O autor Henrique de Senna Fernandes. Em seu projeto de explorar o encontro de culturas, elevou os nativos de Macau a protagonistas de sua literatura
Revista BRAVO! | Fevereiro/2009
Dois lançamentos apresentam no Brasil a literatura do macaense Henrique de Senna Fernandes, representante de um mundo em extinção, em que as culturas lusitana e chinesa dialogavam
Toca o telefone no escritório de advocacia do escritor macaense Henrique de Senna Fernandes. Chamada de São Paulo. Em Macau, ex-colônia portuguesa na Ásia e desde 1999 região administrativa especial da República Popular da China, os relógios estão no futuro — nesta época do ano, dez horas a mais em relação ao Brasil —, mas o idioma no qual se expressa o jornalista que procura pelo autor ficou no passado. "Can you speak in English?", pergunta do outro lado da linha, com voz constrangida e sotaque achinesado, uma assistente de Senna Fernandes, logo que ouve as primeiras palavras na língua da antiga metrópole.
O episódio reforça a ideia de que Senna Fernandes (1923) talvez represente o último capítulo de peso da história da literatura produzida em português no continente asiático — ou, ao menos, em Macau. Assim, a publicação no Brasil de dois livros do ficcionista, Nam Van (contos, 1978) e Amor e Dedinhos de Pé (romance, 1986), já constituiria, por si só, um acontecimento editorial. Há, no entanto, algo mais a sublinhar: a obra do autor é um paradigma da expressão identitária de Macau, moldada a partir da fricção entre as tradições portuguesa e chinesa, disso resultando uma "cultura de encontro". "O macaense é precisamente o produto do equilíbrio de várias culturas, entre as quais se destacam a portuguesa, a raiz, e a chinesa, o solo. Eu sempre quis mostrar essa possibilidade de duas culturas tão díspares encontrarem uma plataforma de entendimento e de adaptação, criando um mundo novo", explicou o escritor em entrevista a BRAVO!.
A primeira providência tomada por Senna Fernandes para alcançar esse objetivo foi pôr os macaenses no centro da ação narrativa. O prodígio, conforme observa Mônica Simas em Oriente, Engenho e Arte, coletânea de ensaios de vários estudiosos sobre imprensa e literatura produzidas em português na Ásia, significou um "deslizamento subversivo" das estruturas literárias até então praticadas. Em obras como a de Jaime de Inso (1880-1967), por exemplo — oficial da Marinha lusa que serviu em Macau na década de 1920 —, os nativos da colônia não passavam de "personagens secundários".
Escritos com apuro técnico e cuidadosa construção de personagens, Nam Van e Amor e Dedinhos de Pé são representativos do projeto literário do autor. O volume de contos parece já querer concretizá-lo desde o título: Nam Van é a denominação chinesa da Praia Grande, o coração social e administrativo de Macau, além de "zona residencial preferida da população". Em suas cercanias, Senna Fernandes nasceu e passou parte da infância e lá foi morar quando regressou a Macau, depois de se formar no curso de direito na Universidade de Coimbra, para não falar que ele atribui ao local a inspiração de seus textos iniciais — o que vale dizer que, para além do jogo linguístico de reunir histórias em português sob um título chinês, o nome da obra relaciona as memórias espacial, coletiva e pessoal.
A-Chan e Manuel
No primeiro dos seis relatos do livro, A-Chan, a Tancaneira — premiado em 1950 num concurso da faculdade onde o ficcionista estudou —, a personagem principal, uma interiorana, é vendida pelos pais e acaba no litoral, trabalhando no tancar, pequena embarcação macaense guiada por mulheres. No exercício dessa função, considerada desprezível na China imperial, ela conhece o marinheiro português Manuel, a quem chama de Cou-Lou (Homem Alto). Ali estão dois destinos culturais distintos, ainda que inexoravelmente ligados à água. Não demora para que a paixão entre ambos "flua" — num encontro de dessemelhanças. Embora "feia, ignorante e açulada pela canga do rio", A-Chan conquista o navegador lusitano, que chega a se chocar com sua "submissão de fêmea amorosa que nada pedia". Ela engravida, e o futuro que se vislumbra, no final do conto, para Mei Lai, sua filha com Manuel, reflete o "mundo novo" de que fala Senna Fernandes: a menina é levada para a metrópole, onde será criada pela irmã do pai.
Em Amor e Dedinhos de Pé, a proposta de trazer para a boca de cena os personagens e a identidade macaenses é radicalizada. Dividido em quatro partes, o romance foi inspirado, segundo o ficcionista, "numa história antiga que escutei, entre riso e comentário jocoso, num dos serões da velha casa da minha avó". Para mimetizar, a contento, o ambiente de que trata o enredo do livro, Senna Fernandes admite que devia ter escrito certos diálogos em patoá, isto é, no dialeto local, hoje em vias de total desaparecimento. "Não o fiz porque, escrevendo sobretudo para o leitor lusófono em geral, a sua leitura tornar-se-ia difícil. No entanto, aqui e ali cedi à atração, reproduzindo frases em patoá, e noutras introduzi a construção gramatical do português falado pelo macaense."
É desse modo que a própria língua de Macau torna-se também uma das protagonistas do livro, lapidada num coloquialismo que não abre mão do acento literário, como se vê na seguinte passagem: "Pensa que não queria ser como as outras? Ter o direito de me divertir, de dançar e não ser o jarrão de todas as festas, de ser amada? Não, não interesso a ninguém. Pensa que não queria apresentar-me melhor, despegar-me destes horríveis vestidos que trago, que me dão uma figura de espantalho?".
No romance, Francisco da Mota Frontaria, o Chico-Pé-Fede — descendente de uma família de lorcheiros "que tanto se tinham distinguido no tráfico de mercadorias pelos diversos portos da China e na luta contra os piratas" —, tem sua trajetória cruzada com a de Vitorina Cidalisa Padilla Vidal, dita Varapau-de-Osso, a "mulher mais feia" da cidade. Numa trama tecida de maneira hábil, várias histórias vão adensando o núcleo central. O tempo recua na segunda parte até chegar ao presente da primeira e daí partir para as restantes, retratando a Macau do início do século 20, com seus bairros lusitanos e outros tipicamente chineses, e a reviravolta na vida dos personagens principais. Tal como ocorre com tantos outros casais da ficção do escritor macaense, também Francisco e Vitorina são bastante diferentes — o que representa mais um nível de aprofundamento do livro —, mas a complexa condição de marginalidade de ambos promove sua aproximação.
"Uma língua só tem sucesso quando é amplamente utilizada. Apesar de ser idioma oficial em Macau, o português não é o que se fala muito", lamenta Senna Fernandes. De fato, consta que nos dias atuais menos de 1% da população domine o idioma luso. Diante desse quadro, o macaense afirma que a literatura de língua portuguesa produzida por escritores asiáticos "caminha para a extinção". Isolados, muitos dos ficcionistas e poetas de expressão lusitana daquele continente permaneceram, e permanecem, distantes de algumas das principais conquistas literárias do idioma. Mas o vigor de obras como Nam Van e Amor e Dedinhos de Pé deixa na ponta da língua portuguesa um gosto amargo — trazido pelo temor de que uma literatura que foi capaz de produzir livros desse porte possa deixar de existir.
Rinaldo Gama é editor do caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo, autor de O Guardador de Signos: Caeiro em Pessoa.