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Ricardo Araújo Pereira
O único texto económico que estudei com afinco foi o ‘FMI’, do José Mário Branco
Passaram dez anos sobre a queda do banco Lehman Brothers e a data foi assinalada por pessoas que ainda não perceberam o que se passou. Eu também ainda não percebi o que se passou, mas ao menos não estou a tentar. Descobri muito cedo que o mundo económico-financeiro era incompreensível, pelo que prefiro não perder tempo a compreender como se perde dinheiro. O único texto económico que estudei com afinco foi o FMI, do José Mário Branco, e a certa altura ele sugere: “entretém-te, filho, e vai para a cama descansado que há milhares de gajos inteligentes a pensar em tudo neste mesmo instante, enquanto tu adormeces a não pensar em nada”. É um bom conselho, embora contenha um erro. Os gajos não são inteligentes. Toda a gente que agora se pronunciou sobre a crise provocada pelo Lehman Brothers disse que é uma questão de tempo até ocorrer outra crise igual. Ou seja, não houve inteligência para prevenir o que aconteceu nem para evitar que volte a acontecer. A razão pela qual os gajos parecem inteligentes é a do costume: inventaram um jargão impenetrável que dá, a quem não o domina, a sensação de que se está a falar de coisas muito complicadas. É o chamado “método Luís Freitas Lobo”. Toda a gente já viu um jogador de futebol que joga nos flancos a correr para a grande área para tentar ajudar os companheiros do centro da defesa. Mas quando Freitas Lobo diz que determinado lateral está a fazer a “basculação interior e dobrar nas costas dos centrais”, deixamos de saber exactamente o que se passa. É de propósito.
O vocabulário económico-financeiro é a um tempo mais imaginativo e mais simples do que o do futebol, uma vez que consiste numa tentativa de dizer sempre a mesma coisa mas de modos obscuros diferentes. Por exemplo, “créditos subprime” significa, na verdade, “ganância de sacar o máximo dinheiro a quem deseja comprar casa”. “Produtos de risco” quer dizer “ganância superior à ganância habitual”. “Chancela de qualidade das agências de rating” significa “licença para ser ganancioso”. “Non-performing loans” é outro modo de descrever “casos em que a ganância era de tal forma desmedida que acabou por correr tragicamente mal”. E é tudo. Posto isto, não há muito mais a fazer do que uma pessoa entreter-se e ir para a cama descansada.
(Crónica publicada na VISÃO 1333, de 20 de setembro de 2018)
Um mosquito atropela uma gota de água, perde o equilíbrio, dá meia dúzia de cambalhotas e aterra em cima da minha mesa. Recompõe-se, emite um zumbido irritado e olha-me com ar provocador iniciando um jogo de sedução e intimidação, exibindo sua trombinha afiada como se fosse um bandarilheiro e assumisse que eu faria o papel de touro. Quer vingar a humilhação sofrida. Quer sangue. Precisa atacar. Aparentemente eu sou o gigante Golias e ele o minúsculo David, mas espero que a história tenha um final diferente. Não tenho estratégia. Nem de defesa, nem de ataque. Sou demasiado grande para defender todo o corpo e ele demasiado minúsuculo e demasiado rápido para o apanhar com a mão. Actuarei em função das circunstâncias e da evolução da refrega.
O jogo começa. O pequenote emite um zumbido sarcástico - pareceu-me ouvir uma gargalhada metálica, assassina - e volteia em redor da minha cabeça como se fosse um artista a rolar no poço da morte. O ruído produzido por esta sanguessuga com minúsculas asas é irritante e destabilizador. Agito os braços freneticamente em tentativas desesperadas para o apanhar. Estou a ser humilhado. Uma enorme frustação toma conta da minha vontade, e quando julgo que o vou apanhar é em mim que esbofeteio. E, de repente, acontece o ataque final. Violento, descarrega em mim toda a sua ira e pequenas erupções ardentes surgem no lugar das picadelas. Satisfeito retira-se com um voar de vitorioso exibindo um sorriso cínico de grande vencedor.
