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DIA DE FESTA NA MINHA TERRA
Ano dezanove do século vinte e um
domingo
janeiro
vinte
inverno
lua vermelha
eclipse total para ver mais logo na madrugada
É dia de festa na minha terra e da grande procissão
fanfarras e bandas pipocas e balões algodão-doce
bancas de fogaças e outros doces "regionais"
meninas de branco vestidas
cinturadas de vermelho ou azul
cabeças coroadas de fogaças para honrar a promessa feita há séculos
varandas enfeitadas por tecidos adamascados
gente anónima e de todas as condições
verga-se respeitosamente à passagem dos andores e do pálio
e das suas bocas saem silenciosos murmúrios em forma de oração
e foguetes troam anunciando o princípio e o fim da festa
animada pelos trapezistas dos negócios ambulantes
montados no palanque das suas viaturas anunciam
com voz peculiar pomadas e elixir para todas as maleitas
descontos na compra de cobertores ou
de um molho de peúgas
"...não é 100, nem 90, nem 80, nem 50... se comprar agora, e ainda leva este relógio como oferta...
vai pagar, nem mais nem menos, duas notas de 20... uma pechincha!
aproxime-se freguesa aproveite a minha boa disposição
hoje é dia de festa..."
FESTA DAS FOGACEIRAS EM HONRA DO MÁRTIR SÃO SEBASTIÃO, 20 DE JANEIRO, SANTA MARIA DA FEIRA
AS FOGAÇAS E OS CALADINHOS - PERCURSOS
Com percursos históricos diferentes e motivações sociais, culturais, políticas, religiosas e psicológicas bem diversas, as fogaças e caladinhos que conhecemos e adoptamos como um dos ex-libris do concelho de Santa Mara da Feira, são, hoje, extremamente importantes para a economia de algumas unidades industriais e comerciais da cidade.
As fogaças e caladinhos encerram dentro de si uma parte importante da nossa história enquanto testemunhos da nossa memória colectiva. Mas, mais importante do que as formas, os sabores e os gestos que ensinam as receitas, é permitir que cada porção de farinha, de açucar, de ovos e manteiga seja a descoberta da alma, das emoções, dos conflitos, da dor, morte, esperança e vida do povo anónimo das Terras de Santa Maria.
Houve, nos séculos XV e XVI, uma grande epidemia. E o povo foi dizimado. E aqueles que restaram levantaram os braços e os olhos em direcção ao Céu e dirigiram as suas súplicas carregadas de fé ao mártir S. Sebastião. E fizeram promessas e empenharam as suas vidas.
O mártir sorriu. E o sorriso limpou-lhes a alma e as lágrimas. E as lágrimas transfiguraram-se e tomaram a forma de fogaças.
E, todos os anos, no dia 20 do mês de Janeiro, somos cúmplices e testemunhos vivos de uma promessa que nos pediram para cumprir. E cumprimos. Por isso descemos à cidade e enfeitamos as velhas ruas do burgo e damos-lhe vida, cor e emoções. E vivemos a História, e aprendemos que a Fogaça não é apenas um símbolo, mas toda a alma do povo das Terras de Santa Maria.
E, ao enterceder, quando a penumbra do dia confunde os rostos e transforma as sombras em silhuetas, o povo junta-se em pequenos grupos e regressa a casa transportando consigo as fogaças e caladinhos. Durante a viagem relembram momentos já passados e contam histórias que fazem parte da História da cidade. E recordam, a propósito de caladinhos, os anos 30, a polícia política, as tertúlias na Farmácia Araújo, e a perspicácia do Augusto Padeiro. E contam como simples biscoitos passaram do anonimato para a ribalta da glória.
"...Um dia, à noite, aqui em Santa Maria da Feira, o Augusto Padeiro e seus empregados estavam a fazer biscoito sortido com forma arredondada e achatada. De repente, entraram elementos da polícia política e o Augusto Padeiro, com medo, disse aos empregados: Shiu! Calados!.
Um dos elementos da Polícia perguntou: - Porque disse calados?
O Augusto Padeiro, respondeu: Porque estamos a fazer Calados. Estes biscoitos são os Caladinhos"...
E de memórias em memórias, sob a égide do castelo altaneiro, num ritual marcado pelo tempo, o povo cumpre o voto e, de uma forma cúmplice e intimista, ergue o olhar ao Céu e o Santo sorri.
Uma Fogaça recriada pela designer Francisca
David Mourão-Ferreira ||| 24 fevereiro 1927 - 16 junho 1996
ROMANCE DE UM FUTURO NATAL
Vai a caminho de Marte
um foguetão de turistas
Turismo pobre É um charter
de tarifa reduzida
Ou serão refugiados
Parece que vão fugidos
Quem sabe de que se escapam
Quem sabe a que vão fugindo
Consta da lista uma grávida
com ar de Madona antiga
das que inda se desenhavam
nos fins do século vinte
Chegou à pista de embarque
mesmo à hora da partida
E traz escrito na face
o lance que decidira
Não quer que o seu filho nasça
na Terra que vai perdida
Dão-lhe razão Todos sabem
que funda razão lhe assiste
Todos conhecem o estado
que a pobre Terra atingiu
sobretudo após a grave
crise do século trinta
Vão a caminho de Marte
como quem foge à desdita.
Sentem-se dentro da nave
bastante mais protegidos
É como voltar ao espaço
de antes de haverem nascido
Todos a grávida tratam
com cuidados infinitos
E sonham Talvez em Marte
nem tudo esteja perdido
Mas não sabem que na cápsula
um grupo de terroristas
vai sabotando a viagem
mudando o rumo previsto
Fica tudo executado
em pouco mais de três dias
E torna de novo a nave
quase ao ponto de partida
Quem mais se aflige é a grávida
com ar de Madona antiga
ao ver que à Terra terá de
ir entregar o seu filho
Já lhe rebentam as águas
quando se apeia na pista
Já pra dentro de uma cave
os outros a encaminham
Já por entre as dor's do parto
um facho de luz luzia
Quem sabe se necessário
não fora enfim tudo isso
para que à Terra baixasse
mais um resgate possível
Pálida pálida pálida
lívida lívida lívida
de costas a mulher grávida
já vagamente sorria
Poema de David Mourão-Ferreira, in Obra Poética (1948-1995), edição Assírio & Alvim, Novembro de 2019