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Entrevista da responsabilidade de João Céu e Silva - Jornal Diário de Notícias

 

O historiador britânico Timothy Garton Ash critica os algoritmos pouco éticos das super poderosas Google, Facebook, Amazon e Apple na manipulação da verdade dos acontecimentos mundiais.

O historiador britânico e analista Timothy Garton Ash acaba de publicar em Portugal a sua mais recente investigação: A liberdade de expressão - Dez princípios para um mundo interligado. Um livro em que continua o debate sobre a dificuldade de o cidadão se emancipar de algoritmos pouco éticos da Google, Facebook, Amazon ou Apple quando quer formar uma opinião isenta sobre os acontecimentos mundiais. Um debate que já mantém num site em que a língua portuguesa é uma das treze usadas

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Resume a atualidade marcada pela Internet logo à primeira frase do livro: "Agora somos todos vizinhos." É uma bênção ou uma maldição?

As duas. A Internet foi um tremendo ganho para a liberdade de expressão e de comunicação em todo o mundo e um momento nunca antes verificado na História do Homem. Mas é preciso ponderar que poder comunicar-se através dos smarthphones que estão no bolso de cada um é também um perigo pois convive-se com ameaças de morte, assédio e discursos alucinados. Como escrevo no livro, a Internet é o maior esgoto da história mundial, daí que a questão fundamental que quis analisar seja a de como maximizar a oportunidade e de minimizar os riscos.

 

Existem três mil milhões de internautas. O resto é diferente ou nem conta?

Vivemos num mundo que já não aprecia de forma efetiva a liberdade de expressão se não tiver acesso à Internet. Os restantes serão diferentes, como aconteceu com as pessoas que não tiveram acesso ao que foi impresso após a revolução de Gutenberg.

O mundo atual não está a viver uma espécie de guerra fria ao existir uma fação com e outra sem Internet?

Não creio que seja comparável à guerra fria no verdadeiro sentido da expressão, porque a luta global é atualmente pelo poder da palavra e tem lugar num mundo em que centenas de milhares de pessoas ficam todos os dias interligadas online. Verifica-se, sem dúvida, uma guerra de ideias e pelo controlo entre a Europa e os Estados Unidos por um lado e a China pelo outro - um país que apresenta um modelo diferente no controle da Internet ao usar o maior aparelho de censura já desenvolvido.

A Grande Muralha da firewall chinesa irá cair um dia?

O Muro de Berlim caiu! A grande firewall chinesa irá cair. Em 2000, Bill Clinton disse que tentar controlar a Internet na China era como atirar gelatina contra uma parede. Ao que o Partido Comunista chinês respondeu apenas: "Observem-nos." E até agora tem conseguido prender a gelatina na parede e controlar a liberdade na Internet. Creio, no entanto, que a maratona está no princípio e a vontade de milhões de chineses mais educados e interligados irá alterar o sistema chinês. Levará décadas, mas assistiremos ao momento dramático da queda da grande firewall, tal como vimos a do Muro de Berlim.

A manutenção de proibições no ciberespaço é uma ameaça noutros países?

A ameaça não vem só da China, basta recordarmos as revelações de Edward Snowden. Países como o Brasil, a Índia e a África do Sul serão democracias muito atraídas pelo modelo de controle de informação que a China promove.

A espionagem mundial que Snowden revelou pode coexistir com a Internet?

O que me preocupa no livro é com o facto de estarmos agora a lidar com super poderes privados: Google, Facebook, Amazon ou Apple. Que fazem fortunas através de serviços gratuitos enquanto recolhem uma quantidade impressionante de informações sobre os utilizadores e as vendem a anunciantes. É uma nova espécie de vigilância! O que acontece quando as agências de segurança aparecem unidas a esses superpoderes privados faz com que aquilo que ambas as partes sabem sobre o cidadão seja em muito além do que, por exemplo, a polícia secreta Stasi extraía com a sua máquina enorme. Considero isso um grande perigo para a liberdade de expressão, que está diretamente ligado à privacidade. Ou seja, a Internet cria tanto oportunidades gigantescas como grandes novos perigos.

Quando acusa os superpoderes privados não ignora quanto alteram a informação prestada por via do algoritmo. É possível evitar essa manipulação?

