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JOSÉ HIERRO (1922-2002)
ALUCINAÇÃO
Amanhece. Saí descalço a pisar os caminhos,
a sentir a geada em minha carne nua.
Tanta luz, tanta vida, tão verde canto da erva!
Tão feliz criação erguida ao mais alto cume!
Sinto o tempo passar e perder-se e só fora de mim se detém.
E o universo parece que está encantado, tocado pela graça.
Tantas coisas eternas que ao tempo estragam sua trágica espada!
Tanta luz, caminhos tão abertos!
Tanta vida que evita os séculos e no dia sua magia ordena!
Se a flor, se a pedra, se a árvore, se o pássaro;
se seu olor, sua dureza, seu verde arquejo, seu voo entre o céu e o ramo.
Se todos me devem sua vida, se à minha custa, da minha morte sua vida é possível,
à minha custa, da minha morte diária...
Tanta luz, tão remoto pulsar da erva...!
(Saí descalço a sentir a geada em minha carne nua.)
Tanta luz, tão escura pergunta!
Tão escura e difícil palavra!
Tão confuso e difícil buscar, pretender compreender e aceitar,
e para o que não pára nunca...
Poema do poeta espanhol José Hierro traduzido por José Bento
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BIOGRAFIA
José Hierro del Real. (Madrid, 3 de abril de 1922-21 de diciembre de 2002). Poeta español, crítico de arte y académico de la Real Academia de la Lengua.
Su familia se traslada a Santander siendo niño y allí estudia la carrera de perito industrial, que tuvo que interrumpir en 1936. Su primer poema, Una bala le ha matado, aparece publicado en 1937.
Al finalizar la Guerra Civil es detenido y procesado. Permanece en la cárcel hasta 1944 y allí empieza a interesarse de forma sistemática por la literatura, apareciendo ya en sus primeros escritos diversos hechos vividos durante la contienda.
Cuando sale de prisión se traslada a Valencia, donde se dedica a escribir, colabora en un diccionario mitológico y, junto a José Luis Hidalgo, participa en la fundación de la revista Corcel. En 1944 realiza la primera crítica pictórica sobre la obra de Benito Ciruelos.
Durante los años 40 vuelve a Santander y, además de trabajar en diferentes oficios, colabora en la revista de la Cámara de Comercio, donde escribe sobre economía y sobre los hombres ilustres de la industria cántabra.
En 1946 se relaciona con el renovador grupo "Proel", editor de la revista poética del mismo nombre en la que publica su primer libro de poemas, Tierra sin nosotros, en 1947.
En 1950 escribe Con las piedras, con el viento y en 1953 aparece Antología poética, una amplia selección de su obra lírica.
Durante esa época fija su residencia en Madrid, donde comienza a trabajar en Radio Nacional de España, además de realizar crítica de arte y colaborar en revistas y periódicos.
En 1954 edita Estatuas yacentes y en 1962 el volumen Poesías completas.
Durante las décadas siguientes continúa creando poesía, participa en actividades literarias, realiza crítica de arte analizando la obra de artistas del campo de la pintura y de la escultura, y forma parte de numerosos jurados literarios. Pronuncia gran número de conferencias sobre poesía y arte en la mayoría de las capitales europeas y sus poemas figuran en las más destacadas antologías de poesía contemporánea.
Está considerado como una de las voces más representativas de la poesía social de posguerra.
FONTE DA BIOGRAFIA: INSTITUTO CERVANTES
O corpo tem um barco à deriva
perdido
completamente cego
com pétalas vermelhas agarradas aos olhos como
escamas arrepiadas na pele do peixe aprisionado
na armadilha da rede.
Para que serve, então, um semáforo na grande cidade vazia?
O barco enjoa e vomita o medo e as pétalas choram os mortos
engolidos por algas negras de olhos medonhos.
A cidade está vazia.
Para que serve o semáforo?
A brisa está parada
A respiração suspensa
à espera... à espera
e o silêncio tem um cheiro de morte.
Para que serve o semáforo na grande cidade vazia?
Talvez a esperança de o barco encontrar o seu porto de abrigo?
