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Reynaldo Pérez Só
esta é uma cadeira
só uma cadeira
nela
sentou-se meu pai
meus irmãos
todos
os meus melhores amigos
agora
está sozinha
sem ninguém
uma cadeira.
Poema do poeta venezuelano Reynaldo Pérez Só
ALEXANDRA DE PINHO | TRANSFRAGMENTOS
NÃO HÁ NADA COMO UM BOM CHARUTO
O mar está calmo esta noite
como um colchão,
e o espaço interior habitado
isso sabemos
com certeza, a
uma mesa com
uma toalha de jornal
completo com cabeçalhos que encabeçam
um bem-vindo à tua vida
a observar os poemas
a passar os olhos como carros
ou palavras que são o mesmo
Descontrai-te dizem as árvores empolando-se
na sua inocência,
Descontrai-te dizem os pirilampos, descontrai-te
Descontrai-te
o momento chegará,
as árvores aplaudem.
Poema de Larry Sawyer
ATRAVESSANDO O DESERTO SONÂMBULO
Despe as tuas roupas e deixa-as numa longa cobra
Atrás de ti como as estrelas caem sobre ti no céu
Qualquer coisa te segue e se suspende do teu respirar cansado
E resmungas qualquer coisa que tropeça na tua boca
Ergues uma oração que paira sobre ti como uma nuvem
Enquanto a tua pele nua reflecte as paisagens do teu suor
Despe as tuas roupas e deixa-as numa longa cobra
Atrás de ti como as estrelas caem sobre ti no céu
Desejas acordar e isso é o desejo que
Não acerta na tua cara para ir repousar nas cicatrizes das dunas
Para onde quer que olhes vês o teu próprio corpo
E o som do proprietário dos ossos
Ali a caminhar onde o fogo estava
A respirar hesitantemente estas palavras
Poema de Larry Sawyer, poeta americano
Manuel Aires Mateus, arquitecto, é o vencedor do Prémio Pessoa 2017.
O Prémio Pessoa é concedido anualmente à pessoa de nacionalidade portuguesa que durante esse período e na sequência de uma atividade anterior tiver sido protagonista de uma intervenção particularmente relevante e inovadora na vida artística, literária ou científica do País. Esta é a 31.ª edição do Prémio Pessoa, uma iniciativa anual do jornal Expresso, com o patrocínio da Caixa Geral de Depósitos e tem o valor de 60.000 euros.
De acordo com o comunicado emitido pelo júri, constituído por Francisco Pinto Balsemão (Presidente), Emídio Rui Vilar (Vice-Presidente), Ana Pinho, António Barreto, Clara Ferreira Alves, Diogo Lucena, Eduardo Souto de Moura, José Luís Porfírio, Maria Manuel Mota, Pedro Norton, Rui Magalhães Baião e Rui Vieira Nery "a sua arquitetura é moderna, abstrata e contemporânea, mas parte de uma recolha de formas e materiais vernaculares portugueses, que integra de um modo exemplar. A construção de formas e volumes é feita com um caráter inovador, por subtração de matéria, esculpindo vazios, contrariando assim o sentido clássico do projetar. Na obra doméstica e na recuperação de edifício é raro provocar ruturas, mas não cede a mimetismos fáceis, conseguindo estabelecer uma continuidade entre passado e atualidade."
Gonçalo M. Tavares
(...)
1
Embora a humanidade demore tempo a chegar
a um sítio, devido a imprevistos espantosos
e a obras no caminho, a natureza, essa,
nunca se atrasa.
Sempre com a luz certa, a natureza prossegue.
Era já, então, fim de tarde, quando Maria E abriu a porta
e disse: Oh, caro Thom C, que bom ver-te,
trouxeste um amigo?
2
No jornal as notícias podem, em dias de chuva,
ser dobradas para caberem no bolso, permanecendo secas.
Qualquer notícia grandiosa, um terramoto mortífero
ou um palácio recém-inaugurado, quando bem dobrada,
cabe num espaço de 8 por 6 centímetros,
o que não deixa de surpreender. Esta imagem é ainda relevante
para quem não quer perceber a importância e o espaço
ocupados pelo universo ou pelos países adjacentes
na vida de um pequeno cidadão.
3
E mesmo um indivíduo de estatura mediana
poderá esquecer, durante meses,
o mapa da mundo no bolso de trás das calças.
Tal facto, parecendo paralelo à nossa história,
não deixa de se cruzar com ela, mostrando que nas ideias
o infinito é coisa para o início da manhã
do dia seguinte.
