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põe um pé sobre a minha mão legítima que ela nunca mais escreva,
põe o outro pé sobre a parte mais alerta da cabeça e faz com que ela esqueça,
os dois pés sobre todo o meu corpo como se estivesse morto,
toca-me na testa e sopra-me na boca,
e eu fique tão sensível ao mundo que se transforme tudo,
ao quente do meu sangue,
ao frio do juízo,
que eu ganhe de repente o meu tamanho próprio,
como a luz deitada sobre si mesma, bicho que ao sol se
enrole tão enorme como a sombra deitada sobre a luz,
que eu me transforme enfim em tudo o que me toque,
que sopre por mim adentro com a extensão do fogo,
se tenho os braços abertos
para apanhar espiga a espiga todo o trigal do mundo,
e assim se faça o poema desde o leite que bebo
até ao frio fundo dentro das mãos fechadas,
oh punhos duros,
laços de sangue torto, sangue torto,
vívido, terrífico, oh sangue tão agudo,
e mo dobre o vento passando sobre as torres,
passando o fogo,
passando o ar mais acima do fogo,
mais acima da cabeça que ele toca se o sono é tocado pelo sonho,
para ser semeado à volta delas todas,
e grita do cimo dessas torres: - estrela! estrela! estrela!
nome a nome a nomeação da terra com suas pedras sôltas,
a cada pedra onde ela pedra é tão assim tocada,
no ar cego,
pelo ar como o amor toca o sangue e é o sôpro de quem ama
- o pé em cima da mão verídica com a chaga e com o beijo:
que eu não escreva nunca
nem abaixo nem acima do umbigo,
mas no umbigo mesmo,
que me dêem o nó agora à tripa entre mãe e filho,
que eu vá com toda a astúcia à minha vida tão difícil
Poema de Herberto Helder in "Letra Aberta, edição Porto Editora, Março de 2016