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SOTAQUE DA TERRA
Estas pedras
sonham ser casa
sei
porque falo
a língua do chão
nascida
na véspera de mim
minha voz
ficou cativa do mundo,
pegada nas areias do Índico
agora,
ouço em mim
o sotaque da terra
e choro
com as pedras
a demora de subirem ao sol
Junho de 1986
Nesta noite de S. João
procuro
entre os meus dedos
o perfume na água dos teus olhos
as cerejas que desenhei no teu regaço
as pérolas que iluminam os teus seios
os lábios que abraçam os teus ombros
e
uma grinalda de lágrimas de orvalho
que perfumam os teus cabelos
A LUZ
A luz marca o tempo das coisas invisíveis
enquanto as mãos atravessam o espesso
manto das camadas de pó que permitem ver
a forma de todas as coisas visíveis
E as mãos ficam frias e as veias
azuis como os oceanos
onde o sangue navega
subindo e descendo
constantemente
como se procurasse qualquer coisa
esquecida ou suspensa
como embarcação em mar encapelado
E a luz vai marcando o tempo e o ritmo
de todas as coisas invisíveis
assinalando com sombras os gestos
de uma carícia começada mas inacabada
que ficou suspensa nas partículas da memória
e que a mão irá lembrar mais logo
mas já demasiado tarde
porque a luz que marca o tempo
das coisas visíveis e invisíveis
se extinguiu
Palavra mal dita
maldita
E uma pedra disfarçada de palavra
mal pensada
arremessada
Tem tento na língua
fecha a boca
e assim a luz não fica
baça
eu sei
que é pedir demais
adoras o som
que emite as tuas cordas vocais
mas
por favor
tem piedade
não deixes
que a corda
no pescoço
dê o final aperto
os ouvidos já não suportam mais
ouvir as idiotices que
a tua boca vomita
Não sei da tua importância
mas estás em todas:
TV, rádio, jornais, redes sociais e não sociais
para comentares as mais diversas matérias:
sarampo, eleiçoes, futebol, diarreias, política internacional, economia, enxaquecas, impotência sexual,
emigração, imigração, migração,
literatura,
carros, caspa, etc..., etc..., etc...
julgas ser um génio do renascimento italiano
um hermeneuta
o mestre da retórica
e julgas o país demasiado pequeno para a imensidão do teu ego
que ameaças abandonar
por que de ti não gostam
e seria uma bênção para
os olhos, ouvidos, coração -
enfim para o corpo todo
e para o ambiente
que te reformasses
COM A DATA DE HOJE
Nas esquinas destas horas trnsitórias
de vidraças partidas e relógios parados
a surpresa segreda uma ária inocente
com um fato de ganga e as mãos maltratadas
Surda sombra de grades sobre o rosto
vem insuspeita intrometer-se ali
onde a esperança entre gritos que não soam
ígnea vem pela noite às marteladas
Árdua profunda invocação de paz
fremindo à flor das águas temerosas
lá no mais fundo onde não chegam as palavras
árdua desvenda aos homens o caminho
para onde?
POEMA DE MÁRIO DIONÍSIO, DO LIVRO "POESIA COMPLETA", COLEÇÃO PLURAL, EDIÇÃO IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, JUNHO 2016
Palavra cansada
Palavra rouca de tanto ser
gritada
nas praças
nas varandas
em qualquer lado
de um lugar qualquer
Palavra cansada
com idade avançada
letras cheias de rugas
cuspidas
arrebatadas
mordidas
chicoteadas
electrocutadas
assassinadas uma a uma
devagarinho porque não há pressa
no trabalho feito por sicários
disfarçados de gente nobre e honrada
cavalheiros elegantes com
o peito inchado de comendas
Palavra muito antiga
que tem a idade do homem
e que será sempre gritada:
Liberdade
Se já não te restam mais lágrimas, não chores, ri.
SHLOMIT LEVIN
(AVÓ DE AMOS OZ)
NÓMADAS
Só o amor pára o tempo (só
ele detém a voragem)
rasgámos cidades a meio
(cruzámos rios e lagos)
disponíveis para lugares com nomes
impronunciáveis. É preciso percorrer os mapas
mais ao acaso
(jamais evitar fronteiras
nunca ficar para trás)
tudo nos deve assombrar como
neve
em Abril. Só o amor pára o tempo só
nele perdura o enigma
(lançar pedras sem forma e o lago
devolver círculos).
