Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]
CIDADE VELHA - CABO VERDE I
Manuel Maria de Moura e sua mulher Josefa Alvarenga
à mercê das sevícias que lhes excretam a campa
lado a lado progridem o húmus.
A igreja de lava amarelece
e conserva apenas dois portais,
as pombas não pousaram nos lambris
no fluxo da tarde a caminho da noite,
uma cabra sustida na janela,
entre a pedra e a pedra,
reflecte o mar numa pupila.
Sobe-se ao fortim
e a estrada como fita enrola-se à montanha.
Antigos portugueses construíram-no
guiando pela mão os seus escravos,
Cabo-verdes ariscos debaixo do chicote
nivelaram o monte
e mantiveram
ritmo desigual.
Os guardas a cavalo
certificavam exacta proporção
e o forte ressurgia das matéria porosa,
coralínea
perfusa de bolhas minerais.
É baixo
e a nascente envolvem-no arestas.
Há nele precisão
rasgado no metal à força de buril
à custa de cinzel
liberta muralha onde fenece a lógica.
A meio fica a cisterna
memória da nascente ainda nos refresca.
No chão entre conchas
apanho um fragmento,
detecto um azulejo
azul magoando aquela superfície.
Onde perdeu a casa
na indecisa determinação
que Cabo Verde brande como lança de penas?
Nas alabardas os mapas de ferrugem
apontam à penúria as bocas sem mordaça,
o escudo português
inciso a fogo
um número sobre pele
começa a desfazer-se,
a esvair-se como o sangue sai do suicida
e o submete à própria crueldade.
Manuel Maria de Moura
deixou na pedra tumular
um voto de imprudência
«Até ao fim dos séculos não poderá abrir-se
o que ficou selado.»
Quando ao cair da noite via a lua roçar
contra o mar sua branda penugem
não suspeitou esgarçasse
a estável divisão
e o império, desfeito como um cirro,
liquefizesse abandonando os mortos.
Manuel Maria de Moura
ficaste solitário
acompanha-te o pelourinho branco,
intacto,
cornos de impala os ferros.
Aqui permaneceste
sujeito à supressão, pouco te resta,
apenas uma pedra inchada de certezas.
Poema de Fátima Maldonado
________________________________________________________________________________________
Fátima Maldonado (Santo Amaro, Sousel, 1941). Ex-jornalista. Antiga crítica literária do jornal Expresso. Fez a sua estreia como poeta em 1980 com Cidades Indefesas. Publicou ainda: Os Presságios (1983), Selo Selvagem (1985), A urna no Deserto (1989), Caça e Persuasões (com Paula Rego, 1991), Cadeias de Transmissão (1999) e Vida Extenuada (2007).