PAULO MENDES CAMPOS (1922-1991) ||| BRASIL
POEMA DIDÁCTICO
Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo
Como o fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa.
Minhas rugas são prantos da véspera, caminhos esquecidos
Minha imaginação apodreceu sobre os lodos do Orco.
No alto, à vista de todos, onde sem equilíbrio precipitei-me,
Clown de meus próprios fantasmas, sonhei-me,
Morto do meu próprio pensamento, destruí-me,
Pausa repentina, vocação de mentira, dispersei-me,
Quem sofreria agora sobre as armações metálicas do mundo,
Como o fiz outrora, espreitando a grande cruz sombria
Que se deita sobre a cidade, olhabdo a ferrovia, a fábrica,
E do outro lado da tarde o mundo enigmático dos quintais.
Quem, como eu outrora, andaria cheio de uma vontade infeliz,
Vazio de naturalidade, entre as ruas poentas do subúrbio
E montes cujas vertentes descem infalíveis ao porto de mar?
Meu instante agora é uma supressão de saudades. Instante
Parado e opaco. Difícil se me vai tornando transpor este rio
Que me confundiu outrora. Já deixei de amar os desencontros.
Cansei-me de ser visão, agora sei que sou real em um mundo real.
Então, desprezando o outrora, impedi que a rosa me perturbasse.
E não olhei a ferrovia - mas o homem que sangrou na ferrovia -
E não olhei a fábrica - mas o homem que se consumiu na fábrica -
E não olhei mais a estrela - mas o rosto que reflectiu o seu fulgor.
Quem agora estará absorto? Quem agora estará morto?
O mundo, companheiro, decerto não é um desenho
De metafísicas magníficas (como imaginei outrora)
Mas um desencontro de frustrações em combate.
Nele, como causa primeira, existe o corpo do homem
- cabeça, tronco, membros, aspirações e bem-estar...
E só depois consolações, jogos e amarguras do espírito.
Não é um vago hálito de inefável ansiedade poética
Ou vaga adivinhação de poderes ocultos, rosa
Que se sustentasse sem haste, imaginada, como o fiz outrora.
O mundo nasceu das necessidades. O caos, ou o Senhor,
Não filtraria no escuro um homem inconsequente,
Que apenas palpitasse no sopro da imaginação. O homem
É um gesto que se faz ou não se faz. Seu absurdo -
Se podemos admiti-lo - não se redime em injustiça.
Doou-nos a terra um fruto. Força é reparti-lo
Entre os filhos da terra. Força - aos que o herdaram -
É fazer esse gesto, disputar esse fruto. Outrora,
Quando ainda sofria sobre armações metálicas do mundo,
Acuado como um cão metafísico, eu gania para a eternidade,
Sem compreender que, pelo simples teorema do egoísmo,
A vida enganou a vida, o homem enganou o homem.
Por isso, agora, organizei meu sofrimento ao sofrimento
De todos: se multipliquei a minha dor,
Também multipliquei a minha esperança.
POEMA DO POETA BRASILEIRO PAULO MENDES CAMPOS
A palavra procura o seu sentido como:
A chama o pavio da vela
O velame o vento
Os olhos outros olhos
Os lábios outras bocas
A verdade em agonia uma certeza
O gato em passos de dança o pássaro desprevenido
O imbecil outro imbecil outro imbecil a bofetada na inteligência
O ridículo exibicionista a celebrar a ignorância
E eu o que procuro?
A paz a pomba que já não voa
A Páscoa os ramos de oliveira
A normalidade dos dias mansos nesta incerteza
JULIO CORTÁZAR (1914 -1984)
DISTRIBUIÇÃO DO TEMPO
Cada vez são mais os que crêem menos
Nas coisas que preencheram as nossas vidas,
Os mais altos, os incontestáveis valores de Platão ou Goethe,
O verbo, a pomba sobre a arca da História,
A sobrevivência da obra, a descendência e as heranças.
