RUY BELO
ENGANOS E DESENCONTROS
Canto o homem solar que pisa a neve
A palavra confirma-se em silêncio
as metáforas sobem as metáforas descem
O homem é desejo e não trabalho
é essa mesmo uma das suas definições
Todos os paraísos se baseiam no presente
mas ao matar a morte matam o prazer
O agora do corpo une-nos à morte
O que é que eu fiz da minha juventude?
pergunta tristão uma vez findo o sortilégio
que o unia a isolda a loura e do rosto claro
Canto esse antigamente esse tempo impossível hoje para nós
quando rivalen o súbdito de marc
com o furor dos amadores da cornualha
se apaixonou por brancaflor irmã de marc
e assim deu início a um conto de amor e da morte
Isolda amou tristão com louco amor
e ouvia o seu cantar como só canta
o rouxinol quando o verão acaba
Ambos refugiados na floresta de morois
vêem chegar a estação quente uma terceira vez
tão belos e imóveis como estátuas mas
marc o ingénuo tio de tristão
em vez da realidade via as aparências e
quanta tortura amor terá causado
A única época feliz do homem terá sido o neolítico
quando o momento triunfava do futuro
Aquele que depois se dedicou a edificar a casa de amanhã
foi vítima do quadro do presente
O paraíso é de anjos e animais
articulemos nós só a palavra vida
Com a frágil felicidade sempre ameaçada
tristão despede-se da sua loura amiga
e extrai o seu prazer do esquecimento
Pesa-lhe na cabeça um pensamento
aves do bosque sede ao seu serviço
E tristão busca isolda com
a cruz no crânio dos loucos de outrora
Quando o sol se levanta traz a claridade
deixai-os ir ao fundo da loucura no
país afortunado dos viventes
Mas nunca mais na vida a voltaria a ver
Cólera de mulher é coisa de temer
e a mulher de tristão fá-lo morrer
antes que chegue o navio de isolda
Sem alteridade não há unidade
A poesia pode muito para mim
pois vem iluminar os meus fantasmas
Quando uma sociedade se corrompe
corrompe-se primeiro a linguagem
A tarde escreve uma curva suave
Vou muito simplesmente com o vento
sem sequer conhecer que fujo de mim mesmo
O trigo na campina amadurece
passeio no jardim a cena passa-se no espírito
digo-te adeus e digo adeus à minha juventude
Falo desses teus olhos matutinos
coroo-te de flores ó donzela
tão branca como a cera alta como a gazela
Tens no olhar o prestígio da guerra
voz velada de sol talvez luar
Quero um país que tenha a minha idade
Sinto ter ante mim tempos sem fim
Chego ao termo de quanto pode amar um homem
Já não há uma pátria para mim
falas e logo o tempo se detém
na fragrante fragrância do teu rosto
que luz constantemente em abundância
O murmúrio da minha indignação
por graça da beleza e juventude ignora
o impuro comércio cortesão
Morrer é uma coisa que se vê
O teu amor cresce como uma árvore
há vozes de desgosto na separação dos corpos
Eu canto aves animais herbívoros ou carnívoros
e centra-se na tarde e cerca-me completamente
este crepúsculo esta hora de poetas
A noite entra depois pelas nossas janelas
e traz consigo pitagóricos gente que vive só pelos desertos
Eu porém vivo vou de cidade em cidade
Escrever-te é a maneira de te ter presente
deste satisfação a um amigo e companheiro
pagaste a dívida de amizade e de fraternidade
Por confia em ti nada perdi
é a ti que te quero e não abraços teus
addeus mulher amada mundo meu
Eu digo eu canto e logo o mundo faz-se
ó ave vida momentânea sobre as águas
Chorar eis tudo o que por fim me é possível
antes a sepultura para mim que para ti
eu prefiro seguir-te a enterrar-te
se morres despedimo-nos da vida
pensar-te morta é morte para mim
que a dor que for me chegue sem aviso
tudo menos o meio de ficar no receio
Mas se te perco tu que és a minha esperança
qual é então a esperança que me resta?