4
Maria E convidou, então, delicadamente, Thom C
e o seu amigo Bloom a entrarem, oferecendo-lhes de imediato
poltronas cómodas, whisky perfeito, aperitivos,
uma vista deslumbrante sobre as chaminés de uma fábrica
de grande importância na região,
e, pormenor não irrelevante, mostrando ainda, nos movimentos que fazia,
aquilo que de longe eram os melhores indícios do apartamento: seios felizes,
pernas de fazer parar o pensamento e
nádegas espantosas, imprescindíveis, duplas e fortes.
Esta é a melhor região de Londres, disse Bloom,
enquanto da janela admirava o belo e espesso fumo negro
que da fábrica saía.
5
Porém, Bloom não se sentou logo nas poltronas
que lhe pareciam ter um conforto excessivo.
Com prudência e curiosidade perguntou
se poderia passear um pouco por tão delicioso apartamento
que, apesar de pequeno, era prometedor,
sendo que todos sabem
que um homem pode demorar mais tempo
a percorrer a minúscula casa da mulher que deseja
do que a atravessar o mundo, de uma ponta à outra,
com mochila às costas.
(...)
Canto II (Excerto) - Uma Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares, págs. 73 e 74 - Edição Editorial Caminho, Agosto de 2011
entrada:
1 € (leitores inscritos na biblioteca municipal, estudantes e >65 anos)
2 € (público em geral)
LARRY SAWYER
PARA EDWARD MUNCH
Os gritos dos montes
estão inchados de sentido
enquanto a boca se enche
com a cor azul
que gela o céu
e rouba a frieza
pelo sangue ardente
ou será que isso não funciona
esta manhã
à hora do costume
como se nos pudéssemos atrasar
para a noite que chega
através da pele
entrando pelos poros
horas de halogéneo irradiando
o seu sentido
como um coração a bater,
algumas nuvens nervosas, um
Inverno.
Poema de Larry Sawyer
ENIS BATUR
PHTONOS
"Diz-se que na Grécia antiga alguns deuses não tinham corpo.
O que os mantinha não era uma figura, mas um som, um sinal."
Puxou o seu cabelo de prata para trás das orelhas,
fazendo uma pausa entre as frases:
"o que sempre me faz recordar o Requiem de Mozart:
se uma mão ajudar, a morte e a vida podem sobreviver
no mesmo vaso de plantas. Se uma alimentar a outra,
qual é esta, pergunto-me? Algumas perguntas a que não podemos responder
infiltram-se pelos anos, fazem poça na nossa vida."
Distracção. Invocando uma manhã chuvosa de Salzburgo, talvez
a memória lhe esteja sobrecarregada por imagens do hospital
para onde fora levado, a seguir à noite em que começou
o último andamento do seu concerto para violino.
"Por detrás do coro esconde-se o próprio medo, solitário,
inultrapassável: escolher para que lado se virar num cruzamento
parece-me ser a mais glacial das decisões
- sorri com pesar por um momento - talvez seja por isso
que nunca consegui passar o portal que alcancei."
Semente dura, solo fértil - se regados separadamente,
também se alimentariam um ao outro: raízes misturam-se, num enredamento impossível,
tece-se um emaranhado pela sobrevivência lentamente partilhada.
Mas se é mesmo verdade que alguns deuses vivem sem corpo,
então o som phi faz assentar uma mancha escura na sala:
O vaso racha-se, o solo seca, tantas mortes
podem elevar o seu pendão na nossa vida enquanto vivemos.
Poema de Enis Batur, in O Divã Cinzento, 1990
MICHEL DEGUY
A EUROPA EM LISBOA
O amor "libertou-se" da prisão de Amor
Olha: fica esse belo vazio
do amor esvaziado o lenço de mármore
que a amante agitava ao oceano agitado
ou à cativa amante um trovador cativo
E agora descreve o castelo de água pétrea
O castelo de gávea capitaina
Que fez renascentistas pensarem feudalismos
Voto cumprido de um príncipe cumprindo o verso de Gôngora
"de uma torre de vento delgadamente erguida"
E agora
O sereno tapete do Tejo estirado retira-se a seus pés
E também o saber se retirou
Como um refluxo sob a secura ignara
Em que as novas despejam uma espuma de datas
Da torre de Belém à torre de Stephen
Não quero pôr em causa o sentido da visita
Que o passe cultural poliglota autoriza
Nessa gaiola fui atrás da mulher da limpeza
A quem incumbe zelar pelo vazio bem vazio
Amarrar favores da pedra ao terceiro patamar
E arrumar turbantes, de pedra, escudos, de pedra,
de sultão, de cruzado
abrir caminho à volta
do Amor que não regressará.