Nem por isso caem do céu do neófito
Na ciência que expõe máquinas na lua;
Na verdade, tanto faz que o doutor Barnard
Faça transplantes do coração
Era preferível mil vezes que a felicidade de cada um
Fosse o exacto, o necessário reflexo da vida
Até que o coração insubstituível pudesse dizer simplesmente basta.
Cada vez são mais os que crêem menos
Na utilização do humanismo
Para o nirvana estereofónico
De mandarins e estetas.
Sem que isto queira significar
Que quando houver um instante de inspiração
Não se leia Rilke, Verlaine ou Platão,
Ou se escute os nítidos clarins,
Ou se vislumbre os trémulos anjos
De Angélico.
POEMA DE JULIO CORTÁZAR TRADUZIDO POR JORGE HENRIQUE BASTOS
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RICARDO JAIMES FREYRE (1868-1933)
AS VOZES TRISTES
Pelas brancas estepes
vai o trenó ligeiro;
distantes, os uivos dos lobos
unem-se aos cães em seu resfolêgo denso.
Neva.
Dir-se-ia que o espaço se envolvera num véu,
recamado de lírios
pelas asas do nordeste.
O infinito branco...
Sobre o vasto deserto
voga uma vaga sensação de angústia,
de supremo abandono, fundo e sombrio desalento.
Um pinheiro sozinho
ao longe é um desenho,
num fundo de brumas e de neve,
como esguio esqueleto.
Entre os dois sudários
da terra e do céu,
avança no Nascente
o gelado crepúsculo de Inverno...
Poema do poeta Boliviano Ricardo Jaimes Freyre.
Jossé Bento traduziu
O TEMPO CONCRETO
O tempo duro
com estas unhas de pedra
este hálito pobre
de órgãos esfomeados
estas quatro paredes de cinza e álcool
este rio negro correndo nas noites como um esgoto
O tempo magro
em que minhas mãos divididas
nitidamente separadas e caídas
ao longo dum corpo de cansaço
pedem o precipício a hecatombe clara
o acontecimento decisivo
O tempo fecundo
dos sonhos embrulhados repetidos como um hálito de febres
repassadas no travesseiro igual das noites e dos dias
das ruas agrestes e pequenas da mágoa
familiar e precisa como uma esmola certa
O tempo escuro
da peste consentida do vício proclamado
da sede amarfanhada pelas mãos dos amigos
da fome concreta dum sonho proibido
e do sabor amargo dum remorso invisível
O tempo ausente
dos olhos dum desejo de claras cidades
em que acenamos perdidos às soluções erguidas
com vozes bem distintas de cadáveres opressores
com gritos sufocados de problemas supostos
O tempo presente
das circunstâncias ferozes que erguem muros reais
dos fantasmas de carne que nos apertam as mãos
das anedotas contadas num outro mundo de cafés
e das vidas dos outros sempre fracassadas
O tempo dos sonhos
sem coragem para poder vivê-los
com muralhas de mortos que não querem morrer
com razões de mais para poder viver
com uma força tão grande que temos de abafar
no fragor dos versos disfarçados
O tempo implacável
em que juramos de pé viver até ao fim
maiores dos que nós ser todo o grito nu
pureza conquistada no seio da vida impura
um raio de sol de sangue na face devastada
O tempo das palavras
numa circulação sombria como um poço
de ecos incontrolados
de timbres inesperados
como moedas de sangue cunhadas numa noite
demasiado curta e com luar de mais
O tempo impessoal
em que fingimos ter um destino qualquer
para que nos conheçam os amigos forçados
para que nós próprios nos sintamos humanos
e este fardo de trevas esta dor sem limites
a possamos levar numa mala portátil
O tempo do silêncio
em que o riso postiço dos fregueses da vida
finge ignorá-lo enquanto soluçamos
de raiva de razão reprimida revolta
e os senhores de bom senso passeiam divertidos
O tempo da razão
(e não da fantasia)
em que os versos são soldados comprimidos
que guardam as armas dentro do coração
que rasgam os seus pulsos para fazer do sangue
a tinta de escrever duma nova canção
poema de antónio ramos rosa
Quando a luz se torna sombra e encontra