Mais amarga a mulher que a própria morte
mais amarga que a morte é a separação
e aí tu em paris e eu em argenteuil
Louvados os caminhos da mulher
e aquele que por eles caminhar
Em mim canta por vezes abelardo
e é a mim que heloísa tenta
por vezes agradar e não a deus
Os actos de um amor que for em mim contentamento
não podem apoiar agora a penitência
Os sítios e as horas nossas testemunhas
encontram-se na minha consciência
Deus sonda os rins e o que neles se esconde
artistas da mentira e da bajulação e canto a
desolada mulher do fim do mundo mulher que
não teme o tema da prosperidade
não a venha a vaidade a visitar
A morena é do sol que nela incide mas
tu virgem loura és o lírio da montanha
Introduziu-te o rei na sua câmara
e tocou-te de estrelas de mistério
Alterno a alegria com a dor
na pureza da prece perturbada
participo da angústia e do prazer
em tanto desespero quanto aspiro
Ando em prosperidade e aflição
sou um homem de júbilo e de pena
e rio tanto mais quanto mais choro
Arrebata-me o róbur do rubor
Galateia desdenha mas espera
enjeita mas seduz ao mesmo tempo
Eu faço uso da carne e roupa branca
à minha mágoa impus um fundo freio
como de tudo o que se vende no mercado
pois é de deus a terra e quanto encerra
Quando eu despertar hei-de aflorar o vinho
não darei importância a quanto não
me preparar para a definitiva posição
Há muito desertei da minha fé
são meus amigos pecadores e publicanos
recuso aquele que sonda corações e rins
não me suja comer com as mãos por lavar
Eu suportei o dia e o calor
deixai-me ao acabar rezar completas
Pequenino e submisso como um riso
eu canto o insensível pássaro do nada os
lençóis de linho sob o cáustico cloreto as
estampas antigas onde os anjos sobem
escadas de salvação com homens pela mão
de olhos cheios de sombra e de penumbra em
casinhas térreas esmagadas pelas chuvas na
consequente conclusão do verão
Eu canto a solidão do céu só entre céu e terra
palavras pitorescas proferidas num
discurso dominado pela erudição
combinações confusas e entrecruzadas a
vermelhidão do púcaro da peste
Eu canto as rosas de trepar abertas em fevereiro a
tesoura que podava pela tarde
as casas corpos definidos sobre a terra as
luzes da ceia abertas nos casebres as
covas que o vento cava na água do mar
esse mar bravo de muitos dias de fevereiro
Já os olhos das árvores abotoam
Viajo pelo tempo até ao porto da velhice
onde poisar a pluma da penumbra
Eu canto as violetas vistas nos teus olhos
canto a cega conspiração das tuas mãos canto o
paquete que aparelha para o mar a
missa rezada em capela escusa
naquela noite confidente e cúmplice
dos olhos das mulheres ardendo como tochas
Neste verão fechado em nevoeiros
de dias devassados pelo som da ronca
eu canto a tarde posta sobre a tua testa
a ressalga do mar na minha casa
nas minhas duas mãos nas minhas lágrimas
Eu canto o teu vulto evidente nesta praia
e lá na ponta o forte dando já o corpo ao anoitecer
e sinto aqui o mar mesmo na cama
valsar a toda a volta desta tonta vida
Eu canto o pássaro que poisa já no ramo ou
uma reviravolta de quadrante
que arrasta folhas mortas no outono
e retiro a cabeça das vidraças desta vida da
terra deixada da mulher amada no
furor ambulatório dos meus passos
Durmo cego no mais secreto mar
A vida é como um manto ó agustina
e o adultério não é fácil à mulher
como o não era no século sétimo anterior a cristo
quando alguém começava a esperar pela morte
ou no século doze quando a fonte de vaucluse
corria e o verão chegava sem eu esperar
e a voz da tempestade vinha na idade
Eu canto as tardes frescas qundo nas
repartições nos não congregam os cuidados
e as longas alamedas se cumulam de flores vermelhas
e as donzelas se embrenham em silêncios tão pesados como bofetadas
Canto as rameiras que usam nos cabelos uns pentes de pedras
e se lhes vêem as saias de baixo amarelas e lilases
e há mulheres nobres de rostos com tons de um verde-maçã e violeta
sob os ramos mais baixos de sinceiros
e outras árvores de folhas amarelas e reversos brilhantes como prata
e a voz de uma ave oculta em laranjeiras
pode subitamente provocar o pranto
Canto uma flor desconhecida que abre
