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CECÍLIA MEIRELES (1901 - RIO DE JANEIRO / 1964 - RIO DE JANEIRO)
RETRATO
Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
A minha face?
ITAMAR VIEIRA JUNIOR || 1979
"Torto Arado", primeiro romance de Itamar Vieira Junior e vencedor do Prémio Literário Leya 2018, vai chegar às livrarias no próximo mês de Fevereiro com a chancela da editora Dom Quixote.
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DIA DE FESTA NA MINHA TERRA
Ano dezanove do século vinte e um
domingo
janeiro
vinte
inverno
lua vermelha
eclipse total para ver mais logo na madrugada
É dia de festa na minha terra e da grande procissão
fanfarras e bandas pipocas e balões algodão-doce
bancas de fogaças e outros doces "regionais"
meninas de branco vestidas
cinturadas de vermelho ou azul
cabeças coroadas de fogaças para honrar a promessa feita há séculos
varandas enfeitadas por tecidos adamascados
gente anónima e de todas as condições
verga-se respeitosamente à passagem dos andores e do pálio
e das suas bocas saem silenciosos murmúrios em forma de oração
e foguetes troam anunciando o princípio e o fim da festa
animada pelos trapezistas dos negócios ambulantes
montados no palanque das suas viaturas anunciam
com voz peculiar pomadas e elixir para todas as maleitas
descontos na compra de cobertores ou
de um molho de peúgas
"...não é 100, nem 90, nem 80, nem 50... se comprar agora, e ainda leva este relógio como oferta...
vai pagar, nem mais nem menos, duas notas de 20... uma pechincha!
aproxime-se freguesa aproveite a minha boa disposição
hoje é dia de festa..."
DAVID MOURÃO-FERREIRA (1927-1996)
E POR VEZES
E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.
POEMA DE DAVID MOURÃO-FERREIRA IN «MATURA IDADE» - 1973
ALEXANDRE O'NEILL [1924-1986]
UM ADEUS PORTUGUÊS
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
POEMA DE ALEXANDRE O'NEILL in «NO REINO DA DINAMARCA» - 1958
Tu, ò Estranho,
que entras na noite
todas as noites
Braços caídos cansados de tanto procurar
A cabeça enterrada nos ombros com
o peso de tamanha tristeza.
O corpo inclinado, cansado
com vontade de desistir.
Todas as noites
entras na noite
buscas nos becos e esquinas
um pouco de paz,
uma luz que aqueça o coração
uma estrela que acolha os destroços da tua alma
uma flor com pétalas regadas com tuas lágrimas
Todas as noites
entras pela noite
em busca de um sonho
que perdeste algures e não sabes onde.
Até que numa noite
a noite entre dentro de ti.
FERNANDO LEMOS | 3 DE MAIO DE 1926
DIA DE DESCANSO
Hoje reservo o dia inteiro para chorar
É o domingo decadente em que muitos
esperam pela morte de pé
É o dia do sarro que vem à boca da medocridade
circular dos gestos que andam disfarçados de gestos
dos amores que deram em estribilhos
das correrias pederásticas para o futebol em calções
mais o melhor fato e a mesquinhez nacional dos 10%
de desconto em todo o vestuário
E choro choro porque a coragem
não me falta para tudo isto e assisto
na nega de me ceder ao braço dado
Precisarei de um cansaço mas
lá estavam espertas
as mil e não sei quantas lojas abertas
para mo vender!
