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AS COISAS
I
As coisas fornecem-nos o modo
o lábio frigidíssimo da vida
perfume de torneira no silêncio
o céu lastima-se do uso
do modo como se persegue
as coisas.
II
É deste modo quase obsceno
de quebrar as frases
deste modo antigo de sair dos ossos
que sinto a cortesia do poema
desperto os membros
com pena de levantar o corpo
com tímidas conversas
afasto-me do sono
com pena de acordar a alma
e pelas novas linhas do poema
deslizo agarrado às coisas
III
Este deserto principia
nos dedos e nas palmas
não fica como dizem
pelo rosto das entranhas.
Ele só principia em mãos
que escrevem, depois
socorre-se das coisas.
E corre nas palavras
poderosas maduras
as ânforas antigas
as mães do nosso sonho.
Diante dos objectos
o só cristal dum grilo
o som rouco do mar
eu,só, nu nas paredes.
Por isso é meu dever
e eu bendigo
o berço luminoso
dos meus versos.
Esta ruidosa planície
que anoitece, branca
por fora, humana
no percurso,
e simples como um povo.
Dissipo assim este deserto
o to, aéreo da memória
o jogo dos antigos
as estações translúcidas.
Deitado no meu corpo
disfarço o mais que posso
o artifício que encanta
como as crises as bruxas
as amantes.
Dissipo deserto e bem mastigo
as coisas com seu peso e os meus braços
podem ser também as árvores que falam.
IV
Parados neste tempo
momentos de poeta
desanuviam coisas
revestem os limites.
Comentam depois pausas
inquirem das notícias
desdobram na paisagem
o curso interior
dos eixos e dos dínamos
dissecam como lâminas
o ventre dos sistemas
não dão já fantasia.
Carecem de sossego
embarcam com seu modo
pelos túneis do trabalho
momentos de poeta.
E os homens atravessam
à escala ddeste ofício
ofício de poeta
desanuviando coisas.
V
Por certo as coisas geram
funestas alquimias
depois voam pelos olhos
verdades que se inscrevem
na curva de uma boca
no aceno dos cabelos
se as coisas já se usam
quando as donzelas coram
eu velo assim enxuto
o lado inferior
mas rápido das coisas
não temo este poema
em vias de sumir-se
procuro e recalcitro
pra já soam na noite
os órgãos das paredes
para que eu veja este meu corpo
que alastra este memória
depois sei como penso
pesado nos minutos
demais sou camponês
que invade este teatro
e o meu irá por certo
ao berço dos que sofrem
por cima dos troféus
os pais pedem-nos vida
se quis andar nos adros
agora quero a mais
devida ausência
de mistério
e ir chamar o mar
sem gritos saudosistas
e ir chamar fadistas
mas quero a conivência
já destes meus amigos
já destes anciãos
sentados no sossego
aos quais peço o adorno
com fresca ansiedade
que chamam de certeza.
VI
Chamar aqui as coisas. Dividir
e comentar de rosto a pino
estas colheitas.
Potentes animais repartem
entre si
o pasto da preguiça.
Mas sempre ao pé das coisas
um ruído aponta
e é longe o Sol
os lábios da criança
a procurar na mesa.
É enrolar o braço
nesta roda que uiva
espremer o soro patético
do sono.
Marcar no chão
sementes de ternura
e cortejar apenas
um coração que viva.
Descer dos astros e procurar nas ervas
o sabor honesto para se dar à morte.
E como a rua é forte
ouve-se já o canto
nos intervalos da chuva:
nos ombros as mulheres
passeiam a desgraça
um cântaro mecânico
enche os seus olhos de água.
Há plantas podres
mas é a terra cheia
de saúde
e são assim os dias.
VII
Subo os olhos
pela prosa carcomida
e mal passei a mão
pela raiz de tudo.
Ao longo das estradas
alguém depositou
a baba centenária
sentando-se a dobrar
a ponta das semanas
entre os anéis do tempo.
Mas deve-se afirmar
que neste mar há ilhas
- talvez sejam ilhotas -
pessoas insulares
e muito desperdício.
Há seres prejudicados
pelo aspecto teocrático
de todas as manhãs.
Ideias infantis
malucas poderosas
tenazes flores peludas
um girassol nos anos
...................................
"perfume de torneira no silêncio
o céu lastima-se do uso
dos versos demagógicos cabrestos
do modo como persegui as coisas."
Poema de Armando Silva Carvalho, in Obra Poética (1965-1995), Edições Afrontamento, Julho de 1998