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AMADEU BAPTISTA
ALBERTO MORAVIA: O PARAÍSO
Vi como a actriz levitou entre as sete paredes da sala
e soube imediatamente como isso era bom.
O céu de antracite dos últimos dias
foi um sinal do tempo nos meus olhos
que de uma árvore a outra projectou
um momento único de calor e vida.
A actriz era o primeiro êxtase
nos vários segmentos dos meus olhos,
silenciosa sequência de roldanas
onde a luz é um milagre e algo palpita
nas têmporas como uma recordação.
Falou da ausência, a actriz?
Fumava em Roma num vestidinho negro
tão frágil como uma pérola
e actuava sobre as palavras como se algo real
estivesse para acontecer à nossa frente.
Sentada no banco de madeira,
com os botões da camisa sensulmente abertos
e os lábios vermelhos que lembravam um Verão próximo
do passado
ela esculpia na terra
algo tão perturbador como o princípio do mundo.
Foi bom olhá-la nos olhos,
tomar a eloquência por uma evocação
onde o silêncio tem o poder de despertar no corpo
um ritmo alucinante de febre e de loucura.
Ela, a actriz, nada podia fazer,
embora invocasse a infância com todas as forças do espírito,
em nítidas sucessões de terríveis marés-vivas.
Sentei-me e aplaudi.
Ela era sobretudo o exercício das coisas que nos fazem aproximar da solidão dos homens,
a cidade cercava-a e entontecia-a
porque algo se lhe colava à pele, um enigma, uma ave, talvez,
essa memo a que perdemos o rastro entre Bari e La Spezia
quando os múltiplos sinais da representação nos intimidavam
a conferir à comunicação o estatuto do medo e do fascínio.
A actriz? Agora podes vê-la.
Entre os toldos amarelos e azuis e a areia ocre dessa praia
ela penteia meditativamente os cabelos de oiro,
embala a boneca de trapos,
canta sentada num trono onde cada um de nós já se sentou
um dia
para se sentir espectador de algo fascinante
que em silêncio responde à nossa solidão.
Escuta-a.
Ela chama um nome desconhecido num rumor incontornável,
o nome do homem que partiu,
persegue-o num único movimento,
a sombra do seu corpo alonga-se na ausência
e o arco dos seus braços transfigura-lhe o olhar,
é uma mulher que vem com o rosto iluminado pela escuridão
para regressar do outro lado da noite
com uma criança nos braços,
ela própria,
um peixe vermelho que cintila
como uma pedra na distância
que vai do inferno ao paraíso,
de Capri a Peruggia.
Não é um incêndio que ela tem na boca?
A actriz tem na boca um incêndio
que é tanto a ternura como a exaltação,
ela entregou-se ao grito pela incandescência pura,
é um sonho e exalta-se pela beatitude de um crime
nesse sangue espesso
que é um círculo fulvo noutra esfera do mundo,
um brilho que se amplia numa barra de vidro
onde o rosto reflecte mil acrobacias
que reencontra a pedra onde a limpidez preserva
a tensão dos rostos em cada expectativa.
E a actriz sorri ainda porque o poder da luz amplia nos lugares
formas tão indistintas como as que há no coração
e outras tão belas como as corças que correm na planície
e nós pensamos que nos pertencem com o mesmo vigor
da agilidade do salto que empreendem.
Chamaste? Viste como isto era bom?
E o sortilégio era esse,
a magia do mundo,
a passagem de um lugar para outro lugar
onde tudo era possível
e um tiro à queima-roupa sobre o nosso peito
continha em si a graça de nos devolver à vida.
POEMA DE AMADEU BAPTISTA