Lisboa, 1993
Poema de Michel Deguy traduzido por Vasco Graça Moura
AMADEU BAPTISTA
ALBERTO MORAVIA: O PARAÍSO
Vi como a actriz levitou entre as sete paredes da sala
e soube imediatamente como isso era bom.
O céu de antracite dos últimos dias
foi um sinal do tempo nos meus olhos
que de uma árvore a outra projectou
um momento único de calor e vida.
A actriz era o primeiro êxtase
nos vários segmentos dos meus olhos,
silenciosa sequência de roldanas
onde a luz é um milagre e algo palpita
nas têmporas como uma recordação.
Falou da ausência, a actriz?
Fumava em Roma num vestidinho negro
tão frágil como uma pérola
e actuava sobre as palavras como se algo real
estivesse para acontecer à nossa frente.
Sentada no banco de madeira,
com os botões da camisa sensulmente abertos
e os lábios vermelhos que lembravam um Verão próximo
do passado
ela esculpia na terra
algo tão perturbador como o princípio do mundo.
Foi bom olhá-la nos olhos,
tomar a eloquência por uma evocação
onde o silêncio tem o poder de despertar no corpo
um ritmo alucinante de febre e de loucura.
Ela, a actriz, nada podia fazer,
embora invocasse a infância com todas as forças do espírito,
em nítidas sucessões de terríveis marés-vivas.
Sentei-me e aplaudi.
Ela era sobretudo o exercício das coisas que nos fazem aproximar da solidão dos homens,
a cidade cercava-a e entontecia-a
porque algo se lhe colava à pele, um enigma, uma ave, talvez,
essa memo a que perdemos o rastro entre Bari e La Spezia
quando os múltiplos sinais da representação nos intimidavam
a conferir à comunicação o estatuto do medo e do fascínio.
A actriz? Agora podes vê-la.
Entre os toldos amarelos e azuis e a areia ocre dessa praia
ela penteia meditativamente os cabelos de oiro,
embala a boneca de trapos,
canta sentada num trono onde cada um de nós já se sentou
um dia
para se sentir espectador de algo fascinante
que em silêncio responde à nossa solidão.
Escuta-a.
Ela chama um nome desconhecido num rumor incontornável,
o nome do homem que partiu,
persegue-o num único movimento,
a sombra do seu corpo alonga-se na ausência
e o arco dos seus braços transfigura-lhe o olhar,
é uma mulher que vem com o rosto iluminado pela escuridão
para regressar do outro lado da noite
com uma criança nos braços,
ela própria,
um peixe vermelho que cintila
como uma pedra na distância
que vai do inferno ao paraíso,
de Capri a Peruggia.
Não é um incêndio que ela tem na boca?
A actriz tem na boca um incêndio
que é tanto a ternura como a exaltação,
ela entregou-se ao grito pela incandescência pura,
é um sonho e exalta-se pela beatitude de um crime
nesse sangue espesso
que é um círculo fulvo noutra esfera do mundo,
um brilho que se amplia numa barra de vidro
onde o rosto reflecte mil acrobacias
que reencontra a pedra onde a limpidez preserva
a tensão dos rostos em cada expectativa.
E a actriz sorri ainda porque o poder da luz amplia nos lugares
formas tão indistintas como as que há no coração
e outras tão belas como as corças que correm na planície
e nós pensamos que nos pertencem com o mesmo vigor
da agilidade do salto que empreendem.
Chamaste? Viste como isto era bom?
E o sortilégio era esse,
a magia do mundo,
a passagem de um lugar para outro lugar
onde tudo era possível
e um tiro à queima-roupa sobre o nosso peito
continha em si a graça de nos devolver à vida.
POEMA DE AMADEU BAPTISTA
CHARLES BUKOWSKI
ENTÃO QUERES SER UM ESCRITOR?
se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.
se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.
se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.
não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.
quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.
não há outra alternativa.
e nunca houve.
POEMA DE CHARLES BUKOWSKI
FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
CATÁLOGO BOTÂNICO DA PRIMAVERA
Principia a estação, com o seu ruído
feito de sons de pássaros, que eu decifro.
