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Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que não a quis.
Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.
Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce.
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.
Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa.
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos Têm licor d ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.
Quando eu morrer...
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
POis quando me comovo até o osso é sonoro.
Minha casa de sons com a morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Mimha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terra onde moro,
Nunca vos deixarei.
Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar.
Poema de Vitorino Nemésio (1901-1978) [O Bicho Harmonioso, 1938]
I
Entre a minha vida e a minha morte mete-se subitamente
A Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888.
A esse sítio acorrem então, aflitissimos, o teu vago sorriso
e a vaga maneira como dizes os esses;
vêm de muito longe e chegam incompletamente
ao pequeno vulnerável sítio entre
toda a minha vida e toda a minha morte,
quando a minha última recordação atirou já com a porta
e tudo está acabado até a tua respiração
na cama ao meu lado,
e também tu estás morta,
duma forma que já não me importa.
Vamos então os dois outra vez
ao longo de certas ruas sombrias e de certos dias
e sorris e falas alto; está calor mas tens as mãos frias,
compramos coisas, visitamos
talvez algum último amigo
sem sabermos que eu já não estou vivo.
Poderia ter sido de outro modo?
Poderiam ter sido outras duas pessoas
vivendo a minha e a tua vida, morrendo a minha e a tua morte?
(Mesmo o armador, poderia ter sido outro?)
Aparentemente foi por pouco;
se fosse um pouco mais tarde ou um pouco mais cedo,
se eu não tivesse chegado a casa cansado,
se a louça não estivesse por lavar
e a janela da sala de jantar
não estivesse fechada, se o mundo não tivesse acabado,
nem tu tivesses ido ao supermercado,
e se eu não estivesse cheio de medo.
Agora estou voltado para cima,
para onde canras ainda há muito tempo.
Se calhar isto (alguma coisa) vai demorar mas já não me impaciento.
Voltamos, tu e eu, ao mesmo jardim desflorido
onde eu morro sozinho
e conversamos comigo
como com um desconhecido.
Que diremos agora um ao outro?
É tarde. Ainda há um momento
me apetecia conversar, agora estou outra vez tão cansado!
Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado,
como se fosse pelo lado de dentro?
II
Estou morto, deitado de lado.
Morte, Vida, Medo, Esperança:
já não estou para aí virado.
Onde vos guardarei agora, lembranças?
Talvez também eu seja uma lembrança diante
da lembrança de uma casa também morta,
e talvez ela me abra finalmente a porta
e as escadas brilhem e o corredor cante.
Dos meus olhos vê-se um jardim
ardendo em rosas espetado
(os teus olhos ardiam assim em mim:
como um palácio iluminado),
um jardim lento (tem muito temoi)
onde eu outra vez entro.
Se me voltasse para trás o que veria?
Ainda os teus olhos, ainda a alegria?
Agora que partiste para sempre
segurando-me inultimente a cabeça
talvez tudo te pareça
excessivamente evidente
e excessivamente irrisório:
a morte, a vida, os dias sem lugar,
a louça do almoço por lavar,
as meias a escorrer no lavatório.
Mas não nos julgues com severidade,
estava a fazer-se tarde
e já ninguém vinha, o melhor
era irmo-nos deitar.
Agora, se o telefone tocar,
diz que não estou.
(Sem ironia, o meu coração teme a ironia
quase tanto quanto a perfeição;
e sem melancolia:
estávamos a precisar de solidão,
de silêncio, de geometria,
e as nossas lágrimas de uma grande razão).
Agora que não estou
(nem tu sabes quanto)
tudo o que passou
sou eu regressando.
Os meus passos, não
os ouves nas escadas,
subindo as escadas
como os de um ladrão?
IV
Farewell happy fields
where joy for ever dwells hail horrors
Milton, Paradise Lost
(Adeus campos felizes; remorsos: adeus.)
Vamos os dois ao longo dos dias felizes
conversando e ouço o que dizes
como se quemfalasse fosse eu;
(adeus palavras, sonhos de beleza,
montanhas desoladas da infância
donde tudo se via: a alegria
e a cegueira do que não se via;)
vês agora o que eu vejo, a minha sombra
caminhando a teu lado num tempo sem sentido,
quando eu ainda não tinha morrido?
(Adeus perfeição, adeus imperfeição.)
Às vezes pergunto-me se valeu a pena,
se não haveria outra solução,
se não poderia, por exemplo, ter embarcado
num desses barcos que aparecem sempre
milagrosamente na última estrofe,
e se tu não poderias ter ficado
no cais, ou em alguma metáfora mais
imperiosa, partindo também donde te via,
e se assim não teria tudo sido
menos improvável e menos cansativo.
Infelizmente não havia barco onde
coubéssemos eu e as minhas lembranças;
tudo o que havia, tudo o que realmente havia,
a ti o tinha dado
e, dando-to, tinha-to roubado,
e a minha própria morte pairava
entre ti e mim indecisamente,
como uma ideia, não como algo presente.
Agora volto a sítios vastos
uma última vez. Com hesitantes passos
subo as escadas e bato à porta
e tu abres-me a porta mesmo estando morta
e mesmo eu estando morto, como se fôssemos
visitados pelo mesmo sonho.
(FAREWELL HAPPY FIELDS, 1992)
JUNTO À ÁGUA
Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.
Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz da infância, que o teu silêncio me chamasse!