Mas hoje é domingo
Lá está o chão reluzente de martírio
e nem já o sonho me dá de graça o ter por não ter
já nem o amor que suponho me dá o sonho de ser
E choro de coragem isto é
as lágrimas hão-de cair sêcas nas minhas mãos
Falo cristalinamente sózinho
procurando entre as paredes e as varandas que vão cair
algum acaso isto é
o eco, de qualquer drama vazio
Espero como quem espera
o momento de posse entre dois ponteiros
de torneira em torneira nas súplicas febris
em que me trago aquecendo as mãos nas orelhas
para as não cortar em gritos
Espero e entretanto o mundo não se cansa
de me dar drogas para dormir e criar
novelos de lã à volta do coração
Não me lastimo grito
Quero que estas correntes da boca se tornem úteis
e não ficar pr'aqui moldado estátua
em verdete de ser chorado
A tropeçar onde não há perigo
com calçado duro a pisar as nuvens
neste tão estreitado mundo
Choro hoje o dia todo e lembro-me o que disso
podem pensar os homens das ideias revolucionárias
e choro
choro de coragem e para os microfones da revolução
As lágrimas e a revolução são como a morte de cada um
Cá do meu alto não se desce por escadas mas por desalento
por amor ao chão da terra que me pisam
e choro neste dia burguês fazendo cá a minha revolução
alheia às tais guerras de papel químico
Espero sem esperança mas certo
do que espero como de saber que um homem
não chora e choro
Choro hoje porque reservei o dia inteiro para chorar
porque é domingo e o que espero não é a morte de pé
talvez a coragem de que o mundo não esteja certo
Uma vez era ainda pequeno
chorei ao ver um prédio desabitado
Moro nele mesmo aos domingos e rio-me
das revoluções que ameaçam de pôr ou tirar-me as janelas
Sei que nada adianta
Vi o prédio desabitado era eu muito pequeno
Nê-le me reservo hoje o dia todo à liberdade de me dar
ao choro da coragem de esperar
E espero porque mesmo que o mundo fique desabitado
um grito afinal terá assim o seu eco
Enquanto durar este domingo vou chorar gradualmente
até que a noite me venha
cobrir o corpo de abafo quente
Então sairei à procura da prostituta cega
para lhe contar junto ao peito
como as pessoas se comportam aos domingos
POEMA DE FERNANDO LEMOS in «Teclado Universal» - 1963
Há idiotas que gostam de se ouvir. Julgam-se capazes de falar sobre tudo mas não entendem o que dizem.
FESTA DAS FOGACEIRAS EM HONRA DO MÁRTIR SÃO SEBASTIÃO, 20 DE JANEIRO, SANTA MARIA DA FEIRA
AS FOGAÇAS E OS CALADINHOS - PERCURSOS
Com percursos históricos diferentes e motivações sociais, culturais, políticas, religiosas e psicológicas bem diversas, as fogaças e caladinhos que conhecemos e adoptamos como um dos ex-libris do concelho de Santa Mara da Feira, são, hoje, extremamente importantes para a economia de algumas unidades industriais e comerciais da cidade.
As fogaças e caladinhos encerram dentro de si uma parte importante da nossa história enquanto testemunhos da nossa memória colectiva. Mas, mais importante do que as formas, os sabores e os gestos que ensinam as receitas, é permitir que cada porção de farinha, de açucar, de ovos e manteiga seja a descoberta da alma, das emoções, dos conflitos, da dor, morte, esperança e vida do povo anónimo das Terras de Santa Maria.
Houve, nos séculos XV e XVI, uma grande epidemia. E o povo foi dizimado. E aqueles que restaram levantaram os braços e os olhos em direcção ao Céu e dirigiram as suas súplicas carregadas de fé ao mártir S. Sebastião. E fizeram promessas e empenharam as suas vidas.
O mártir sorriu. E o sorriso limpou-lhes a alma e as lágrimas. E as lágrimas transfiguraram-se e tomaram a forma de fogaças.
E, todos os anos, no dia 20 do mês de Janeiro, somos cúmplices e testemunhos vivos de uma promessa que nos pediram para cumprir. E cumprimos. Por isso descemos à cidade e enfeitamos as velhas ruas do burgo e damos-lhe vida, cor e emoções. E vivemos a História, e aprendemos que a Fogaça não é apenas um símbolo, mas toda a alma do povo das Terras de Santa Maria.
E, ao enterceder, quando a penumbra do dia confunde os rostos e transforma as sombras em silhuetas, o povo junta-se em pequenos grupos e regressa a casa transportando consigo as fogaças e caladinhos. Durante a viagem relembram momentos já passados e contam histórias que fazem parte da História da cidade. E recordam, a propósito de caladinhos, os anos 30, a polícia política, as tertúlias na Farmácia Araújo, e a perspicácia do Augusto Padeiro. E contam como simples biscoitos passaram do anonimato para a ribalta da glória.