Mais difícil sinal são as cores várias,
que despontam cada dia e eu vejo,
ano após ano, iguais e singulares.
Primeiro, um pouco além, o lírio roxo,
que me traz consigo a criança viva
que o colheu e, tal como a um barco
o fez singrar, só, roxo, macerado,
na água que descia por um rego.
Um lírio com a mão que o cortara
já decepada e presa ao passado,
sem o seu corpo. Vejo as três pétalas
assim a confundir-se com os três dedos,
como se as nossas mãos por vezes vivessem
mais do que os passados corpos.
Depois, foi esta a manhã das camélias
brancas, cravadas com dureza em rostos,
que, ainda de olhos fechados, tocam
as corolas em busca do seu cheiro.
São camélias mortais, e ainda atraem
a face dos mortos, que algum dia
as bafejaram com o seu hálito próximo.
Manchas brancas de círculos informes,
cada círculo contendo outro círculo.
E, no centro de cada rosto, apenas,
em cada Primavera, duram os olhos.
Já caem as glicínias, de alto, sobre
o esplendor do crânio ou do cabelo.
São cachos também roxos, em manhãs
de assombro, por cada dia mais
trazer um diverso cacho pendente.
Misturam-se com a cabeleira antiga
estes cachos de glicínias de hoje.
Mas são absolutos, novos, singulares
os momentos com a sua luz e cor,
os seus insectos e as suas sombras.
Alguém, que os colhera os fez prender
entre cabelos fecundos, de orelhas,
adornos para os filhos da Terra.
Estão, depois dos lírios e das camélias,
para salvar, em cada dia novo,
o viço dos cabelos, mais eternos
do que a já sepultada carne. Carne
de alguém que tinha um nome seu e que
se oferecia, com deleite, ao Tempo.
Só pode ter sido a de parentes, dúbios
cohabitantes do ser que relata
esta actual Primavera, com saudade.
A Primavera, que me surpreende
somente por estar a ser olhada.
Se aquela rosa rubra, na manhã
em que surgiu, logo fosse ignorada,
eu não estaria aqui neste papel,
dando-me inteira à nova Primavera.
Recebo-a, olho-a como um visitante,
aliás porque, na sua latada,
ela está perto do meu sólio. Rosa
de repente vista, primeira rosa
na natural frescura. E, também,
o vento lhe tocou, e já a abrem
aquelas mãos que haviam sabido
lançar barcos de pétalas aqui.
Junto da rosa só cabe esta boca,
pronta a beijar com amor as suas línguas
ou a beber a linfa que é da abelha.
Havia uma boca assim, sem a face,
a respirar ao ritmo dessa rosa,
que hoje nasceu fadada para ser
a sempre minha, única, igual.
A cor da rosa mostra-me o lugar
daquela boca, e eu quero sentir-me
aqui e ali. Pois vejo-te, rosa,
e vejo a outra, a que foi beijada.
Assim, não posso mais do que olhar.
Rosas terás em redor, solitária.
- Eis os melros, rasteiros, que insistem
em tornar-se evidentes, saltitando
sobre cômoros de terra. Mas hoje
perante o mistério das flores súbitas,
são como eu, embora não como eu,
com a negra plumagem que os cobre.
Sobre a lage do poço correm dois,
negros contendores no mesmo sprint,
músicos de assobio que eu bem entendo.
E, próximos da rosa, mas alheios,
estão a nascer os narcisos, de amarelas
frisadas campânulas e de sépalas
perto do solo, e que se elevam
na luz de cor. Também uma figura
de mulher genuflectida as colhia,
e uma criança, oscilando no riso,
quer ter para si uma flor solar.
Junto aos eternos matizes das pedras,
a cor dos narcisos, nítida, clara,
evoca esses desejos saciados
em tempo ido: o da mulher, prendendo-os
no seu seio, e os da criança, seguindo
o movimento que pertence ao tempo.
Hoje, como hei-de separar os corpos
da haste e da corola dos narcisos,
pois a mancha amarela tem a forma
humana contida em si, curva, erecta.
Salva-me o vermelho vivo da rosa,
que atrai a cor intensa dos narcisos
para contraste, outra tensão,
que eu revivo, amando o beijo da rosa
e a prece ao sol destes narcisos.
Mas outra prece, hesitante, desponta
ao raso dos terrenos, dispersa, ágil.
Flores que vibram esguias e tácteis,
de um vermelho ardente, submissas
como pálpebras, ao cair da noite.