a primeira respiração da noite
o silêncio invisível nocturno invade os corpos
estendidos sobre as partículas das últimas palavras ditas
os dedos agarram-se às explicações e significados
dadas por máscaras que escondem o medo
e os olhos estabelecem o limite daquilo que o corpo pode suportar
quando chegar
o momento dos sussurros de canções
ouvidas na infância
cantadas para apaziguar o medo
do último instante de luz
Assimilando a árvore a borboleta e os gatos
no amarelo fragrante e no silencioso redemoinho
com a saliva do calor e os escuros fragmentos
regresso à lentidão de um baile a um violoncelo
tocado por um gnomo sobre um telhado de metal
Trago uma lâmpada de orvalho para atravessar o abismo
e um pássaro adormecido sobre uma folha verde
Entre madeira e sombra, sob uma plácida lua
mobilizo os cristais nocturnos e as vespas azuis
entre as constelações que dialogam num tranquilo tremor
Sob as clavículas das árvores e copas flutuantes
enuncio a materna cascata e as metáforas que respiram
Movo a escultura do desejo na diagonal aspirada
e na fragrância do arco quando a consistência
é a bondade que flui entre os cornos da dança
Atravesso os murmúrios disfarçados ou os símbolos
que alçam as lânguidas cabeças submersas
até que os signos os alcancem e os respirem
Rio nas pausas da harmonia e no incêndio das alfombras
Escondo-me num olho e voo dentro da sombra
Nas nuvens passam touros brancos e águias verdes
Sedento movo as paredes na ternura da água
Aperto a suave madeira de um corpo e as suas cavernas vivas
enquanto deslizam as lentas estrelas sobre a água
Nos jardins minúsculos a brevidade e a delicadeza
Os conceitos suspiram entre a língua das flores
Guitarra e musgo e tempo acariciado
perpetuam o crepúsculo e a ausência de perguntas
Mulheres com sombrinhas descalças sobre a praia
o vento revolve-lhes as lâmpadas e as saias
Coloco a mão na âncora deste ritmo
O sangue penetra a garganta o sangue das flautas
e abre-se o tenaz labirinto voluptuoso
que é um orgão do sol e um violino da lua
De poro a poro, de poro a fruto, de fruto a estrela
uma água enigmática desliza entre carícias
Perpetua-se o prelúdio da metamorfose da matéria
e o corpo saboreia o horizontal relâmpago
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA
O eco que perturba o corpo
e acorda o medo invisível
que habita os esconderijos da pele
e uma luz bacenta derrama sobre os teus pés
lágrimas silenciosas,
enquanto o corpo,
já despido
roça nas paredes da memória
para apagar cicatrizes antigas tatuadas
no coração da alma.
Sobre a mesa rude e despida
os olhos desenham no corpo do pó imagens que julgavas esquecidas
mas
que a tua mão guardou na memória dos dedos os gestos
dramáticos e teatrais das borboletas e
dos corações com "AMO-TE, MAMÃ",
que na infância desenhavas em brancas e desertas folhas de papel
e, assim amordaçavas o eco
e iluminavas a luz.
UM PONTO
Um ponto - talvez um centro
em permanência de tranquilidade
para a noite inteira. Um ponto
extremo, interno. Um pequeníssimo ponto
invulnerável
de estabilidade total
- nascido como? - fruto do espaço limpo,
de aberta aderência nua ao ar,
de contância livre, desocupada,
do descanso de ser até ao fundo simples,
de completa entrega?
Um ponto nu inabitado branco
de intocável serenidade,
fixo como um nervo e imponderável,
de fim inicial,
ponto de respiração,
clareira de estar,
abertura central viva
praia de ser e nada
- mas apenas um ponto, um puro ponto
contra a noite inteira,
contra o frio,
contra a destruição.
Ponto de união
de paz coextensa à noite,
opaco e diáfono nó
do desenlace perfeito.
Nó de água
da água mais nua.
Ninho interno do espaço.
Pequena lua essencial
num horizonte de segua paz.
Ponto, em ti descanso,
certeza do mundo e de mim
em ti, dentro da noite,
atinjo o equilíbrio actual e puro.