"...Um dia, à noite, aqui em Santa Maria da Feira, o Augusto Padeiro e seus empregados estavam a fazer biscoito sortido com forma arredondada e achatada. De repente, entraram elementos da polícia política e o Augusto Padeiro, com medo, disse aos empregados: Shiu! Calados!.
Um dos elementos da Polícia perguntou: - Porque disse calados?
O Augusto Padeiro, respondeu: Porque estamos a fazer Calados. Estes biscoitos são os Caladinhos"...
E de memórias em memórias, sob a égide do castelo altaneiro, num ritual marcado pelo tempo, o povo cumpre o voto e, de uma forma cúmplice e intimista, ergue o olhar ao Céu e o Santo sorri.
A INVENÇÃO DO AMOR
La nuit n'est jamaiis complète
Il y a toujours puis por entre anúnciosque je le dis
Puisque je l'affirme
Au bout du chagrin une fenêtre ouverte
Une fenêtre éclairée
Paul Éluard
Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor
Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um carataz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
enttre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado
Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo
Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou a TV anuncia
iminente captura A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos Decrete-se a lei marcial com todas as suas consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perdeream-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas
Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros. É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade
Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas
Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam ao temor do castigo
Que todos estejam a postos Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuna perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa
Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância. Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas
Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio a habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçasm baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de baterr
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa nas montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta
Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boites com orquestra privativa
Não estarão nunca aí Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é fácil Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um Vê-los-ão possivelmente
dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher
Mas ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos para nós
É preciso nesse caso ter a coragem para desfechar na fronte o tiro indispensável
Não há outra saída A cidade o exige
Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja
matai-o Mesmo que tenha comido à vossa mesa crescido a vosso lado
matai-o Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana naúsea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até ao fim da noite Evitai o apelo a prece derradeia
uim só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável
Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência
Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adoslecência longínqua
No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios Crê-se
que a situação vai atingir o clímax
e a polícia poderá cumprir o seu dever.
Um homem uma mulher um cartaz denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchettes cor de sangue no rosto dos jornais
É PRECISO ENCONTRÁ-LOS
ANTES QUE SEJA TARDE
Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado
a vida igual a sempre conversas de negócio
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de automóveis
Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em terra afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência o universo do amor
E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los
Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem resistem
sonham meses futuros continentes à espera
Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertam as suas
no silêncio pressago da cidade inimiga
Onde quer que desfraldem o cântico sereno
rasgam densos limites entre o dia e a noite
E é preciso ir mais longe
destruir para sempre o pecado da infância
erguer muros de prisão em círculos fechados
impor a violência a tirania o ódio
Entanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência
COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA
Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as saídas
encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
há inspectores disfarçados em todas as gares de caminho de ferro
É na cidade que é preciso procurá-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários
Não se preocupem com os gastos a Assembleia votou um crédito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo imposto de Salvação Pública
Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio
Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu
Tinta trinta anos e uma família à espera numa aldeia do Peloponeso
O Cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as desculpas do Governo pelo engano cometido
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
Todos compreenderam que não era caso para um protesto diplomático
e depois o homem e a mulher que a polícia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado
SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA
Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a mulher
escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante recompensa
destinada a quem prestar informações que levem à captura do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de todos os habitantes
A questão está posta É preciso resolvê-la
para que a vida reentre na normalidade habitual
Investigamos nos arquivos Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção científica
Oa vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não tinha televisão
deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço
Não voltou ao emprego o quarto está fechado
deixou em meio as «Crónicas marcianas»
perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva
O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno de nota
Gostava de gatos dizem Mas mesmo isso não é certo
Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da gerência
era bem paga e tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica
Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos ba Caixa Usava saia e blusa
e um impemeável vermelho no dia em que desapareceu
Esperam por ela em casa duas cartas de amigas
e o último número de uma revista de modas
a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos
Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa tarde de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade
Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calçadas quebrando as esquinas
Já não podem escapar Foi tudo calculado
com rigor matemáticos Estabeleceu-se o cerco
A polícia e o exército estão a postos Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo
(Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée)
POEMA DE DANIEL FILIPE in "A Invenção do Amor e Outros Poemas") 1961
Há noites melancólicas
em que dispo o sonho e
com as suas roupas visto a alma
dispo o desejo
cubro o corpo
fico refém da ignorância
quando não tenho resposta à pergunta
feita pela noite que entra de mansinho na madrugada para
não acordar o medo
E na horizontal me fico
olhos cravados no céu do quarto
à procura de uma estrela que acolha as inquietações
que não me largam
agarram-se à pele
talvez por gostarem do perfume que uso
vou mudar ou não usar ou
aspergir um repelente daqueles que afastam
os pequenos vampiros alados
não sei
talvez resulte
O silêncio não existe porque é o constante rumor de uma inexistência. O que se ouve, para além do movimento da cidade, é o monótono murmúrio do nada. Apenas sombra de nada, quem nele procura um apelo ou uma resposta não os encontra ou encontra um sinal negativo. Nada diz esse murmúrio nulo, que é o eco inalterável do vazio do mundo, mas quem o ouve sente a radicalidade da sua negação como se a cada momento nos dissesse: Não há.