Poema de João Luís Barreto Guimarães, do livro NÓMADA 2018, incluído na antologia O TEMPO AVANÇA POR SÍLABAS - Edição QUETZAL 2019
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João Luís Barreto Guimarães nasceu no Porto, a 3 de junho de 1967. Poeta e tradutor, divide o seu tempo entre Leça da Palmeira e Venade. O Tempo Avança por Sílabas reúne cem poemas selecionados pelo autor, dos dez livros que publicou até ao momento. É o seu quinto livro na Quetzal, após a publicação dos primeiros sete títulos na Poesia Reunida, em 2011, Você está Aqui, em 2013, Mediterrâneo, em 2016, ao qual foi atribuído o Prémio Nacional de Poesia António Ramos Rosa, e Nómada, em 2018. A sua obra está representada em antologias poéticas e revistas literárias de numerosos países, tendo Mediterrâneo sido publicado em espanhol.
Rest now, my love It's all right The dark is gone I'm here I hold you Rest now, your heart It's all right We're all right Although you're gone I'll be here to hold you I've got you Will you breathe through me? And calm the storm inside Just breathe through me We'll keep the fires alight I'll face down the world with you Breathe through me and calm the storm inside Just breathe through me We'll keep the stars alight
MÁRIO DIONÍSIO ||| 1916-1993
Nos despojos da cidade
atrás dos altos prédios ao avesso
veem-se telhados chaminés
negras de fumo vê-se o ferro
em movimento das gruas
Há gente que mora aqui
pessoas cães mortos vivos
em tugúrios fedorentos
Há lama e há excrementos
junto a montões gordurosos
sobre o lixo os solavancos
de amantes abjectos copulando
Rindo e saltando sobre dejetos
aqui e ali crianças brincando
que amanhã serão ladrões
Contra um muro em ruína
a fescura de uma flor
crescendo ingénua
Quem vem ela aqui fazer
entre destroços
tão bela
A meus pés a vou pisar
por raiva ou por piedade
Esmago-a furiosamente
gesto viril e demente
para não chorar
POEMA DE MÁRIO DIONÍSIO, DO LIVRO POESIA COMPLETA, PÁGINA 296, EDIÇÃO IMPRENSA NACIONAL-CASADA MOEDA, JUNHO DE 2016, COLEÇÃO PLURAL
Francisco Luís Amaro (1923-2018)
RETRATO
Um silêncio, um olhar, uma palavra:
Nasceste assim na minha vida,
Inesperada flor de aroma denso,
Tão casual e breve...
Já te visionara no meu sonho,
Imagem de segredo, esparsa ao vento
Da noite rubra, delicada, intacta.
E pressentira teu hálito na sombra
Que minhas mãos desenham, inquietas.
Existias em mim. O teu olhar
Onde cintila, pura, a madrugada,
Guardara-o no meu peito, ó invisível,
Flutuante apelo das raízes
Que teimam em prender-te, minha vida!
Poema de Francisco Luís Amaro
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Poeta português, natural de Aljustrel. Foi co-fundador e co-director da revista Árvore, publicada entre 1951 e 1952, e da qual fizeram também parte Raul de Carvalho, António Ramos Rosa e António Luís Moita. Colaborou ainda nas revistas Seara Nova, Távola Redonda, Portucale, entre várias outras. Foi secretário de redacção e, posteriormente, director-adjunto e consultor editorial da revista Colóquio/Letras. A sua poesia está inserida numa tendência que tenta conciliar a tradição herdada dos poetas presencistas com alguma da poesia neo-realista, nomeadamente a de Carlos de Oliveira. Da sua obra destacam-se os livros de poemas Dádiva (1949) e Diário Íntimo. Dádiva e outros poemas (1975).
