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Alexandre O'Neill - (1924-1986)
A PLUMA CAPRICHOSA
Estou onde não devia estar
Estou no grande medo instintivo da minha mãe
no medo zangado e prático de meu pai
estou em ti no teu religioso medo
nas tuas lágrimas queixas e suspiros
de mulher ajoelhada
Estou na horrível palavra «querido»
quando tu a dizes encostada a mim
enlaçando-me com os teus braços de renúncia e cobardia
com os teus olhos de súplica silenciosa
com os teus olhos de humildade canina
enlaçando-me
a mim
teu amante teu senhor e teu filho
Estou no murmúrio de desgosto da minha família
da minha família imóvel diante de mim
da minha família poderosa
da minha família de olhar duro
da minha família de olhar terno
da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos
pronta a saltar-me em cima e reduzir-me
a mais um da família
Estou onde não devia estar
Estou ainda estou no verbo fugitivo
no verso enigmático palaciano e «puro»
no tapete de sonho que vai partir prò infinito
na palavra que desmaia de inanição e medo
do medo de dizer o que devia dizer e que não diz
tão doente ou mais do que eu
Estou onde não devia estar
Nos olhos do construtor que vê a fortuna a crescer
na consciência do médico que esquece o doente no seio da morte
no advogado que defende os interesses mais cruéis
no professor que se diverte a torturar as crianças
no general que manda fuzilar os inocentes
no polícia que procura por todos os meios a verdade
Estou onde não devia estar
Estou no compêndio de história onde a mentira se organiza
para proclamar uma «verdade»
Sou uma das intrigas de corte
uma das mais sinistras ou galantes intrigas de corte
sou a batalha dos Vinte-de-Língua-de-Fora
destroçando os Vinte-Mil-de-Coração-aos-Pés
sou a célebre resposta do Cavaleiro Trovão
ao insolente emissário dum rei inimigo
sou o mar de pão transformado em mar de rosas
só por causa do génio dum marido
Também apareço nas colunas do jornal
do jornal de maior tiragem e circulação universal
Sou o rapaz educado simpático filho de boas famílias
que deseja conhecer senhora de alguns meios
p'ra fins matrimoniais
ou o cãozinho que a mesma senhora entre os homens muito maus perdeu
numa hora de grande movimento
o cãozinho que queria fazer chichi e que disse Madame por favor espere aí
o cãozinho que nunca mais apareceu
Também posso ser visto no jornal
apanhando dinheiro aos que procuram um emprego
ou chamando com urgência uma alma capitalista generosa
p'ra financiar a ideia que trago na cabeça
No jornal já fui estúpido e perigoso como o senador
que ameaça reduzir o homem
a um pobre farrapo vacilante
Já fui a mulher tão simpática dum conhecido político
promovendo chás de caridade tricôs de caridade
enquanto o marido prepara mais pobres mais miséria mais chás de caridade
com aquele sorriso que todos lhe conhecem
No jornal cantei na festa do embaixador
e todos gostaram muito
Ofereci vinte escudos a uma pobre mulher tuberculosa
e todos acharam bem
Roubei cinco mil contos ao país
e todos foram no final das contas muito compreensivos
No jornal fui uma espécie de poeta oficial
no jornal fui uma ponte de propaganda sobre um rio de turismo
no jornal fui a República de São Salvavidas discursando na O.N.U.
fui Mimi Travessuras declarando-se encantada por cantar em Lisboa
fui o capitão Westerling a fina-flor dos aventureiros
fui J.J. Gomes homenageaso pelo seu pessoal
fui Teresa a conhecida importadora de carícias
disfarçada sob um monte de chapéus
Estou onde não devia estar
Estou na paisagem onde a linha do horizonte é sempre a fronteira da nostalgia
e a solução um penacho de fumo
o meu coração fumegando na linha do horizonte
A todo este azul chamo cobarde
e a cobardia está em mim como em sua casa
está nos meus versos mesmo nos mais corajosos
nas imagens que fabrico à espera que a vida chegue e me liberte
nos grandes lemas sonoros que ponho no meu caminho
Estou onde não devia estar
E o destino passa por mim como uma pluma caprichosa
passa pelos olhos dum gato
como o avião passa no céu do camponês
como a cidade passa pelo convalescente
que sai pela primeira vez
Nos olhos da mulher que não perdi nem ganhei
nos olhos que durante um segundo me compreenderam e amaram
na sua ternura quase insuportável
o destino passa
No amigo que é lentamente puxado para o outro lado da razão
e um dia mergulha na sombra que trazia em si por resolver
o destino cumpre-se e passa
Na praia nocturna que as ondas visitam e deixam
como as imagens que sem cessar me assaltam e abandonam
na espuma que esmago contra a areia muito fria
na mulher que me acompanha e comigose perde na noite
nos soluços de luz verde que um fasrol nos envia
o destino detém-se e passa
Na inesperada hora de felicidade
vivida um pouco a medo
como os amantes quando percorrem as ruas desertas dum jardim
um pouco a medo
como a breve noite de amor em que um homem se encontra e refugia
o destino demora-se e passa
Estou onde não devia estar
Mas basta
basta
basta
Que o discurso termine
É tempo é madrugada
No dorso dos objectos que me cercam
na mão que me sustenta e eu sustento
no fio desesperado destes versos
é madrugada
As primeiras
vagas de luz
tomam de assalto
os redutos da noite
Na sua guarita
o militar
é um monte de sono
uma pálpebra que bate desesperada
um cigarro impossível de acender
uma espingarda tão absurda como o frio
o sono
a hora
a vida
É madrugada
é definitivamente madrugada
Contra o azul do céu
o azul operáriolevanta-se nas ruas
a cidade estremece já é dia
já é dia claro
De novo o «sim» e o «não»
o café em todas as gargantas
e o primeiro cigarro que começa a trabalhar.