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA IN «RELÂMPAGO DE NADA», 2004
O construtor, antes de levantar a primeira pedra do dia, contempla e considera as suas feridas que enfraquecem a vontade de construir, com a sua própria substância de cinzas e sangue petrificado, a habitação em que a fénix poderá renascer com todo o esplendor original de um astro. Nada mais lhe resta do que lançar-se a um trabalho para o qual a disposição ainda não surgiu, mas que poderá despertar os impulsos da construção solar e abrir o horizonte luminoso e tranquilo de um rio em torno da morada. A construção está envolta numa espessa bruma e não há nela sinais de figuras ou formas, porque essa névoa é o próprio nada da confusão inicial e o fim de toda a construção como possibilidade de vida e de renovo. É do obscuro fundo da retina que surge um ténue raio cintilante que penetra na massa nebulosa da construção e a faz palpitar e estremecer. O construtor poderá então discernir algumas linhas de força, algumas estruturas e bases numa crescente e sincopada clarificação. Haverá um momento em que ele sentirá que o edifício dança porque tudo se duplica e se reflecte e se anima. De algum modo, é já a fénix que resplandece no fulgor da edificação e na plenitude do ser e do olhar na sua mútua criação
POEMA DE ANTÓNIO RAMOS ROSA in "O Aprendiz Secreto", 2001
AH, PODER SE TU, SENDO EU!
Ei-lo que avança
de costas resguardadas pela minha esperança
Não sei quem é. Leva consigo
além de sob o braço o jornal
a sedução de ser seja quem for
aquele que não sou
E vai não sei onde
visitar não sei quem
Sinto saudades de alguém
lido ou sonhado por mim
em sítios onde não estive
Há uma parte de mim que me abandona
e me edifica nesse vulto que
cheio de ser visto por mim
é o maior acontecimento
da tarde de domingo
Ei-lo que avança e desaparece
E estou de novo comigo
sobre o asfalto onde quero estar
POEMA DE RUY BELO RETIRADO DE "AQUELE GRANDE RIO EUFRATES" - EDIÇÃO ASSÍRIO & ALVIM, SETEMBRO DE 2018
JONATHAN LITTELL
Respostas de Jonathan Littell retiradas de uma entrevista conduzida por Luciana Leiderfarb e publicada na revista "E" - A Revista do Expresso, Edição 2410, de 5 de Janeiro de 2019.
"... Ele (Trump) faz-me lembrar Nixon - embora Nixon fosse muito mais inteligente. Trump é um homem estúpido, parece um daqueles mestres de cerimónia de circo ou de feira [carnival barkers], que berram aos megafones para atrair pessoas."
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Observação da jornalista quando pergunta ("A História não ensina nada?") Foram sentimentos desse tipo que, em muitos casos, mataram os nossos avós.
Resposta: Sim, e pera isso existem milhares de razões. Uma delas é que a globalização tornou algumas pessoas muito, muito ricas, enquanto outras ficaram muito, muito pobres, à beira da miséria. As pessoas estão assustadas, e por estarem assustadas são permeáveis a todo o tipo de discurso populista e xenófobo, à extrema-direita nacionalista. Veja o que se passa com o «Brexit»: é um dado objectivo que a saída do Reino Unido da União Europeia vai arruinar uma economia já de si bastante frágil, mas vence o argumento de que «as pessoas» escolheram este caminho. Isso é mentira, que «pessoas» são essas? O sistema educativo do país é disfuncional há duas gerações, há desemprego de longa duração, há gente que jamais teve um emprego na vida e cujos pais e avós nunca tiveram. Que tipo de decisão informada pode esta gente tomar sobre a UE? O que lhes interessa a UE?