Abrem-se na aurora, comovidas
pela unção da luz, porque se chamam
páscoas. E são amadas, benditas.
Anunciam a passagem eterna
da luz sagrada entre noite e aurora.
A aragem devagar as sacode,
finas folhas e hastes a dançar,
em pleno dia de êxtase, no sono
das corolas exaustas pela noite.
Noutra manhã, eu vejo, deslumbrada,
a poalha da brancura florida
que envolve os troncos velhos da ameixoeira,
flores que o ar conhece e o vento leva,
há muito, para lugares e tempos.
Poalha em que não estão vultos humanos.
Apenas um nó de sombra, atrás
de cada flor, mostra a imagem de antes
ou a espessura de um fruto futuro.
São as flores do jardim que guardam o enigma,
pois cada espécie vista tem em si
um sinal visível de outra estação.
Flores solitárias que, uma a uma, vêm
ligar-se a fragmentos de vida antiga.
- Repetem-se os melros p'lo empedrado,
a debicar sempre nas pedras húmidas,
sob o fascínio do cálido dia.
Tão nítidos, tão certos, a presença deles
não cabe ao lado de uma flora rara,
a desta Primavera em narração.
Também os loureiros em flor, visíveis
ao longe como nuvens, são visões
completas, com a floração e as folhas
na mesma cor de sempre, indecifrável.
Alguém pega no ramo do loureiro,
num verso clássico, e o dá a toda
a humanidade, pois a memória
da poesia passa de poeta a poeta,
para o mundo. Se o meu relato é vivo
é porque olho c'os outros a Primavera,
e nesta Primavera eu vi melhor,
presa do assombro do que é novo e antigo.
Os meus olhos, o espírito e as mãos
pegam em cada imagem de uma flor,
em cada dia de visão e ganho.
Mas a perda, enfim, virá somar tudo
igual a si mesmo, uno, passado.
E, de repente, uma flor de palavras
muito branca chega até mim, e é
esta estação, nesse florir de goivos.
Uma carta traz-me inscrita as palavras
de Eugénio, goivos, e o seu eflúvio.
Esta transcreve-a ele de Pessanha,
diante de tão nítidos canteiros.
Grata, prendo-me a esses elos vivos
da corrente de vozes, que se oferecem
aos ouvintes, depois de recolherem
o real, o findo, o que foi amado.
Aqui, depois do loureiro, floriu
a acácia, também sem qualquer vulto
escondido no seu florir imenso.
São árvores solitárias, constantes
na pura relação com a luz solar.
E, talvez por fim, neste infinito,
uma inflorescência de gladíolo
rosada, erecta, se tenha aberto.
Vem de um único bolbo, soterrado,
está só, entre a verdura vária.
Junto de si viveram outras hastes
também de gladíolos, há muito tempo.
Braços levaram-nas juntas, consigo,
em braçadas de amor e de alegrias.
Os braços são as linhas de matizes,
unidas em redor da cor suavíssima
das flores de hoje, a florir aqui.
Cada manhã me põe diante dos olhos
nova forma de cor e luz e, às vezes
figuras esbatidas de outra estação
igual, porém perdida já, inane.
- Melro audaz, que te aproximas mais
de mim, ou do que eu fui e agora sou,
não vejas que eu represento o Tempo.
A tua colheita de grãos e de larvas
seja o teu mais subtil pensamento.
- E, afinal, entraste no meu espaço,
num intervalo entre o concreto e o abstracto.
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão
Carcavelos, Março, 1997
____________________________________________________________________________________________
Mário Cesariny
Poesia
Edição, Prefácio e Notas - Perfecto E. Cuadrado
Editora - Assírio & Alvim (Chancela da Porto Editora)
1.ª Edição - Novembro de 2017
Distribuição - Porto Editora
Páginas - 773
TERESA RITA LOPES
CONVERSANDO COM OS ASTROS
1
Confesso que me desiludiste um pouco
Quando ouvi dizer que estavas para chegar
pus-me ansiosa à tua espera
Foste o primeiro
cometa da minha vida
Antes de te conhecer pensava
que serias maior mais vistoso mais em fogo
Depois
aceitei o teu recato a tua timidez
e tentámos
acertar o passo e o olhar
Encontrámo-nos no céu
da Cacela e depois puseste-te a caminhar comigo
até Lisboa
Aqui perdemo-nos de vista
Há luz eléctrica
a mais Nesta cidade até do céu somos despossuídos:
o buruburinho das luzes obscurece os astros
que fogem
a esconder-se atrás dos montes mais próximos
Dizem
os cientistas que voltas daqui a três mil anos
Que é isso para o deus de quem és brinquedo
e eu também?
