Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
ENIS BATUR
PHTONOS
"Diz-se que na Grécia antiga alguns deuses não tinham corpo.
O que os mantinha não era uma figura, mas um som, um sinal."
Puxou o seu cabelo de prata para trás das orelhas,
fazendo uma pausa entre as frases:
"o que sempre me faz recordar o Requiem de Mozart:
se uma mão ajudar, a morte e a vida podem sobreviver
no mesmo vaso de plantas. Se uma alimentar a outra,
qual é esta, pergunto-me? Algumas perguntas a que não podemos responder
infiltram-se pelos anos, fazem poça na nossa vida."
Distracção. Invocando uma manhã chuvosa de Salzburgo, talvez
a memória lhe esteja sobrecarregada por imagens do hospital
para onde fora levado, a seguir à noite em que começou
o último andamento do seu concerto para violino.
"Por detrás do coro esconde-se o próprio medo, solitário,
inultrapassável: escolher para que lado se virar num cruzamento
parece-me ser a mais glacial das decisões
- sorri com pesar por um momento - talvez seja por isso
que nunca consegui passar o portal que alcancei."
Semente dura, solo fértil - se regados separadamente,
também se alimentariam um ao outro: raízes misturam-se, num enredamento impossível,
tece-se um emaranhado pela sobrevivência lentamente partilhada.
Mas se é mesmo verdade que alguns deuses vivem sem corpo,
então o som phi faz assentar uma mancha escura na sala:
O vaso racha-se, o solo seca, tantas mortes
podem elevar o seu pendão na nossa vida enquanto vivemos.
Poema de Enis Batur, in O Divã Cinzento, 1990