POEMA DE ALEXANDRE O'NEILL IN POESIAS COMPLETAS & DISPERSOS, EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIN, MARÇO DE 2017
ALEXANDRE O'NEILL [1924-1986]
UM ADEUS PORTUGUÊS
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
POEMA DE ALEXANDRE O'NEILL in «NO REINO DA DINAMARCA» - 1958
Alexandre O'Neill
OS CEGOS
Ah, Madame! que la morale des aveugles
est différente de la nôtre!
DIDEROT - Lettre sur les aveugles
Durante os meses de inverno, podemos ver os cegos, sobre os telhados, acariciando os dedos - à procura duma mãe que não seja virgem.
O prazer torna-os redondos como ovos e o vapor de água vem flutuar sobre os seus bigodes sempre em sangue.
Às vezes soluçam e deixam escapar da boca pequenas coisas - o que não basta para interromper o jogo.
Quando chega a primavera, os cegos caem dos telhados e começam a andar pelas ruas à procura da moeda de perfil de luz.
Prosa escrita por Alexandre O'Neill in POESIAS COMPLETAS & DISPERSOS - ASSÍRIO & ALVIM 2017
POESIAS COMPLETAS & DISPERSOS de Alexandre O'Neill - Edição e posfácio de Maria Antónia Oliveira.
Livro publicado em Março de 2017 por Assírio & Alvim
Uma Lição de Poesia Uma Lição de Moral
A memória de Paul Éluard
Estudaste a bondade aprendeste a alegria
Iluminaste a noite com a estrela
E o desejo com a necessidade
Comunicativo bom inteligente
Soubeste sofrer sem destruir a vida
Sem chamar pela morte
Soubeste vencer o íntimo lazer
As absurdas manias que a solidão instala
No coração virado na cabeça perdida
Soubeste mostrar o rnais secreto amor
Numa alegria feroz perfeita pública
Capaz de provocar o ódio e a ternura
Em todas as frentes que por ti passavam
Contra-atacaste repelindo o mal
Com pesadas perdas para o inimigo
E na miséria que subia aos rostos
Puseste a nu a resistência a esperança
E um futuro sorriso
Enquanto velhas feridas se fechavam
Tua poesia abriu-se e hoje é comum
E transparente como os olhos das crianças
Hoje é o pão o sangue e o direito à esperança
À esperança que é «um boi a lavrar um campo»
E que é «um facho a lavrar o olhar»
Andaste triste mas não foste a tristeza
Sofreste muito mas não foste a dor
Amaste imenso e eras o amor
Cantaste a beleza proferiste a verdade
Encontraste não uma mas a razão de ser
Compreendeste a palavra felicidade
E numa extrema juventude e sob o peso
Precioso da simplicidade
Tudo disseste
Disseste o que devias dizer.
Alexandra de Pinho Alexandre o'Neill Há palavras que nos beijam Palavras nuas que beijas De repente coloridas (O nome de quem se ama Palavras que nos transportam In No Reino da Dinamarca
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
PARA WALT WHITMAN NOS TEMPOS DO MACCARTHYSMO
Já não te podem suportar, Walt Whitman.
Como os doentes que na doença se comprazem e não
[toleram que lhes demonstrem a saúde.
Como quem à luz incomparável do real se sente albino
e proclama a noite em pleno dia,
assim eles te rejeitam, ó patriarca, te tornam episódico,
porque não querem que tenhas ainda muito mais
[ consequências,
porque não podem, inconfundível como és, aproveitar-te
para aumentar a confusão.
As grandes pontes fraternais que lançaste, vão-nas
[demolindo.
O amor sem limites que te trouxe até nós,
o teu orgulho de uma humildade insuportável,
de uma humanidade formidável,
perante as grandes e pequenas coisas deste mundo,
tudo isso vão eles negando e rejeitando,
e o seu ideal será dizer, um dia,
que nunca exististe, que não foste
mais do que, como nos filmes, mera coincidência.
Ó Walt, no país que foi o teu já não há ruas
como os versos por onde caminhaste até nós,
até este «nós», ruas largas, mas de fraternidade,
ruas percorridas por uma simpatia, uma saúde, uma
[alegria
que só esperavam mais rostos p'ra se demonstrar...
Que eu viaje, respire, viva
— escrevo hoje como escrevi um dia —
no teu verso democrático, ó Walt Whitman!
Como as sequóias que cresceram através dos séculos
até nos nossos dias se elevarem
cm majestosas catedrais,
assim também não foi em vão que tantas vozes cresceram
até na tua, muito alto, verdejarem.
*
Não sei porquê, Walt, a teu respeito
me lembro duma garrafa
que no país que ainda é teu há anos enterraram.
Tinha filmes, livros, notícias completas
deste tempo que é e não é nosso.
garrafa lançada ao mar do tempo
p'ra que os futuros homens, descobrindo-a,
soubessem o que fomos...
Poema de Alexandre O'Neil, In Poemas com endereço
No gesto suspensivo de um sobreiro,
o enforcado
Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.
Dele sobra o cajado.
Poema de Alexandre O' Neill, Poesias Completas, Assírio & Alvim, Edição 605, 2000