seu ventre mate na íntima penumbra de florestas
quando em quase toda a natureza humana
a vibração de besta substitui a alegria
e as mulheres multiplicam os cabelos
de uma cor fulva e serpenteantes
eu canto o despertar da ira como um gesto inicial
quando não descoberto o mundo apetece e
nos poemas não cabem as ffelpudas folhas das nespereiras e
se sabe esperar meses pelo resultado de uma frase dita num salão
Eu canto a crueldade generosa e o febril fogo castigador
vivos no homem que não pervertia ainda
essa paixão vencida que há por baixo da mentira
canto o cansaço de quem cai na relva e sob a gigantesca tília
jaz quando as rameiras não eram ainda
as aves proibidas que só saem ao anoitecer
e a pequena pedra sua a sua água perlada
e há no manso mar nuvens que anunciam o calor
canto aquele português que não domina ainda
a face decomposta e deformada
mas onde se reflecte a luz do sol e onde cai a chuva
e que sabe saborear amoras bravas
e os caldos de sêmola aprecia
num retiro furtivo de evasão das mundanas congregações
canto o tempo em que havia colóquios mortais
debaixo das ameixieiras rutilantes
e o pecado não era tíbio e consentido
por mulheres que viviam na intimidade da sensualidade
e amavam quer o cheiro quente de um campo lavrado
quer a emanação olorosa da fruta
que amadurecia nas salas das casas
canto a miséria franca inda sem luvas
eu canto tudo isso ou não canto realmente nada disso
Canto o tempo dos gastos com as permanentes
deslocações da corte de uma terra para outra
e os cortesãos há séculos vergados sobre o chão
rodeados talvez de espargos bravos quando
os dias se passavam em amores
e nos mais variados exercícios de armas
e uma casta esmoler aliviava os precisados
sem em troca exigir-lhes as virtudes dos vencidos
Canto o tempo de sol e as pragas de gafanhotos vindas com a chuva
quando a sensualidade corroía já esse homem altivo
por se saber prestes a morrer
quando ninguém gostava da ambiguidade fugidia e fácil
e as mulheres se mostravam já capazes
da verdadeira compreensão da sensualidade
amiúde divinizadas perlos homens para as isolarem
Canto os contemporâneos dos homens ilustres
que mais tarde falhavam outra vez
quando a felicidade era um sofrimento já passado
junto de tílias perto de alguns pássaros
que caíam cerrados como pedras
canto os poços tão fundos que segundo os velhos
se ouvia o cantar dos galos nesse dia que havia para lá do fundo
quando havia inúmeros objectos cujo uso se esqueceu
e um silêncio pouco após ameaçado levemente
pelo cantar dos galos pelas flautas dos pastores
e a penumbra não era precursora da sombra
Eu encho o peito de ar e canto tudo isso
Que alguém ampare o que for que em nós espere
que alguma coisa dure antes de ir-
-se embora ó morna urna eterna e nocturna
ávida e lêveda dúvida lívida mas tórrida
parássemos e víssemos e velhíssimos nos embrulhássemos num
sensual servil lençol sob o dossel azul e mole
A área da matéria é vária e etérea
o átrio é pétreo e vítreo
mas a larva ou a erva que sirva para que a água ferva
que a vida a não absorva nem a ponha turva
que o debate debite azeite por quem opte e lute
Contemplo por exemplo o amplo tempo
onde o tema do drama recai numa trama
e o meu acto é um tecto para um grito
que gosto de ver roto quando luto num
segundo que descendo dura menos que subindo
muito menos que amando nada se me afundo ao
relento cego sossegado branco
Não mais hei-de voltar ao estaleiro onde me despedi de solteiro
na noite solitária de mãos dadas com o vento
Foi da maré vazante a vitória precária e aparente
da terra e sua gente sobre a pátria permanente
de peixes e corais conchas e tudo o mais
Eu canto as mulheres cabelos de sargaço e áticos narizes de aço
ou rostos de marfim que me perdem a mim
e entre elas tu comprida cabeleira
tanto tempo perdido coisas sem sentido
palavras para o teu ouvido flores do teu vestido
mulher que choro agora e ausente embora é comigo que mora
causa desta tristeza que me altera a natureza
enfim coisas insignificantes que hoje valem mais que antes
E aquele pinheiro positivo e uno
oposto aos fáceis fogos vesperais
pinheiro antes de mim e digno de respeito
mais profundo que um homem e que sabe mais