Em breve regressarás ao teu abismo
e um dia destes também eu mergulharei no meu
Marquemos já encontro para o dia 11 de Abril
de 4997
à esquina do crepúsculo
2
Eis-te de repente Espreitas e devagar
levantas-te do leito do rio afogueada
sacudindo a saia
Que fazias aí deitada com ele
minha magana?
ah lua! maluca lua que não tomas
juízo!
Aqui estamos de novo cara a cara
sorriso no sorriso
Quantas vezes já nos olhámos
assim nos olhos tão enamoradas?
Saboreio
daqui deste meu décimo andar jardim suspenso
todos os momentos da tua caminhada céu acima
Agora já estás perfeitamente senhora de ti
redonda e rutilante
e olhas de alto o rio
que se aquieta para te receber e espelhar
tua inevitável retirada
Ninguém te dá a idade
que tens
Quem havia de dizer que ficaríamos
grisalhas um dia!
Mas a ti fica-te bem esse
cabelo de neve luminosa O meu pediu ao Outono
o ruivo fulgor de suas folhas
Ah lua amiga minha
da longínqua infância da perdida juventude
cúmplice de tanto fervor adulto sozinho e
comungado confidente de tanto pranto em fogo
transformado à tua alquímica maneira em fina
prata
aonde vais buscar esse sorriso manso
teu sereno aceitar de tudo o que acontece
tua ironia doce?
Quem me dera libertar-me assim
da canseira do dia!
Minha amiga minha Mãe meu amor
porque és tudo isso ao mesmo tempo
afaga o áspero
dorso da minha irrequieta mágoa
e afoga-me no teu
mar de luar
que é água e ar e fogo ao mesmo tempo
CONVERSANDO COM OS ASTROS - POEMA DE TERESA RITA LOPES
BORIS HRISTOV
O HOMEM SOLITÁRIO
Tem uma cicatriz na testa e senta-se sempre na ponta,
mesmo quando é grande o homem solitário é pequeno.
Junta ervas ou talha com a tesoura das recordações,
se não tem nada a fazer - e arrasta a sua manta gasta.
Uma cabeça de cavalo ilumina os campos e
o homem solitário vai apenas olhá-la - não quer que tenha uma crina.
Enquanto os outros gritam ou falam da arte
à mesa, o homem solitário apanha as moscas e deixa-as voar.
Mas se escreve versos deixará sem dúvida
uma lágrima nos olhos ou um arranhão na vossa memória.
Tem um lar e sopa quente, mas está tão só;
a sua vida - abandonada como uma arca no fundo do corredor.
Que a sua casa se desmorone,
comerá cinzas, mas não se ajoelhará perante ninguém.
Em que fogo ardeu? E sob que ferro de passar?
Para o saber ter-se-á de beber com ele muito vinho.
Enquanto caminha com uma mancha na camisa limpa,
o homem solitário desaparece na multidão como átomo.
Com uma das mão leva um livro para a sua alma doente,
com a outra o homem solitário segura a pequena corda que traz no bolso.
Poema do poeta bulgaro Boris Hristov
EVA CHRISTINA ZELLER
NO PALÁCIO DO MARQUÊS DE FRONTEIRA EM LISBOA
Um gato preto guia-nos:
queiram ter a bondade os aposentos particulares do Marquês
aqui tomam-se as refeições
aqui acende-se a lareira à noite
atrás destas portas vivem os gatos
não, crianças não
azulejos centenários
batalhas caçadas um pastor pintado
voilá e aqui fora queiram ter a bondade sob o azul
o azul cacos mosaicos azulejos reunidos e desbotados
Poesia Diana Neptuno
a Justiça é cega minhas senhoras
mas ali estão so cisnes pretos devido ao ruído da cidade passam pelas grutas
e os seus pescoços
não, vejam com os vossos próprios olhos
e no parque cuidado por favor
em restauro as fachadas
já muitos caíram estenderam-se
como a deusa da Vitória dentro da hera
compreendem, todo esse tempo e o ruído
o betão nos ossos corrói
um pequeno rosto olha-me, vindo do arbusto de buxo
como se fosse o meu
POEMA DE EVA CHRISTINA ZELLER