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MÚSICA
A música vinha duma mansidão de consciência
era como que uma cadeira sentada sem
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo
nada fazia prever que o vento fosse de azul para cima
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa
nós não movimentamos o espaço mas a vida erege a cifra
constrói por dentro um vocábulo sem se saber
como o que será
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.
Poema de António Gancho in "Ar da Manhã", edição Assírio & Alvim, 2022.
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Poeta e ficionista. Nascido no início da década de 40, a poesia de António Gancho permaneceu inédita até 1985, data em que Herberto Helder reuniu, na sua antologia Edoi Lelia Doura, onze poemas do autor até então completamente desconhecido. As poucas informações biográficas disponíveis sobre António Gancho encontram-se aí expostas, dando a perceber a razão da escassez de publicação da obra deste poeta: «Com pouco mais de 20 anos foi internado numa clínica psiquiátrica, tendo vivido desde então em estabelecimentos deste género.» Sabe-se hoje que António Gancho viveu no estabelecimento psiquiátrico de Telhal (arredores de Lisboa) desde 1967 até à sua morte a 2 de Janeiro de 2006. Retirado da convivência editorial devido ao seu internamento, foi através do contacto com alguns amigos (de entre os quais se destacam Álvaro Lapa, António Palolo e Mário Cesariny, com os quais António Gancho tinha primeiramente contactado aquando da sua frequência do Café Gelo, ligado ao grupo dos surrealistas) que a sua produção chegou às mãos do editor. Assim, só em 1995 foi possível reunir, no volume intitulado O Ar da Manhã, toda a sua produção poética, datada de entre 1960 e 1985. Dividido em três conjuntos autónomos de poemas («Gaio do Espírito», 1985/86, «Poesia Prometida», 1985, e «Poemas Digitais», 1989), o livro em que se reúne a poesia de António Grango evidencia alguma heterogeneidade de temas e de formas poéticas, não sendo fácil a sua síntese. Assim, a par de poemas em que se explora ludicamente a materialidade sonora da linguagem como, por exemplo, nos versos «Route / Rota / Caminho puro e são / Chanção / Coração / Sahara / Uazara / Oasara / Oasimara»), com evidentes ressonâncias surrealistas, existem também alguns poemas, escritos na língua original dos autores homenageados, que se constituem como tributos a, entre outros, François Villon e Oscar Wilde, por via dos quais se estabelece uma interessante intertextualidade com os autores citados. Alguns dos mais interessantes poemas de António Gancho são aqueles em que está presente uma certa auto-reflexividade sobre os princípios de criação poética e que dão a ler os alicerçes da sua prática poética: «Nasce o sol e nasce o poema / e com esta simultaneidade / o que o poeta significa é que a sua arte é luz». Concebida como um processo de simultânea integração e totalização do homem na natureza, a poesia de António Gancho poderia ser sintetizada nestes versos seus, onde se afirma que «A poesia nasce e faz-se aqui neste fazer-se poesia. / […] A poesia assim maravilhosamente constituída / […] faz do homem o ser absoluto por natureza», sobretudo porque esta se funda num princípio de transmutação de todas as coisas: «A poesia assim é uma maravilhosa alquimia da vida».
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Como querer viver sem estar ferido,
meu amor? O falcão e a rola
desprendem-se da mesma nuvem,
de um mesmo sono sem cuidados.
Como estar vivo e não me engastar
No medo relativo? Heitor
é o estado que acrescentei ao nome,
a telha que faltava ao céu azul,
as tuas três sílabas de argila
com que a água escora o vento
e o hálito aclara a alusão:
presença de si mesmo desvendada
Poema de António Cabrita in "Tristia," Porto Eitora, 2021.
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PORTO EDITORA
ROMANCE DE POMPEIA
Ninguém nos vem em socorro
Ninguém nos liberta os braços
Há dois milénios que somos
os amantes soterrados
Nem o mais ínfimo agouro
na manhã daquela tarde
Mas era o último encontro
sem que ninguém o sonhasse
E soubemos ir tão longe
tão enlaçados ficámos
que em tudo vibrava o sboço
de uma já eternidade
Mergulhados neste sono
há dois milénios ou quase
é ainda o dia de hoje
esse ontem tão recuado
Ou foi sonho o dia de ontem
e desde então acordados
nem cremos que à nossa roda
existisse uma cidade
que lá fora houvesse um Foro
lojas casas balneários
Apenas o teu pescoço
Apenas as tuas pálpebras
Apenas o antegosto
de sabê-las deflagradas
Sentimos súbito um sopro
mais escaldante Julgámos
que o ar se tornara louco
do calor dos nossos lábios
que ia arder o mundo todo
com o fogo que lhe dávamos
Só depois vimos que o fogo
de encontro a nós avançava
líquido espesso de rojo
como um imenso lagarto
putrefacto e cujo dorso
cada vez mais coruscava
E tanto crescia em torno
da casa onde stávamos
e tanto subia ao topo
de paredes e telhado
e tanto o ardente bojo
se ia tornando compacto
que de súbito esse forno
de todo nos apertava
Leio terror no teu rosto
pânico em tuas spáduas
pavor em todo o teu corpo
que era hápouco o de uma galga
o de uma galga no ponto
mais elevado do orgasmo
E nesse ponto de há pouco
eternizados ficámos
Somos assim um do outro
há dois milénios ou quase
saboreando o tesouro
da eternidade do auge
Ao profundíssimo poço
até hoje inviolado
que no chão se abriu e onde
vivos ainda tombámos
chegam-nos vagos rumores
do que por cima se passa
todo o sonho todo o logro
que por cima tem passado
Cascos agudos de donos
e pés desnudos de escravos
cupidez de demagogos
estupidez de soldados
os que bramam contra o lodo
para mais lodo criarem
os que rastejam no tojo
até se julgarem águias
os que ao céu o fogo roubam
mas em fumo se desfazem
utopias de alguns tontos
visões de alguns visionários
que se quebraram de encontro
ao gelo dos homens práticos
de cujos hábeis engodos
nos poderiam ter salvo
E também a luz a força
de corpos jovens e ágeis
corças panteras e potras
mais belas quanto selvagens
há lei do que há-de ser podre
todavia condenadas
Antes o fim que nos coube
Se é que fim pode chamar-se
a este abraço em que somos
um só astro uma só státua
uma só chama um só tronco
por toda a eternidade
mais livres porque um do outro
um ao outro acorrentados
Ninguém nos venha em socorro
Ninguém nos deslace os braços
POEMA DE DAVID MOURÃO-FERREIRA, in "OBRA POÉTICA" [1948-1995], EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, NOVEMBRO 2019