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UMA BREVE PAUSA
Os olhos precisam de uma pausa
para descansar o olhar
adormecer o olhar
nada ver
mesmo que estejam abertos
nada ver, nada ver.
Os olhos podem suspirar
apenas
quando as noites transpirarem melancolias
as estrelas iluminarem os cabelos das deusas gregas e
as gotas de orvalho se transformarem em pedras preciosas
quando tocam os colos de anónimas mulheres.
Ruy Cinatti
POEMA DE AMOR
Os segredos de amor têm profundezas difíceis de alcançar,
tal como a chuva que hoje cai e nos molha na calçada a face,
nós olhando triste uma saudade imensa
num corpo de mulher metamorfoseada.
Sou demasiado são para me esquecer
do tempo apaixonado que vivi nos teus braços
e bebo no teu um coração meu
adormecido no mar do meu cansaço
ou no rio das minhas secas lágrimas.
Tardará muito, se é que as horas contam,
ver-te, de novo, perto de mim, longe,
mas eu espero, sou paciente e, no meu canhenho, aponto,
um dia a menos, o da tua chegada.
E assim me fico, rente ao horizonte,
abrigado da chuva numa cabine telefónica,
e ligo para ti - que número? - ninguém responde
do oceano que avança e retrai colinas,
o vulto de um navio, tu na amurada
acenando um lenço, ó minha pomba branca!...
Como se tempestade hovesse e um naufrágio de chuva
- as vidraças escorrem, as árvores liquefazem-se... -
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, a minha boca neles
carregada de ilhas, de nocturnos perfumes
que ateiam lumes, ó minha idolatrada,
na minh'alma inquieta um outro bater d'asas
ou num jarrdim um leito de flores!...
Poema de Ruy Cinatti escrito em Junho de 1977 in "Obra Poética - Volume I" , edição Assírio & Alvim, Outubro de 2016
A escritora portuguesa Maria Velho da Costa, Prémio Camões em 2002, morreu hoje, aos 81 anos.
Revolução e Mulheres
Elas fizeram greves de braços caídos.
Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta.
Elas gritaram à vizinha que era fascista.
Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas.
Elas vieram para a rua de encarnado.
Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água.
Elas gritaram muito.
Elas encheram as ruas de cravos.
Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes.
Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua.
Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo.
Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas.
Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra.
Elas choraram de verem o pai a guerrear com o filho.
Elas tiveram medo e foram e não foram.
Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas.
Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa.
Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões.
Elas levantaram o braço nas grandes assembleias.
Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos.
Elas disseram à mãe, segure-me aí os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é.
Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada.
Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão.
Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens.
Elas iam e não sabiam para onde, mas que iam.
Elas acendem o lume.
Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado.
São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
Maria Velho da Costa
SUBÚRBIOS
Subúrbios, cercanias, casas últimas da cidade.
A este aglomerado absurdo de tapumes, montes de lixo, casas, farrapos hirtos de campo, se refere este texto.
Não os arredores imensos de uma Londres: sórdidos, viciosos, mas em grande movimento fabril. Serão antes os de pequena capital de província, ocupados por gente pobre e indolente, gente de «meia tijela», não mais.
Tais subúrbios ostentam a complexidade anódina e expressiva do sótão. São como o quarto aonde vão parar os trastes velhos da cidade. Ali se acoitam as vítimas da traça, tudo o que já não serve.
Nesta estética absurda que tanto caracteriza o subúrbio, tudo fica de través, simbolizado peelo objecto que comparece ante o nosso passo: a lata vazia, o cão faminto, o rato esventrado, ou o bico da luz de gás, poeirento e torcido.
Toda a perspectiva psicológica e material - triste e hostil - é repartida para o último plano espiriual. A alma do subúrbio estrangula tudo o que possa ser vida, movimento. Na aguarela que imediatamente pintamos com a paleta dos nossos sentidos só empregamos uma cor: o cínzeo.
Todos os ruídos e rangidos que a bocarra da cidade muge se tornam ali obsessivos e enfiados na monotonia que esborrata a atmosfera do subúrbio. A alegria cai em farrapos dos beirais, só agitada pela brisa das vozes infantis; vozes de meninos que andam pelos monturos e aos quais nunca ninguém contará contos.
Fere-nos por vezes os olhos - que têm para o subúrbio o egoísta «Tenha paciência» das coisas derrotadas - o rótulo «Taberna», em letras degeneradas, doentes da espinha, e que, ali, perdem até a qualidade forte e vibrante que, como o vinho, têm em todo o lado. Colgam das varandas, como trapo a secar, os inúmeros crimes tantas vezes narrados ao longo das ruas pelo cego do quadro e do ponteiro (1).
Arrimados ao muro de algum corralejo vemos às vezes montes de terra casada com cem objectos indefinidos, inúteis - porque já cem mãos lhes foram retirando toda a vitalidade - e que soterram a nossa imaginação como numa fossa. Tais corralejos sofrem de nostalgia de balidos e no lombo dos seus alpendres ocres há jóias de verbenas, sujas e olvidadas.
