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SUBÚRBIOS
Subúrbios, cercanias, casas últimas da cidade.
A este aglomerado absurdo de tapumes, montes de lixo, casas, farrapos hirtos de campo, se refere este texto.
Não os arredores imensos de uma Londres: sórdidos, viciosos, mas em grande movimento fabril. Serão antes os de pequena capital de província, ocupados por gente pobre e indolente, gente de «meia tijela», não mais.
Tais subúrbios ostentam a complexidade anódina e expressiva do sótão. São como o quarto aonde vão parar os trastes velhos da cidade. Ali se acoitam as vítimas da traça, tudo o que já não serve.
Nesta estética absurda que tanto caracteriza o subúrbio, tudo fica de través, simbolizado peelo objecto que comparece ante o nosso passo: a lata vazia, o cão faminto, o rato esventrado, ou o bico da luz de gás, poeirento e torcido.
Toda a perspectiva psicológica e material - triste e hostil - é repartida para o último plano espiriual. A alma do subúrbio estrangula tudo o que possa ser vida, movimento. Na aguarela que imediatamente pintamos com a paleta dos nossos sentidos só empregamos uma cor: o cínzeo.
Todos os ruídos e rangidos que a bocarra da cidade muge se tornam ali obsessivos e enfiados na monotonia que esborrata a atmosfera do subúrbio. A alegria cai em farrapos dos beirais, só agitada pela brisa das vozes infantis; vozes de meninos que andam pelos monturos e aos quais nunca ninguém contará contos.
Fere-nos por vezes os olhos - que têm para o subúrbio o egoísta «Tenha paciência» das coisas derrotadas - o rótulo «Taberna», em letras degeneradas, doentes da espinha, e que, ali, perdem até a qualidade forte e vibrante que, como o vinho, têm em todo o lado. Colgam das varandas, como trapo a secar, os inúmeros crimes tantas vezes narrados ao longo das ruas pelo cego do quadro e do ponteiro (1).
Arrimados ao muro de algum corralejo vemos às vezes montes de terra casada com cem objectos indefinidos, inúteis - porque já cem mãos lhes foram retirando toda a vitalidade - e que soterram a nossa imaginação como numa fossa. Tais corralejos sofrem de nostalgia de balidos e no lombo dos seus alpendres ocres há jóias de verbenas, sujas e olvidadas.
Na observação subjectiva surge o entardecer iluminado pela lamparina de azeite vespertina, e então tudo se torna mais desgarradoramente inerte. O trapo enforcado no cabo eléctrico ou os gritos sem eco que atravessam o ar como morcegos fustigam-nos lugubremente a alma. Ao longe, o candeeiro macilento pisca o olho poente, e as sombras de farrapos juntam-se nos quícios, abrindo as suas mãos silenciosas, como numa súplica.
O bocejo interminável do subúrbio, os seus olhos cavados e inermes, são sempre o malefício tremebundo da cidade. Ainda que o dia dance de prazer nos telhados próximos, é logo amarrado ao cepo da tristeza perene do subúrbio, espirro de água suja sobre a alegria ruidosa da urbe. Estes bairros em letargo pertencem à zona do irremediável, do fatal. Sua emoção é emoção de árvore seca. Os que o habitam foram vítimas do mordisco raivoso que a alma do subúrbio gerou neles. Esta suburbiofobia só é curável com a injecção prematura de algumas bolsas de ouro.
Entre o cortejo das palavras, figura a de subúrbio, vestida de andrajos, coberta de sebo e com na cara o estigma do galfarro que dorme à porta das casas.
(1) - Narrador que ia de aldeia em aldeia contando históras negras que tinham emocionado a opinião pública, estando a narrativa apoiada em imagens pintadas num cartão. (N. doT.)
TEXTO DE LUIS BUÑUEL RETIRADO DO LIVRO «LUIS BUÑUEL - POEMAS», TRADUZIDO POR MÁRIO CESARINY, EDIÇÃO N.º 703, MARÇO DE 1977 DA EDITORA ARCÁDIA
Luis Buñuel
FONTE: INFOPÉDIA