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"... Vamos estar demasiado ocupados em sobreviver. Se nada mudar, podemos até ter uma guerra na Europa. É matemático: se não fizermos nada acerca das alterações climáticas, as previsões são catastróficas. Agora temos um milhão de migrantes. Imagine 20 ou 30 milhões, a virem de toda a parte, porque as suas regiões foram destruídas. Nessa altura, toda a gente se vai passar, e muito sangue vai ser derramado. E as democracias ocidentais vão sucumbir nos seus valores elementares - o que é típico da forma como os seres humanos gerem as coisas. Criamos todos estes brinquedos, estes computadores, estes smartphones, e nem sabemos como os usar. Uma das mais complexas conquistas da humanidade é utilizada para tirar selfies e fotografias de comida, que partilhamos nas redes sociais.
"(...) Amplificado (egocentrismo) por estas máquinas, que foram desenhadas para aumentar os traços mais negartivos das pessoas. Gostemos ou não do comunismo, o movimento que o originou foi o das pessoas a unirem-se e a tentarem mudar a sociedade. O mesmo acontece com as democracias: é sempre a acção colectiva que faz o mundo avançar. Todos estes brinquedos estão a conduzir à desintegração da sociedade, cada um está a olhar para si próprio, a entreter-se a tirar fotografias. Nesse contexto, as pessoas mais estúpidas ficam muito vulneráveis a tipos como Trump ou Bolsonaro. E as pessoas inteligentes estão demasiado ocupadas com as selfies para empreender algum tipo de acção. Então, quando Lisboa se tiver afundado no Oceano Atlântico, vão poder fotografar-se enquanto se afogam e vai ser genial! Vão com certeza captar momentos muito bonitos."
EUGÉNIO DE ANDRADE | 1923-2005
ENCONTRO NO INVERNO COM ANTÓNIO LOBO ANTUNES
Com as aves aprende-se a morrer.
Também o frio de janeiro
enredado nos ramos não ensina outra coisa
- dizias tu, olhando
as palmeiras correr para a luz.
Que chegava ao fim.
E com ela as palavras.
Procurei os teus olhos onde o azul
inocente se refugiara.
Na infância, o coração do linho
afastava os animais de sombra.
Amanhã já não serei eu a ver-te
subir aos choupos brancos.
O resplendor das mãos imperecível.
POEMA DE EUGÉNIO DE ANDRADE IN "HOMENAGENS E OUTROS EPITÁFIOS".
CHARLES BUKOWSKI
O MAIS FORTE ENTRE OS ESTRANHOS
não os encontrarás com regularidade
pois não se encontram
onde se encontra
a multidão
estes seres ímpares,
não há muitos
mas deles
vêm
os poucos
bons quadros
as poucas
boas sinfonias
os poucos
bons livros
e outras
obras.
e dos
melhores
entre os estranhos
talvez
nada.
eles são
os seus próprios
quadros
os seus próprios
livros
a sua própria música
as suas próprias
obras.
às vezes penso
que
os vejo - por exemplo
um determinado
velho
sentado num
determinado banco de jardim
de uma determinada
forma
ou
uma cara fugaz
num carro
que passa
em direcção
contrária
ou
há um certo
gesto de mãos
do rapaz ou
da rapariga
a embalar compras
em sacos
de supermercado.
às vezes
até é alguém
com quem se vive
há algum
tempo -
dás conta de
um fugidio
olhar luminoso
que nunca lhes viras
antes.
às vezes
apenas notas
a sua existência
subitamente
e de forma vívida
alguns meses
alguns anos
depois de
partirem.
lembro-me
de um caso
assim -
ele tinha
cerca de 20 anos
bêbedo
às 10 da manhã
a fitar
um espelho partido
em Nova Orleães
cara sonhadora
contra
as paredes
do mundo
para
onde
fui eu?
POEMA DE CHARLES BUKOWSKI IN "OS CÃES LADRAM FACAS" - EDIÇÃO ALFAGUARA, NOVEMBRO DE 2018