Na observação subjectiva surge o entardecer iluminado pela lamparina de azeite vespertina, e então tudo se torna mais desgarradoramente inerte. O trapo enforcado no cabo eléctrico ou os gritos sem eco que atravessam o ar como morcegos fustigam-nos lugubremente a alma. Ao longe, o candeeiro macilento pisca o olho poente, e as sombras de farrapos juntam-se nos quícios, abrindo as suas mãos silenciosas, como numa súplica.
O bocejo interminável do subúrbio, os seus olhos cavados e inermes, são sempre o malefício tremebundo da cidade. Ainda que o dia dance de prazer nos telhados próximos, é logo amarrado ao cepo da tristeza perene do subúrbio, espirro de água suja sobre a alegria ruidosa da urbe. Estes bairros em letargo pertencem à zona do irremediável, do fatal. Sua emoção é emoção de árvore seca. Os que o habitam foram vítimas do mordisco raivoso que a alma do subúrbio gerou neles. Esta suburbiofobia só é curável com a injecção prematura de algumas bolsas de ouro.
Entre o cortejo das palavras, figura a de subúrbio, vestida de andrajos, coberta de sebo e com na cara o estigma do galfarro que dorme à porta das casas.
(1) - Narrador que ia de aldeia em aldeia contando históras negras que tinham emocionado a opinião pública, estando a narrativa apoiada em imagens pintadas num cartão. (N. doT.)
TEXTO DE LUIS BUÑUEL RETIRADO DO LIVRO «LUIS BUÑUEL - POEMAS», TRADUZIDO POR MÁRIO CESARINY, EDIÇÃO N.º 703, MARÇO DE 1977 DA EDITORA ARCÁDIA
Luis Buñuel
FONTE: INFOPÉDIA
TREINAR
Treinar a nudez.
Pintar de céu a nudez.
Pintar de sexo a nudez.
Desenhar na nudez a inocência.
Desenhar a Fornicação na nudez.
a nudez clássica igual à nudez actual.
experimentar roupas nuas.
confirmar que a nudez é mais nua que a roupa nua.
Treinar a nudez.
TEXTO DE GONÇALO M. TAVARES, DO LIVRO «LIVRO DA DANÇA», EDIÇÃO RELÓGIO D'ÁGUA, OUTUBRO DE 2018
O pecado não existe -
insistia a minha avó.
Apenas o arrependimento -
ou a falta dele.
põe um disco a correr. a chuva não demora
mais do que o esvaziar das nuvens se te
confessasse as coisas que já atirei ao mar
(o revólver do crime palavras numa garrafa)
não darei nome ao poema seria como quem
coloca legendas aos dias e eu: sou como
água (tomando a forma dos lugares que molha)
vou repetir (para quem só agora ligou
este poema:) no cesto de frutos da mãe
as estações do ano sucedem-se e o disco
era um disco tão antigo tão antigo que
a certa alturantigo tão antigo que a
certa alturantigo tão antigo que a certa
alturantigo tão antigo qu
POEMA DE JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES DE «ESTE LADO PARA CIMA», DE 1994, RETIRADO DO LIVRO «O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS» - EDIÇÃO QUETZAL, FEVEREIRO DE 2019
Como começar o princípio de alguma coisa que ainda não existe, e que por isso desconhece a necessidade de ter um princípio, porque iniciar o principio implica o inevitável encontro com o fim?
O que procuramos quando embarcamos numa viagem?
Talvez exista um destino ou um cume que ninguém tenha alcançado, ou talvez a razão de viajarmos seja a própria viagem.
Na tradição da melhor literatura de viagem, Sem Nunca Chegar ao Cimo é muito mais do que um diário de viagem. É a história profunda, terna e estimulante do confronto com os nossos limites físicos, da erosão de muitas certezas antigas, da beleza das pequenas coisas e de como podemos encontrar o equilíbrio interior.
No seu estilo único, poético e elegante, Paolo Cognetti conta-nos esta experiência inesquecível, em que o poder da amizade, a magnificência da natureza, a diversidade dos lugares que descobriu e das pessoas que conheceu, os altos e baixos dos trilhos percorridos e as diferenças de altitude são como uma viagem da mente, do corpo e do espírito.
COLOSSEUM - THE VALENTYNE SUITE
A MEIAS
Bebo o meu café enquanto bebes
do meu café. Intriga-me que faças isso.
Se te posso pedir um
(se podes tomar um igual)
porque hás-de querer do meu?
Que
não. Que não queres. Escuso
de pedir
que não queres. Então
começo um cigarro e tu fumas
do meu cigarro dizes
«tenho quase a certeza de
não acabar um sozinha» por isso
fumas do meu.
Dá-te gozo esse roubar de
leves goles furtivos
dá gozo participar
do prazer que eu possa ter
contigo
(e entre nós)
dá-se agora tudo
a meias.