Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]
VASCO GRAÇA MOURA [1942-2014]
O ESPELHO
escrevo, escreverei para espalhar a realidade,
suas sombras rasteiras, suas nuvens altas,
a luz mais líquida de algum olhar, as difíceis ausências
e as plantas lascivas trepando entre os silêncios,
entre lisas colunas, níveas tetas, roxos lírios
e citações assim, da minha juventude,
e os ritmos do vento e a erosão dos seixos,
e os fios de algumas ariadnes, solícitas e lúbricas
na sua timidez, nos estranhos percursos
em que há devorações e o poema se torna
uma triste película a envolver a alma
para lhe conservar as impurezas do desejo.
talvez por isso a escrita não passe de um concheiro
de camadas calcárias que o tempo estratifica,
mas então o real que ela espelhou não mente
embora mais terrível se torne desvendá-lo,
digo eu do meu amor, do que trarei comigo
até me calcinar ou da violência dos corpos
por noites esquecidas feitas de fogo e orgasmo
e entrecortadas palavras e roucos monossílabos,
digo eu da superfície de um lago de sossego
em que a lua mergulha e uma brisa mais tensa
ressoa nos pinheiros, percorre a habitação
e traz em seus harpejos o eco de um soluço.
tornou-se este lugar a pedra da violência
onde se calam a voz, a luz, so sons da terra,
e tudo se entrechoca e tudo se fragmenta
e as quadrigas do tempo não poderão deter-se
e então é que eu escrevo desde esta realidade
esperando da escrita que pelo menos sirva
para espelhá-la em suas nuvens altas
e nas sombras que crescem até ao teu olhar.
POEMA DE VASCO GRAÇA MOURA RETIRADO DO LIVRO "O CADERNO DA CASA DAS NUVENS", EDIÇÃO N.º 1266 EDIÇÕES AFRONTAMENTO MARÇO DE 2010