Ponto, antes do início,
de ti a ti, em mim,
pulsação lisa e leve,
suave motor da terra,
a pacífica respiração do oásis.
Ponto
de universo fixado
onde atingi a consistência dócil
de permanecer entrgue,
plenitude abrigada
na navegação nocturna.
Um ponto vazio,
plenamente vazio.
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA IN "ANTOLOGIA POÉTICA", EDIÇÃO PUBLICAÇÕES D. QUIXOTE, 2001, COM PREFÁCIO, BIBLIOGRAFIA E SELECÇÃO DE ANA PAULA COUTINHO MENDES
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O poder devastador de um "bichinho" microscópico que consegue, de forma cínica, pôr a nú as fragilidades, os valores, a arrogância e o "poder" da humanidade, e revelando quanto somos estúpidos ao pensar que a nossa inteligência - ou a falta dela - faz de nós os donos e senhores do planeta.
Para a minha mulher... feliz aniversário
FRANZ KAFKA
Pai, digo-lhe, dá-me três grãos de cevada para despertar o adormecido.
Mas meu pai não responde:
é um enorme cavalo de bronze, alto sobre colinas e sinagogas.
Mãe, digo-lhe, afasta tanta névoa,
mostra-me um rosto doce, de onde brotem palavras ingénuas.
Mas ela perdeu-se pelos becos de pedra
e só encontro no espelho os seus olhos imensos.
Avô, digo então, já não lutes mais com o anjo,
vem contar-me histórias, junto ao ninho, enquanto gela o Elba.
Mas o velho olha-me com olhos ausentes, e compreendo
que não é este o meu avô mas um velho cigano que me quer vender uma recordação.
Irmã, bela irmã, digo-lhe,
toma a minha mão pois faz escuro nesta casa imensa.
Mas ao meu lado passa uma condessa polaca monumental e arrogante
e ouve-se um violino, e fecha-se uma porta.
Irmão, digo, que belo cavalgar sobre o cavalinho de pau e de laca,
para onde nos levam estas tardes incertas?
Mas ele é só uma imagem, uma fotografia cinzenta nas minhas mãos,
e ao longe, atrozes, os canhões ressoam.
Goethe, digo-lhe, canta-me uma canção romana,
faz com que eu sinta no meu coração esta antiga tristeza.
Mas a lousa cala-se e sobre ela voam pombas cinzentas
e não posso abrir este livro porque as páginas são de cinza.
Milena, digo logo, talvez possas tu finalmente salvar-me,
diz-me que sou de carne e de sangue, que isto que me aflige é um desejo.
Mas ela faz-se fantasma entre milhares de seres esquálidos
e apenas apercebo duas chamas que se apagam muito longe.
Então é delírio tudo isto? A quem posso chamar que me salve?
O seu reino é deste mundo. Todos estão aceites e absolvidos.
São demasiado humanos, são demasiado justos,
e não consigo falar-lhes com o meu estrondo de élitros..
E não aprendi a atravessar as portas,
e não sei defender-me.
Se vires dois olhos cinzentos de gato na gótica noite de Praga
compreenderás que tento saber onde me encontro.
Se ouvires um coração na gótica noite de Praga
compreenderás quem sustenta todo este sonho.
Poema de William Ospina, do livro "Um país que sonha - cem anos de poesia colombiana", edição 1512, Março de 2012
NATÉRCIA FREIRE ||| 1919-2004
PARA O INSTANTE DE NOS PERDERMOS
Para o instante de nos perdermos,
estão soando já todos os sinos do Mundo!
E as sereias, no mar, se impacientamm
de nevoeiros sem fim.
Como será?...
Morrerei longe de ti?
Dir-me-ás adeus numa gare escura e fria
ou partirás, de neve, entre a luz da manhã,
enlutada e viúva do clarão dos teus olhos?
Como será...?
Todas as aves que soltamos no sonho
estão suspensas no bronze, dessa música triste.
Todas as veredas que sulcamos, sem corpo,
vestem cinza e poeira de incêndios e de sóis...