alheio às manhas que por si a própria vida tem
e muito mais as tem naturalmente quem
com paixão vive a vida e a vive sem medida
e a consente em imolar ao mar
que há muito ouve insistente chamar
e é complexo como a máxima mulher
Ó mar azul meu actual paul
ó catedral de angústia ó pequena réstia
dessa feliz felicidade que sei que não há-de
haver sem eu correr o risco de a perder
ó essa voz que cresce com o dia que desce
sobre esse pinheiro manso onde ainda me condenso
e não nesta miséria que é eu ser pessoa séria
Canto a vela cheia de vento que me arranca num momento
e me faz imolar ao mar que como um deus exige a vida de homens
que lhe ouviram a voz sentiram vocação e
cedo se iniciaram nos mistérios de um supremo ser
que na água que é rapidamente a mim me lava
E canto a neve que se atreve ao que me deve
névoa vinda do sul por sobre o mar azul
luz do lápis-lazúli que se azula
e açula a rasa solidão do mar
melancólica morte dessa praia ao norte
a praia onde desmaia toda aluz que saia
do dia luminar que lá ao longe vai levar
a alegria feroz da luz veloz
deixando sobre o mundo o grito do meu luto
ebulição da vida a custo reprimida
viola violenta que a luz é que sustenta
E sonho como fausto em renovar a vida
gesta já gasta que arrasta a flor da giesta e
sustento-me de ti mesa da vida posta
luz que me aquece quando tudo me arrefece
mulher que passas pela estrada branca
da vida amena ao som da leve avena
olhos redondos olhos como abrunhos
e que vergas à luz como uma verdadeira amendoeira
e morro muito a custo após o mês de agosto
dor dolorosa minha e do meu sonho
num pensamento ermo de um enfermo
que ora aspiro a frescura perfumada de um limão
termo e habitação da terra por deus dada
ora é meu destino a dor lida no olhar do pescador
e mesmo quando durmo em dor me afirmo
O meu desporto é a versificação
e troco o próprio verão por três quatro palavras
dessas a que é alheio o coração
Um verdadeiro pescador é dias que nas redes traz
uma vida não chega pra fazer um pescador
na consciência oculta e ignorada do seu tempo
Mas tantas coisas houve que passaram para mim
essa dor onde havia íntimas mulheres
largos ao sol quadros antigos tons de luz
recantos odorosos como a adolescência
essa prega dos lábios onde nasce o riso
o limiar da dor ou os acessos ao amor
tudo isso situado nas imediações dos olhos
Canto o homem que tinha ainda alguma voz no rio
que corria veloz pra preservar a limpidez e
no rosto um resto de malícia e de melancolia
e a voz na noite tanto esmorecia
que por cima do vento mal se ouvia
e os medronhos caíam as folhas buliam
na perfídia do perigo ou na nudez da perversão
Mas nada disso havia ainda nesse tempo
além do célere corcel do tempo que corria
do dispensável excesso de experiência
convite à convicção da consciência
terrível e terrestre turbulência
Eu canto a mínima ruína de queimar os dedos o
passo tão calculado como o de uma prostituta
infiltração nas íntimas instituições
pródigos monumentos a nós próprios e
o terrível turíbulo da torpe turbulência
abundância de mãos em máximas imersas
acção dispendiosa para a paz do mundo
Quem se busca a si próprio bruscamente afasta
o manto gotejante das águas tirrenas
do peregrino pertinaz de ítaca ou da
criança apenas convencida da recente vida
sem bem conhecer afinal como conseguida
A útil única e vibrátil vida que
no ríspido rigor real ainda vibra
no quente coração dos corajosos homens
ao ritmo de uma néscia narrativa
provém dos livros desse adolescente aberto
às grandes massas do instinto e risco
dificilmente tributáveis pelo fisco
Se aos deuses nada há a acrescentar
pouco lhes há também a retirar
e muitas vezes mesmo a invejar
Conhecesse eu as ruas tão bem como a vida
recebesse no rosto o bafo azul do nevoeiro
e as amplas janelas que de par em par
deixam entrar em casa imenso o mar
jamais haviam de deixar passar
a nesga negra da profunda negação
esse orgulho do sexo que odeia o segredo
as vozes do serão no morno ar às vezes
Canto a destra desenvoltura que amestra a desventura
e o castigo que traz a paz da culpa
e os grandes gritos só devidos aos aflitos
manto de insulsa água que rodeia as árvores