E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos
e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.
Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
ond o meu coração, falando, vagueia.
Poema de Manuel António Pina (UM SÍTIO ONDE POUSAR A CABEÇA, 1991)
... Acuso!
Ai vida sem alegria,
Sem desespero nem nada!...
A gente deita-se..., é noite;
Levanta-se a gente..., é dia;
E a mesma porta fechada
Do lado de cada estrada,
De cada lado de cada!,
Finge de guia.
Assim, que posso eu fazer
Da minha alegria?!
Tinha alegrias profundas,
Só comparáveis
Aos meus desânimos...
... Tenho-as:
Mas esses dons inefáveis
Sobem-me à boca,
Volvem-se em azedume...;
Que eu renho dentes postiços,
Com cárie de verdadeiros.
Protesto...!, e com todo eu.
De que me vale?
Só como
O que me dão a comer
Os carcereiros.
Só bebo
O que me dão a beber.
Só tenho o que não é meu...!
...De que me vale?
("Acima, acima, gajeiro,
Acima, ao tope real!")
Ai tope real quebrado,
E conservado, embrulhado,
No quarto dos quatro muros!...
Eis o meu quarto:
Fechado;
Cortininhas nas janelas;
O tope real a um canto,
Mumificado:
... Como um violino sem cordas.
No chão, passeiam baratas:
Luzidias, bufas, gordas...
Aos cantos, teias de aranha:
... Como frangalhos de rendas
De sonhos empeçonhados,
Com insectos enredados;
Um cemitério de moscas
Pendente
Do tecto recto,
Como um pingente;
E eu..., a passear de alpercatas
E a declamar às paredes
Qualquer velha lengalenga
Com luas e pauis...
(" Vá, ... queres que te conte o conto
Das calças azuis...?")
O cemitério das moscas
Bate-me, às vezes, na testa.
Tropeço em cadeiras toscas
De pé coxinho...
E ao lado, o Senhor Antunes,
Que é meu vizinho,
Escarra tão virilmente
Que faz tremer as paredes...
A bela Dona Praxedes,
Senhora decente
Do quarto da frente,
Rompe vingativamente
Num sarcástico falsete.
E o papagaio da escada
Comente e repete:
"Má-raios de gente!,
"Tudo uma cambada...!
"Má-raios de gente!,
"Tudo uma cambada...!"
São palavras da criada.
Eis o leito em que me deito,
No buraco do meu quarto,
E em que sofro a dor do parto,
Que não acaba,
De Mim Próprio!
(... Clarões, incêndios, sóis, cúmulos,
Asas de anjos sobre cúpulas,
Passagens do Mar Vermelho...)
Eis o meu quarto, que cheira
A cisco, a velho,
E a vida podre e vazia...
Ai vida sem alegria,
Sem desespero nem nada!...
A gente deita-se: É noite.
Levanta-se a gente: É dia...
Boi gasto, sofre o teu jugo!
(... A unha maior, mordi-a:
Sabe-me a boca a sabugo...)
Puxa o teu carro!,
Sofre o teu jugo!,
Arrasta a tua charrua...!
E, se estás gasto de todo,
Podes ficar, alastrado
Na lama da rua...
Num travesseiro de lodo...
E revirando a quem passa
Um olho morto, vidrado,
Redondo, espantado, enxuto,
mas enorme,
Porque atrás dessa vidraça
Deus não dorme!
Poeta
De lábios de infante,
Cabelos de seda,
Sorrisos de luto...,
- Que pairas
Ao canto
Da janela baça?
Que sonho te enreda,
Que tanto
Desvairas?
Retira-te!, enfia
As mangas de alpaca.
E senta-te à mesa, e começa...
Inclina a cabeça,
Co'a língua de fora,
E copia, copia, copia, copia,
Com letra legível e opaca.
Ora agora,
Consegue que goste, e sorria,
Sua Senhoria
O chefe da secretaria.
... Assim, que posso eu fazer
Da minha alegria?
Acuso!, protesto!, acuso!
De que me vale?
... Teus versos,
São sérios, ou mangação?
Não sei o que são!
Tens mesa, e compras toalhas...,
Mas falta-te pão.
São soluços de ironia...
Ninguém tos compreende... E vão
Encher-tos de gralhas
Na tipografia.
... Assim, que posso eu fazer
Da minha alegria?
Que a bola que rebola achei-a pouca,
O tecto baixo e recto me pesou,
Pela frincha da porta o fumo entrou,
Por isso a fonte cantou rouca!
Por isso a fonte cantou rouca,
A fonte que Deus benzeu.
Que o mundo que lá passou
Lá se mirou...
, e bebeu!
Por isso, eu...,
"Por isso grito e gritarei,
"Do fundo da minh'alma até à morte:
"Aqui-d'el-rei! Aqui-d'el-rei!"
Poema de José Régio
Para preservar a sanidade mental depois do anúncio "do enorme aumento de impostos"
Mo Yan, escritor chinês, é o vencedor do Prémio Nobel da Literatura 2012. O único livro traduzido em Português, "Peitos grandes e ancas largas" é editado pela Ulisseia.
Nada pior que ser governado por gente manhosa.
Quando rico rouba, é engano; quando o pobre se engana, é roubo.
Provérbio judaico
Com dinheiro, faz-se falar so mortos; sem dinheiro, nem se consegue calar os mudos.
Provérbio chinês