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O AMBIENTE EM S. VICENTE
I
Dia.
Calma demais na baía azul
contra a muralha adiante da outra ilha.
Luz sem sombra
e um vazio que perfila
mortos os corpos deitados
na ideia
e no cansaço
do movimento no cais e nas casas.
Ainda há vida
no velho tamarindeiro
hirto sob a poeira do vento
que sibila mas não sente
a nossa melancolia
dissolvida no ar quente:
o morno desassossego
que se respira em S. Vicente.
II
Noite.
Os montes sobem à lua
e descem vertiginosos na sombra.
O silêncio é mineral,
mesmo o das ondas na praia.
Passos acesos por um Petromax
deambulam, estacam.
Ouve-se uma voz: «entra já!»
O silêncio animou-se, falou fundo
como se anima e cala em S. Vicente.
III
Quando as nuvens pesam
e o céu e o sol
escurecem
toda a gente pensa:
acaso, o milagre?!
Mas não é milagre.
A chuva cai mesmo
quando acaso cai.
As ribeiras enchem.
A fome enverdece.
E a casa so pobre
escorrega na lama.
IV
E a pracinha ao fim da tarde
animada, sempre em festa
festinha lânguida prece
nos olhos da mulatinha
e de outras mais meninas
que passam, repassam, passam
os mesmos diminutivos
aos rapazes bailarinos
ou aos que ouvem a banda
encostados à parede.
Até que chega a velhinha
com o seu cão, o seu bastão
e começa, a levitar,
a rodar,
a dizer: eu sou rainha
nos bailes de S. Vicente.
E a festa acaba em vidinha
em que os termos mais soezes
se confundem com os sublimes.
E só me resta gritar:
tu és minha, tu és minha
porque rimas com rainha,
com pracinha, com vidinha
e muita coisinha fina
e mais um raio de gente!
Poema de Ruy Cinatti in "Obra Poética, Volume I", páginas 411, 412, 413, 414 - Edição Assírio & Alvim, Outubro de 2016.