Discretamente saio de cena. Cabisbaixo, derrotado, humilhado.
JÁ NINGUÉM ESCREVE CARTAS DE AMOR
Já é noite, meu amor!
As palavras nocturnas têm mais força
são mais audíveis, mais serenas, mais amáveis,
mais inteligentes.
Não é preciso gritar,
basta sussurrar ou deixar
escorrer o sorriso sobre a pele para não perturbar
a noite e o pássaro solitário adormecido no
galho triste da árvore nua.
Já é Outono.
As noites mais longas adormecem mais cedo e
já ninguém recebe cartas de amor,
despedida, agradecimento...
"Nós por cá estamos bem... e por aí?"...
que entretinham o leitor e os ouvintes
iluminados
pelo crepitar da fogueira.
É Outono, meu amor,
e já ninguém escreve cartas de amor
em papel com cheiro de alfazema
que, expectantes, abriamos com mãos trementes
e a alma em alvoroço.
"Amo-te"...
palavra mil vezes repetida,
corações esculpidos com caneta de tinta permanente.
Oh! amável ingenuidade.
Já é Outono, o calendário assim o diz
e as marcas gravadas na nossa pele
assim o testemunham e o nosso inverno
está aí ao virar da esquina.
De 27 de Setembro a 7 de Outubro, Óbidos é Ponto (d)e Encontro. Encontro de escritores, leitores, artistas, músicos, livros, letras… e muitos Pontos de vista diferentes.
Manuel de Freitas
GRANDE HOTEL DE PARIS, QUARTO 312
Um amigo meu disse-me para nunca
meter gaivotas num poema.
O que seria fácil noutra cidade qualquer,
onde o ruído do seu voo não acompanhasse
tão de perto a minha insónia, a vaga
inquietação do teu corpo adormecido.
Alastra da Sé aos Clérigos, um alarme branco
que a janela deste quarto aceita há mais de
duzentos anos. Serão outras as gaivotas
e as cabeças que, depois de muito ou nenhum
sexo, se rendem ao limbo brasonado dos lençóis.
Mas eu vim para a casa de banho escrever
este poema simples, cheio de versos inúteis,
que me exige as horas que não tenho.
Sem ele, teria sido um dia grácil e ligeiro
como a morte, duro e inaceitável
como a vida. Pois consegui, antes destes
adjectivos todos, comprar o belo e o sublime
por menos de oito euros. E o livro que Jorge
de Sena dedica sem gaivotas, «à cidade do Porto».
Deveria ser fácil como um beijo, este poema.
Mas não. Chegamos à janela e só vemos
lixo, prédios devolutos, uma coroa
de terra a esboroar-se.
E invejamos,
das gaivotas, a pungente desrazão do voo,
essa alegria de não ter palavras
sob o céu limpo que nos mata.
Poema de Manuel de Freitas dedicado à memória de Jorge de Sena - in Terra Sem Coroa
"... A razão pela qual as pessoas não querem saber da sorte do planeta, nem do aquecimento global, da poluição dos ares, da morte das árvores, da agonia dos animais, dos furacões e das tempestades, dos mares de plástico, dos degelos e das secas, dos incêndios selvagens e das inundações, é simples. Na civilização, vemos a natureza ao longe, mediada por ecrãs e máquinas, solicitada pelos confortos da supremacia humana. Protegidos pela tecnologia, a previsão e a distância. Se estivermos dentro do fogo e da água, sujeitos à violência dos elementos, aprendemos a respeitar a natureza em vez de acabar com ela. Condenámo-nos por preguiça e egoísmo, e já se ouve o silêncio dos pássaros no planeta Terra."
Excerto da crónica "O Silêncio dos Pássaros" escrita por Clara Ferreira Alves - REVISTA "E" - JORNAL EXPRESSO - EDIÇÃO 2395 DE 22 DE SETEMBRO DE 2018
Quem disser: "Nunca tive dias difíceis, maus momentos... a minha vida é perfeita"...
ou é Deus, tolo, mentiroso, ou um grande idiota.