Ainda estamos apenas a abrir os olhos para essa situação muito perigosa, a do desafio ético do algoritmo. O exemplo clássico é o noticiário fornecido pelo Facebook, por onde cada vez mais jovens têm acesso ao que acontece no mundo. É aí que o algoritmo ganha muita importância, pois presta-se a influenciar fortemente - como se fosse uma câmara de eco - o que interessa a uma comunidade de amigos e o que se torna um perigo para a democracia.

O algoritmo também pairou sobre as recentes eleições norte-americanas?

É muito curioso que entre os apoiantes de Trump e de Hillary estivesse bem presente essa câmara de eco, afinal não falavam uns com os outros apesar de estarem a cinco metros de distância. Por isso, essa responsabilidade ética deve ser tida muito em conta para a qualidade da democracia. Acredito que deva existir regulação em assuntos sobre a privacidade, pedofilia ou pornografia, mas também é fundamental exigir o compromisso por parte das grandes empresas americanas para com esta questão ética, pois assim teremos mais facilidade em reajustar os seus algoritmos e serem mais transparentes.

Defende regras para a liberdade de expressão na Internet. Será possível?

Eu não sugiro regras mas sim princípios, o que é muito diferente. Porque são importantes para as sociedades civilizadas e permitem alguma harmonia no convívio. Por exemplo, o de não se aceitar a intimidação violenta ou violação de privacidade. Ou seja, nós os cidadãos da Internet, necessitamos de ver esclarecida o que é a rede e temos de pressionar os governos, bem como os super poderes privados e organizações internacionais, para se reunirem em torno de certos princípios. É o que quero, não regras como as da polícia.

Pode afirmar-se que a Internet tornou o mundo menos democrático?

Uma pergunta simples para uma resposta complexa... Primeiro de tudo, temos observado no último meio século uma série de novas democracias, posso mesmo dizer que houve uma onda de democratização que percorreu o mundo - como a Revolução dos Cravos em Portugal. Segundo, estamos agora a experimentar um onda em sentido contrário, uma reação contra o aumento de liberdade e de liberalização da política e da sociedade e às novas possibilidades que a Internet ofereceu. O que Putin ou Erdogan estão a protagonizar é essa contestação às liberdades. Resta ver como é a resposta das pessoas.

Diz que a liberdade de expressão deve ser ensinada. Não embarcaremos num mundo como o de 1984 de Orwell?

Há uma citação muito importante de um grande filósofo, Michel Foucault, onde diz que a liberdade de expressão tal como a navegação têm de ser aprendidas É uma imagem perfeita, porque temos de o fazer nos mares tempestuosos da Internet. Acrescentaria que nunca aprenderemos se não existir a possibilidade de pôr o barco a navegar. Aprender significa que, como cidadãos maduros e autónomos, tal como a imprensa e as universidades, devemos ter como objetivo saber que em democracia também se pode conviver com os discursos de ódio. É o que chamo de civilidade na navegação no mar alto. Penso que deve e pode ser ensinado até nas escolas algo mais específico: a literacia da Internet e da comunicação social. Os jovens são invadidos pela informação nos smarthphones e têm de aprender a escrutinar entre o verdadeiro e o falso, o valioso e o lixo.

O que se viu nas eleições norte-americanas foi que o candidato Trump mentia, as pessoas acreditavam e a verdade desaparecia do debate. Como evitar?

Não penso que os jornais possam revelar a verdade. O New York Times e o Washington Post, entre muitos outros jornais mundiais, serão de confiança porque confirmam as fontes e têm boas práticas do jornalismo. Mas, o problema é outro, o de não serem capazes de entrar nas câmaras de eco da Internet. Dou um pequeno exemplo: Trump disse repetidamente que Barack Obama não tinha nascido nos EUA, mas o que ele realmente afirmou era que muitas pessoas "sentiam" que isso era verdade. Não que ele, Trump, pensasse assim. Como muita gente tinha essa desconfiança, a comunicação social não conseguiu esclarecer essas mentiras ou meias verdades devido à sua constante repetição. É uma das leis da propaganda criar uma solidariedade na indignação entre os que ouvem as falsidades.

Nesta luta contra uma tecnologia que não é neutral a Europa tem um lugar?

