelações são mais rápidas nos céus

a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo

Lá fora os homens caminham realmente

Há tanta coisa que eu ignoro

e é tão irremediável este tempo perdido!

Ó boi da paciência sê meu amigo!

 

Poema de António Ramos Rosa (O Grito Claro, 1958)

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publicado às 16:29


#1627 -

por Carlos Pereira \foleirices, em 20.02.12

Fantoches feitos de pau e trapo,

pareceis mesmo gente viva.

Manejando-vos com os dedos,

três voltinhas dais,

e assim se passa o tempo.

 

Mas quando as mãos do homem

vos recolhem atrás do pano,

desvanece-se a ilusão.

Nós somos todos fantoches:

sonhamos que existimos.

 

 

Poema traduzido por António Ramos Rosa escrito por Hu-Han-Tsing (685-762) - China

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publicado às 22:50


#1211 - Lâmpadas com alguns insectos

por Carlos Pereira \foleirices, em 19.02.10



Para receberem a alegria de um raio puro

os homens seguiam a direcção do vento

e nas mãos obscuras erguiam as silenciosas colunas

que edificavam a terra


Era o azul no centro e povoado de astros

e na arca da noite os cavalos e as serpentes

atravessavam os espelhos e bebiam o esplendor

como um fruto inteiro de argila e fogo


Repousavam no horizonte entre um ribeiro e um bosque

e nas suas sombras agurdavam os tesouros das constelações

O seu ritmo natural era o ritmo do universo

e eram seres recém-nascidos navegando nas veias

de um corpo paradisíaco

 

poema de antónio ramos rosa - lâmpadas com alguns insectos - Edição: Pedra Formosa Edições, 1992

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publicado às 21:45


#1070 - O teu rosto

por Carlos Pereira \foleirices, em 05.12.09

Simulo uma fábula

para acariciar as folhas

que ainda não brotaram

Simulo um estábulo de odores espessos

para o conforto do fundo do ventre

para me situar entre as raízes e os astros

Como um insecto na palma do gérmen

e numa torre profunda

vou talhar o arco de um sorriso de água

entre duas vespas agudas do verão

Volto a esta página de argila

e à luz destas paredes fulvas

Subo à garganta cálida do tempo

como um abrigo onde pulsa o sol verde

Estou entre a penumbra e as veias das janelas

entre os astros domésticos

e no movimento de uma calma massa de água

o teu corpo impele a pedra frágil

do meu canto entre a fábula e o real

Poema de António Ramos Rosa, do livro "O Teu Rosto", edição Pedra Formosa, Março 1994

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publicado às 18:35


Génese

por Carlos Pereira \foleirices, em 09.04.09

 

Quando o sossego é só sossego  e a visão do mar espraia a nossa identidade

sentimo-nos cúmplices da terra na densidade azul

e respirando pertencemos à leve viração

de um ser anónimo vagamente feliz

que renova em nós os alvéolos do sangue

e dança na linfa com os seus élitros verdes

O peito levanta-se com os seus campos e regatos

e ergue-se até à cúpula das estrelas latentes

O ócio murmura nas esferas e cintila nos monótonos fulgores

e o sentido de tudo liberta-se de si mesmo

para ser a  liberdade de um presente inextinguível

Se se pode tocar o ardor na sua fuga tentamos projectá-lo em grãos incandescentes

para que a boca que os lê possa reencontrar o seu sabor primordial.

 

Poema de António Ramos Rosa do livro "Génese seguido de Constelações", Edição Roma Editora, Colecção Sopro dirigida por Casimiro de Brito, e posfácio de Pascal Fleury, 2005, 2007.

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publicado às 11:38


O Incerto Exacto

por Carlos Pereira \foleirices, em 12.11.08

Uma felicidade nos dedos

um fluir cálido o sol

captado no repouso sobre a mesa

e escrito aqui um sol tão rápido


Nada se separa sob os dedos

ignorantes da divisão do vidro

E se o pássaro fica

sem o canto

não o sabem os dedos


Eles deslizam sobre a superfície

na absoluta densidade indesvendável 

 

Poema extraído do livro Antologia poética, de António Ramos Rosa, Publicações D. Quixote, 2001

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publicado às 00:17


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