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I
Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente
A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.
A esse sítio acorrem então, aflitissimos, o teu vago sorriso
e a vaga maneira como dizes os esses;
vêm de muito longe e chegam incompletamente
ao pequeno vulnerável sítio entre
toda a minha vida e toda a minha morte,
quando a minha última recordação atirou já com a porta
e tudo está acabado até a tua respiração
na cama ao meu lado,
e também tu estás morta,
duma forma que já não me importa.
Vamos então os dois outra vez
ao longo de certas ruas sombrias e de certos dias
e sorris e falas alto; está calor mas tens as mãos frias,
compramos coisas, visitamos
talvez algum último amigo
sem sabermos que eu já não estou vivo.
Poderia ter sido de outro modo?
Poderiam ter sido outras duas pessoas
vivendo a minha e a tua vida, morrendo a minha e a tua morte?
(Mesmo o armador, poderia ter sido outro?)
Aparentemente foi por pouco;
se fosse um pouco mais tarde ou um pouco mais cedo,
se eu não tivesse chegado a casa cansado,
se a louça não estivesse por lavar
e a janela da sala de jantar
não estivesse fechada, se o mundo não tivesse acabado,
nem tu tivesses ido ao supermercado,
e se eu não estivesse cheio de medo.
Agora estou voltado para cima,
para onde canras ainda há muito tempo.
Se calhar isto (alguma coisa) vai demorar mas já não me impaciento.
Voltamos, tu e eu, ao mesmo jardim desflorido
onde eu morro sozinho
e conversamos comigo
como com um desconhecido.
Que diremos agora um ao outro?
É tarde. Ainda há um momento
me apetecia conversar, agora estou outra vez tão cansado!
Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado,
como se fosse pelo lado de dentro?
II
Estou morto, deitado de lado.
Morte, Vida, Medo, Esperança:
já não estou para aí virado.
Onde vos guardarei agora, lembranças?
Talvez também eu seja uma lembrança diante
da lembrança de uma casa também morta,
e talvez ela me abra finalmente a porta
e as escadas brilhem e o corredor cante.
Dos meus olhos vê-se um jardim
ardendo em rosas espetado
(os teus olhos ardiam assim em mim:
como um palácio iluminado),
um jardim lento (tem muito temoi)
onde eu outra vez entro.
Se me voltasse para trás o que veria?
Ainda os teus olhos, ainda a alegria?
Agora que partiste para sempre
segurando-me inultimente a cabeça
talvez tudo te pareça
excessivamente evidente
e excessivamente irrisório:
a morte, a vida, os dias sem lugar,
a louça do almoço por lavar,
as meias a escorrer no lavatório.
Mas não nos julgues com severidade,
estava a fazer-se tarde
e já ninguém vinha, o melhor
era irmo-nos deitar.
Agora, se o telefone tocar,
diz que não estou.
(Sem ironia, o meu coração teme a ironia
quase tanto quanto a perfeição;
e sem melancolia:
estávamos a precisar de solidão,
de silêncio, de geometria,
e as nossas lágrimas de uma grande razão).
Agora que não estou
(nem tu sabes quanto)
tudo o que passou
sou eu regressando.
Os meus passos, não
os ouves nas escadas,
subindo as escadas
como os de um ladrão?
IV
Farewell happy fields
where joy for ever dwells hail horrors
Milton, Paradise Lost
(Adeus campos felizes; remorsos: adeus.)
Vamos os dois ao longo dos dias felizes
conversando e ouço o que dizes
como se quemfalasse fosse eu;
(adeus palavras, sonhos de beleza,
montanhas desoladas da infância
donde tudo se via: a alegria
e a cegueira do que não se via;)
vês agora o que eu vejo, a minha sombra
caminhando a teu lado num tempo sem sentido,
quando eu ainda não tinha morrido?
(Adeus perfeição, adeus imperfeição.)
Às vezes pergunto-me se valeu a pena,
se não haveria outra solução,
se não poderia, por exemplo, ter embarcado
num desses barcos que aparecem sempre
milagrosamente na última estrofe,
e se tu não poderias ter ficado
no cais, ou em alguma metáfora mais
imperiosa, partindo também donde te via,
e se assim não teria tudo sido
menos improvável e menos cansativo.
Infelizmente não havia barco onde
coubéssemos eu e as minhas lembranças;
tudo o que havia, tudo o que realmente havia,
a ti o tinha dado
e, dando-to, tinha-to roubado,
e a minha própria morte pairava
entre ti e mim indecisamente,
como uma ideia, não como algo presente.
Agora volto a sítios vastos
uma última vez. Com hesitantes passos
subo as escadas e bato à porta
e tu abres-me a porta mesmo estando morta
e mesmo eu estando morto, como se fôssemos
visitados pelo mesmo sonho.
(FAREWELL HAPPY FIELDS, 1992)