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um desenhador de peixes
ele não parava de desenhar peixes
em papéis
e eu disse:
Jack, o que é que se passa?
mas ele não respondia
e a mulher dele disse
não há meio de ele procurar emprego
é isso que se passa
e eu tenho de tomar conta
dos putos; não sei
como é que vamos
fazer esta merda.
ele não parava de desenhar peixes
em papéis
e nem bêbedo estava.
fui à rua e trouxe 2
garrafas de vinho
e a patroa dele
encheu os copos.
e o Jack bebeu o dele
depois praguejou: esta
esferográfica fica sempre
sem tinta
quando estou mesmo no ponto crucial,
no cerne, quando estou
finalmente a arder
na cera imbecil do fogo...
atirou a caneta
para uma saco de papel cheio de garrafas vazias,
latas de sardinha e
de feijão vazias, vestiu o casaco
e saiu.
para onde é que ele vai?
perguntei.
estou-me nas tintas
para onde ele vai,
disse a patroa dele.
depois levantou o vestido
e mostrou-me as pernas;
eram bastante boas, eu
sempre fui um gajo de pernas
mas dirigi-me ao armário
e vesti o casaco.
onde é que vais? perguntou ela.
vou procurar emprego,
disse-lhe,
há um anúncio no Times,
precisam de porteiros
no novo edifício Fleischman.
desci os degraus
e andei meio quarteirão para norte
até ao bar mais próximo.
O jack estava lá sentado.
Não sei, disse ele,
acho que me vou
matar.
não faz mal, disse eu,
isso vai acontecer
de qualquer modo.
ficámos ali sentados o resto da tarde
a beber
e por volta das 7 da tarde saímos,
ele com uma tipa de cabelo flamejante
e eu com uma manca
leitora de Henry James
que se ria de boca
à banda.
estavam 17 graus
e pouco restava
do mundo.
POEMA DE CHARLES BUKOWSKI RETIRADO DO LIVRO "OS CÃES LADRAM FACAS", EDIÇÃO ALFAGUARA DE NOVEMBRO DE 2018. ROSALINA MARSHALL TRADUZIU E VALÉRIO ROMÃO FEZ A SELECÇÃO, A ORGANIZAÇÃO E O PREFÁCIO
CONSELHO
tal como o vento corta, outra vez, desde o mar
e a terra é assolada por tumultos e desordem
tem cuidado com o sabre da escolha,
lembra-te
o que talvez fosse nobre
há 5 séculos
ou até mesmo 20 anos
é agora
a maior parte das vezes
um acto desperdiçado
a tua vida passa uma única vez
já a história tem oportunidade atrás de oportunidade
para provar a imbecilidade dos homens.
Tem cuidado, portanto, diria eu,
com qualquer
acto
ideal
ou acção
aparentemente nobre,
seja por este país ou por amor ou pela Arte,
não te deixes possuir pela proximidade do minuto
nem pela beleza ou pela política
que murcharão como flores cortadas;
amor, sim, mas não enquanto ardil do casamento,
e cuidado com comida má e trabalho excessivo;
terás de viver num país,
mas amar não é uma ordem
seja mulher seja nação;
leva o teu tempo; e bebe tanto quanto seja necessário
por forma a manter a continuidade,
porque a bebida é um modo de vida
através do qual o participante reclama
uma nova oportunidade na vida;
mais ainda, direi,
vive sozinho o máximo possível;
cria filhos se por acaso acontecer
mas tenta não ter de aguentar
criá-los; não te envolvas em questiúnculas
de mão ou voz
a não ser que o teu adversário atente contra a tua vida
ou contra a vida da tua alma; então,
mata, se necessário; e quando chegar a hora da morte
não sejas egoísta:
pensa como é económica a morte
e no lugar paraonde vais:
sem qualquer marca de vergonha ou de fracasso
ou necessidade de compaixão
como o vento corta desde o mar
e o tempo passa
erodindo os teus ossos numa paz suave.
POEMA DE CHARLES BUKOWSKI EXTRAÍDO DO LIVRO "OS CÃES LADRAM FACAS", EDIÇÃO ALFAGUARA, NOVEMBRO DE 2018