Sim, e um lugar muito importante, porque é um dos grandes do mundo e possui um imenso poder de negociação. Considero mesmo que a União Europeia é uma grande força na luta contra os super poderes privados que as empresas dos Estados Unidos impõem aos cidadãos que estão interligados.

Acha que os utilizadores da Internet estão interessados no debate sobre liberdade de expressão ou é elitista?

A liberdade de expressão está debaixo de ataque em todo o planeta e os países aonde tenho ido confirmam que a situação regrediu tanto em democracias como a da Inglaterra, França e Estados Unidos como na China, Rússia e Índia. Mas não diria que é um valor apenas das elites liberais porque em todos estes países existem jovem cultos e viajados que conhecem a liberdade e defendem estes ideais.

Pode dar um exemplo?

Há duas semanas estive na Turquia e comprovei-o junto de jovens estudantes que estavam na linha da frente desta luta. Se tivesse alguma dúvida sobre o que faço, essas conversas chamar-me iam para o caminho certo. Compare-se com os anos 70 e 80, quando os dissidentes comunistas era uma pequena minoria contra uma massa gigantesca e receosa nos seus países, mas quando chegou a altura, em 1989, foi como se tivesse havido uma reação química e todos quiseram a mudança. Acredito que esta dinâmica ainda é possível hoje, por isso são importantes todos os que defendem a liberdade de expressão.

Quando se vê Trump proibir a comunicação social na Casa Branca estamos a viver "o" momento crítico?

É verdadeiramente chocante o que acontece no país da imprensa livre, com uma Primeira Emenda e, provavelmente, com a mais avançada Constituição no que respeita à defesa da liberdade de expressão. Ver jornalistas serem excluídos de conferências de imprensa não é só mau para os EUA mas um péssimo exemplo, já que leva outros governos a questionar se não podem seguir o exemplo de Trump. Creio, contudo, que a imprensa americana e as universidades estão a dar uma boa resposta à situação.

Um bom orador como Trump e com os seus tweets que abalam o mundo irá alterar a sua posição atual?

Veremos a força da resposta do sistema americano, mas penso que devemos ser honestos e estarmos conscientes que com Trump estamos em águas nunca navegadas. Na Europa, deve ter-se em conta de forma muito clara este novo campeonato e dar resposta à notícias falsas da pós-verdade. Do meu ponto de vista, isso não está a acontecer de forma correta nem vai à essência do problema, pois o que vemos é Trump ter uma narrativa emocional e um apelo nacionalista claros que vai até ao coração de muitas faixas de eleitores desiludidos. Ora, também na Europa os temos e muitos, portanto essa narrativa é a maior ameaça na Europa visto que a sua população não está interessada nos factos nem quer ouvir a linguagem tecnocrática da União Europeia, mas sim o que lhes repara o coração e os torna de novo fortes e orgulhosos. Esta é a natureza do problema, que enche as câmaras de ecos que a Internet potencia ao máximo. Daí que a defesa da liberdade de expressão esteja numa época em que precisa do contributo da comunicação social.

Não é um setor onde se observa uma grande ausência de pluralismo?

Essa é outra ironia e mais uma vez vivemos tempos perigosos. A Internet possibilitou inúmeras plataformas de liberdade de expressão mas o que daí resulta é uma fragmentação e muitas narrativas emocionais que captam muitas pessoas enquanto se verificou a quebra do modelo do jornalismo tradicional. Ou seja, os jornais estão a lutar pela sobrevivência, e de qualquer maneira, para prenderem os seus leitores online e aumentarem as receitas publicitárias. Estes dois efeitos causaram uma erosão na esfera pública, portanto a tarefa em democracia é ajudar a comunicação social e restabelecer o entendimento de que contar uma história com factos verdadeiros é importante. Tal como ser capaz de levar a sua versão até às câmaras de eco da Internet para que as pessoas prestem atenção. Esse é o grande desafio do atual jornalismo.

Ajudar a comunicação social a todo o custo não é brincar a "Deus"?

Creio que em democracia é fundamental apoiar o serviço público dos media, do qual a democracia precisa, e criar um lugar em que todas as vozes importantes e pontos de vista políticos diferentes sejam ouvidos. Todos os grandes jornais do mundo estão a enfrentar essa realidade terrível.

 

 

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publicado às 17:48


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