e o ríspido risco assumido vivo e a
rajada de luar humilde na calçada
Envelheci talvez. Tenho coisas atrás
essa cara convulsa agora causa de rerpulsa
os sórdidos recantos desse rosto
que um intenso gosto antes tivera em contemplar
o desnível possível à cascável acessível
alguém menor que a pedra inferior à onda
mais planta do que absurdo e árvore jamais
onde desprevenida se jogava a nossa vida
sem ser-nos devolvida alguma imagem
onde minimamente esparso ardesse o remorso
Sempre fora o meu mal evitar fazer mal
Esse espectro do nosso desespero o confidente
amara apenas essa rapariga
para a emancipar do infortúnio
Aqui sobre estas águas eu suspenso deixo
a vida até qualquer outro verão
onde outra vez procure em vão o que ora procurei
Eu canto a margem terra empedernida
que exagera e se mostra enfim tão indecisa
quanto antes entre terra e água e o
vento devorador dessas nocturnas raparigas
Das amadas mulheres só me ficam
as que no casamento buscam a legalização
do ouro que a especulação assegurou aos seus antepassados
hoje tão cintilantes quão discretas antes
Viram-se homens de muitos gestos mas de poucas mãos
e viu-se o ar mandado pelo mar
atravessar as ávidas janelas
e entrar de mansinho nas primeiras casas
representantes da cidade e dos seus habitantes
de sorriso escolástico nos lábios
As ondas de tão sôfregas mordiam
pretensas pedras mas afinal terra
e contra o cais as palmas como que batiam
na tragédia que toda a festa encerra
A cidade era parda àquela hora
naquele tempo em que nascem brancas maias
e a mais bela é a cor rubro-saturno
Névoa ou mágoa de sal tudo era azul
Toda a noite eu dançava entre as fogueiras
precisava de ouvir vozes humanas
para me dissipar a solidão
e queria viver e não morrer
e via corações nos cântaros de barro
e ria e ria mais ao vê-los rebentar
a golpes de espadim entre sério e a brincar
Onde estavam agora os amigos de outrora
que comigo corriam pelas praias
e a inocente fronte só de beijos me a cobriam
no correr dos dias?
Só me quedava ver escorrer das bocas negras dos mendigos
aquela água que corre das carrancas
quando a tormenta cerra o céu dos templos
As aves são um sol branco e maior
sobre o trigo que cresce e que decresce
como o homem que nasce e nascendo envelhece
e eu passo e vou e volto e então abro
os olhos sobre o rio do balcão do paço
e há um vasto espaço nos meus olhos
E canto a alegria de volúveis bailarinos
camareiros arautos fâmulos donzéis
e sonho que não mais acabará essa alegria
As casas as fachadas tudo se reveste de veludo
e casa por ladrões rondada é casa roubada
E a resina arde em meio da multidão
que enche as ruas onde então já danço
entre o aroma ou música que areja
os quartos já fechados desde há muito
que ergue casas já há muito demolidas
e uma voz ouvida e perdida
se vê pelo presente repetida
inicial lustral como uma madrugada
Que importa que no mundo morram os ministros?
É patriótico negar a nacionalidade
aos naturais de um país vencido
que só buscou no mar razão de ser. Eu canto a
memória fugitiva como a água
que parece estender alguma mão de paz
sobre a ácida lâmina de um sabre
Gente amarela e morna amordaçada
domina esse país aonde a ironia
dissimula a impossível alegria
numa vida que vai por mim contaminada
vida do largo da areia e do vento
À minha personalidade própria de poeta
na carne cerebral de que careço
a eternidade vem-me das papoilas
desfolha-se-me a vida como as pétalas das rosas
e pensei e li mais do que vivi
E só tu sobressais entre as demais
mulher eterna com a luz na fronte
e dominante agora em todo o horizonte
Humano mesmo se demasiado humano
povoam-me cidades sossegadas
de sonhos que semeiam as semanas
onde o só silêncio é soberano
Dobra-se a brisa à mão do meio-dia
a fantasia é fértil em verdade
e do presente obscuro português
algum futuro há-de enfim nascer
Do salmo lúgubre da luz final do dia
que já há quatro séculos se entoa
hão-de rasgar a noite portuguesa
as raparigas da cidade de lisboa
E eu hei-de voar ao vento do momento
Dizias qualquer coisa? Esta manhã? Perfeitamente
Madrid, 31/V/1977
POEMA DE RUY BELO IN «O TEMPO DAS SUAVES RAPARIGAS E OUTROS POEMAS DE AMOR»