Alexandre O'Neill - (1924-1986)
A PLUMA CAPRICHOSA
Estou onde não devia estar
Estou no grande medo instintivo da minha mãe
no medo zangado e prático de meu pai
estou em ti no teu religioso medo
nas tuas lágrimas queixas e suspiros
de mulher ajoelhada
Estou na horrível palavra «querido»
quando tu a dizes encostada a mim
enlaçando-me com os teus braços de renúncia e cobardia
com os teus olhos de súplica silenciosa
com os teus olhos de humildade canina
enlaçando-me
a mim
teu amante teu senhor e teu filho
Estou no murmúrio de desgosto da minha família
da minha família imóvel diante de mim
da minha família poderosa
da minha família de olhar duro
da minha família de olhar terno
da minha família espiando amorosamente ferozmente os meus mínimos gestos
pronta a saltar-me em cima e reduzir-me
a mais um da família
Estou onde não devia estar
Estou ainda estou no verbo fugitivo
no verso enigmático palaciano e «puro»
no tapete de sonho que vai partir prò infinito
na palavra que desmaia de inanição e medo
do medo de dizer o que devia dizer e que não diz
tão doente ou mais do que eu
Estou onde não devia estar
Nos olhos do construtor que vê a fortuna a crescer
na consciência do médico que esquece o doente no seio da morte
no advogado que defende os interesses mais cruéis
no professor que se diverte a torturar as crianças
no general que manda fuzilar os inocentes
no polícia que procura por todos os meios a verdade
Estou onde não devia estar
Estou no compêndio de história onde a mentira se organiza
para proclamar uma «verdade»
Sou uma das intrigas de corte
uma das mais sinistras ou galantes intrigas de corte
sou a batalha dos Vinte-de-Língua-de-Fora
destroçando os Vinte-Mil-de-Coração-aos-Pés
sou a célebre resposta do Cavaleiro Trovão
ao insolente emissário dum rei inimigo
sou o mar de pão transformado em mar de rosas
só por causa do génio dum marido
Também apareço nas colunas do jornal
do jornal de maior tiragem e circulação universal
Sou o rapaz educado simpático filho de boas famílias
que deseja conhecer senhora de alguns meios
p'ra fins matrimoniais
ou o cãozinho que a mesma senhora entre os homens muito maus perdeu
numa hora de grande movimento
o cãozinho que queria fazer chichi e que disse Madame por favor espere aí
o cãozinho que nunca mais apareceu
Também posso ser visto no jornal
apanhando dinheiro aos que procuram um emprego
ou chamando com urgência uma alma capitalista generosa
p'ra financiar a ideia que trago na cabeça
No jornal já fui estúpido e perigoso como o senador
que ameaça reduzir o homem
a um pobre farrapo vacilante
Já fui a mulher tão simpática dum conhecido político
promovendo chás de caridade tricôs de caridade
enquanto o marido prepara mais pobres mais miséria mais chás de caridade
com aquele sorriso que todos lhe conhecem
No jornal cantei na festa do embaixador
e todos gostaram muito
Ofereci vinte escudos a uma pobre mulher tuberculosa
e todos acharam bem
Roubei cinco mil contos ao país
e todos foram no final das contas muito compreensivos
No jornal fui uma espécie de poeta oficial
no jornal fui uma ponte de propaganda sobre um rio de turismo
no jornal fui a República de São Salvavidas discursando na O.N.U.
fui Mimi Travessuras declarando-se encantada por cantar em Lisboa
fui o capitão Westerling a fina-flor dos aventureiros
fui J.J. Gomes homenageaso pelo seu pessoal
fui Teresa a conhecida importadora de carícias
disfarçada sob um monte de chapéus
Estou onde não devia estar
Estou na paisagem onde a linha do horizonte é sempre a fronteira da nostalgia
e a solução um penacho de fumo
o meu coração fumegando na linha do horizonte
A todo este azul chamo cobarde
e a cobardia está em mim como em sua casa
está nos meus versos mesmo nos mais corajosos
nas imagens que fabrico à espera que a vida chegue e me liberte
nos grandes lemas sonoros que ponho no meu caminho
Estou onde não devia estar
E o destino passa por mim como uma pluma caprichosa
passa pelos olhos dum gato
como o avião passa no céu do camponês
como a cidade passa pelo convalescente
que sai pela primeira vez
Nos olhos da mulher que não perdi nem ganhei
nos olhos que durante um segundo me compreenderam e amaram
na sua ternura quase insuportável
o destino passa
No amigo que é lentamente puxado para o outro lado da razão
e um dia mergulha na sombra que trazia em si por resolver
o destino cumpre-se e passa
Na praia nocturna que as ondas visitam e deixam
como as imagens que sem cessar me assaltam e abandonam
na espuma que esmago contra a areia muito fria
na mulher que me acompanha e comigose perde na noite
nos soluços de luz verde que um fasrol nos envia
o destino detém-se e passa
Na inesperada hora de felicidade
vivida um pouco a medo
como os amantes quando percorrem as ruas desertas dum jardim
um pouco a medo
como a breve noite de amor em que um homem se encontra e refugia
o destino demora-se e passa
Estou onde não devia estar
Mas basta
basta
basta
Que o discurso termine
É tempo é madrugada
No dorso dos objectos que me cercam
na mão que me sustenta e eu sustento
no fio desesperado destes versos
é madrugada
As primeiras
vagas de luz
tomam de assalto
os redutos da noite
Na sua guarita
o militar
é um monte de sono
uma pálpebra que bate desesperada
um cigarro impossível de acender
uma espingarda tão absurda como o frio
o sono
a hora
a vida
É madrugada
é definitivamente madrugada
Contra o azul do céu
o azul operáriolevanta-se nas ruas
a cidade estremece já é dia
já é dia claro
De novo o «sim» e o «não»
o café em todas as gargantas
e o primeiro cigarro que começa a trabalhar.
POEMA DE ALEXANDRE O'NEILL IN POESIAS COMPLETAS & DISPERSOS, EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIN, MARÇO DE 2017