Como será?
Pergunto aos ventos todos,
às aves e às alturas
e nada me responde!
Porque o instante de nos perdermos
será mais negro que o apagar do sol;
mais triste que o desabar dos mundos;
mais dorido e desolado
que a morte de todas as crianças
nos berços feitos de astros;
mais dorido e desolado
que a morte de todas as flores
em todos os jardins e campos da Terra.
Todos os amorosos mortos
estão chorando nos túmulos o instante de nos perdermos
e tecem, à nossa volta,
esta sede, esta dor, esta infinita procura
de todas as vidas que em nós brotam e se ocultam
em cada minuto de paixão.
São as suas vozes que vibram nos nossos ouvidos
e nos roçam, na pele, um vento de perdição.
É a recordação das suas penas
que nos ensina a fundir melhor
as nossas almas de Deus.
É o tormento dos seus amores sem braços
que alucina o instante de todas as ausências.
É a dor, é a dor de saber que somos mortais,
com o infinito no peito
e séculos de pedra sobre a poeira que somos!
São as suas vozes de séculos que nos ensinam a luz.
São as suas lágrimas de séculos que nos humedecem os olhos enternecidos.
São as suas bocas desenhadas no espaço,
inatigíveis, fugazes, que nos sugerem o desejo
do beijo mais profundo, mais profundo.
São as suas mãos desfeitas e voláteis
que estão fazendo soar já, na tarde silenciosa,
para o instante de nos perdermos,
todos, todos os sinos do Mundo!
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POEMA DE NATÉRCIA FREIRE IN "POESIA COMPLETA", EDIÇÃO QUASI EDIÇOES, JUNHO DE 2006, COM EDIÇÃO E NOTAS DE PEDRO SENA-LINO E PREFÁCIO DE MARIA GABRIELA LLANSOL
um desenhador de peixes
ele não parava de desenhar peixes
em papéis
e eu disse:
Jack, o que é que se passa?
mas ele não respondia
e a mulher dele disse
não há meio de ele procurar emprego
é isso que se passa
e eu tenho de tomar conta
dos putos; não sei
como é que vamos
fazer esta merda.
ele não parava de desenhar peixes
em papéis
e nem bêbedo estava.
fui à rua e trouxe 2
garrafas de vinho
e a patroa dele
encheu os copos.
e o Jack bebeu o dele
depois praguejou: esta
esferográfica fica sempre
sem tinta
quando estou mesmo no ponto crucial,
no cerne, quando estou
finalmente a arder
na cera imbecil do fogo...
atirou a caneta
para uma saco de papel cheio de garrafas vazias,
latas de sardinha e
de feijão vazias, vestiu o casaco
e saiu.
para onde é que ele vai?
perguntei.
estou-me nas tintas
para onde ele vai,
disse a patroa dele.
depois levantou o vestido
e mostrou-me as pernas;
eram bastante boas, eu
sempre fui um gajo de pernas
mas dirigi-me ao armário
e vesti o casaco.
onde é que vais? perguntou ela.
vou procurar emprego,
disse-lhe,
há um anúncio no Times,
precisam de porteiros
no novo edifício Fleischman.
desci os degraus
e andei meio quarteirão para norte
até ao bar mais próximo.
O jack estava lá sentado.
Não sei, disse ele,
acho que me vou
matar.
não faz mal, disse eu,
isso vai acontecer
de qualquer modo.
ficámos ali sentados o resto da tarde
a beber
e por volta das 7 da tarde saímos,
ele com uma tipa de cabelo flamejante
e eu com uma manca
leitora de Henry James
que se ria de boca
à banda.
estavam 17 graus
e pouco restava
do mundo.
POEMA DE CHARLES BUKOWSKI RETIRADO DO LIVRO "OS CÃES LADRAM FACAS", EDIÇÃO ALFAGUARA DE NOVEMBRO DE 2018. ROSALINA MARSHALL TRADUZIU E VALÉRIO ROMÃO FEZ A SELECÇÃO, A ORGANIZAÇÃO E O PREFÁCIO